Última nota de 2018

Só me vem à cabeça: 2018, tal como o seu oito, um ano redondo. Duas rodas e ar livre publicados no nosso pedal(e)ar e um Sísifo a rodar uma pedra arredondada pelas colinas do ano que agora finda e, por vezes, nas encostas da aCourela.  

A bicicleta, mais do que em anos anteriores, foi um denominador comum, tal como a necessidade de manter o equilibrio em caminhos pouco cuidados por entidades alheias à minha pessoa. Não houve demasiado espírito de aventura, sim necessidade de percorrer essas vias para poder hoje aqui estar a escrever esta última nota.

Começou o ano com uma cabine de gratidão onde nos primeiros meses do anos fomos dobrando notitas escritas com a energia dos primeiros passos e com o entusiasmo dos nossos filhos. Foi a Elsa quem mais estimulou que cuidássemos dessa pequena cabine pintada pelas nossas mãos. Teve e tem razão.

Os meses foram passando e a gratidão visível em cima do armário da sala começava a ficar aí e não dentro de mim. O trabalho mostrou-se isso mesmo, trabalho. A vocação começou a ser questionada por circunstâncias que, ao contrário do habitual, não pude controlar. Uma besta negra começou a espreitar pelos raios de sol que ainda ia sabendo aproveitar. Vi-a perto mas sem ser capaz de me tocar.

Continuou a labuta, somando-lhe obrigações que a razão queria recusar mas foram impostas ao corpo. A besta já não se contentava com o espreitar, atrevia-se a aproximar-se de mim e a desafiar-me olhos nos olhos. Fruto dum passado intenso a aprender a defender o meu espaço vital, a barreira visual impedia-a de mais atrevimentos.

Neste ambiente, via os nossos filhos a crescerem felizes, a rirem e a falarem alto como crianças que são. O meu coração estava com eles mas o equilibrio da bicicleta durante o trajecto casa trabalho e viceversa, via-se dificultado por algumas pedras soltas, obras do Estado, vandalismo e faltas de atenção minha. 

É quando estamos mais fracos que as bestas cobardes atacam e, em pleno Agosto, sinto uma garra rasgar-me o peito em plena noite. O descanso faz-se vigília, a calma medo, o silêncio um ruído ensurdecedor. Ao meu redor necessitam-me e jamais deixarei que lhes falhe. Isso penso.

As crianças, o casamento, estão bem. O trabalho onde deveria de estar. A família, fora do nuclear, onde quer estar. O meu sorriso habitual continua por costume, por reflexo. Minto constantemente a mim mesmo que a besta não consegue baixar-me a guarda. Sou um guerreiro, basto-me a mim mesmo. Pura ilusão. 

Tudo se atrasa. Projectos, respostas oficiais, bens materias, encomendas, trabalhos. As técnicas de meditação aprendidas numa juventude new age tornaram-se ridículas para a ansiedade de adulto. A cabine deixa de conhecer notitas de gratidão da minha parte. Esqueço-me dela. As vozes e os risos aumentam o volume e todos os sons me parecem gritos. Falo ainda mais alto do que o normal e oiço-me cada vez pior. Lewis Wolpert, um biólogo inglês, falava dum tipo de tristeza, a tristeza maligna. Só conheci essa designação há menos de um mês pelas mãos do Eduardo Punset, mas o sentimento vi-o a sentar-se ao lado de mim, dentro do meu carro parado, num fim de tarde chuvoso.

Continuo a escrever e já estamos em Outubro. O Verão passou sem descansar deixando-me uma característica cínica a qual não aprecio. De passagem, um fim-de-semana em Córdoba em Setembro. No supermercado compro por impulso um livro. Vou lendo e dobrando páginas, sublinhando. De volta a casa, depois desse fim-de-semana, no meio do ruído que me afectava as noites, descubro que a besta já invadiu de vez o meu espaço vital e que eu, no meio de optimismos acéfalos e carácter de não dar parte fraca, o estava a negar. O volume vai alternando notas mais altas entre algum silêncio. 

O ano avançou para o fim e acompanhei-o numa luta contra um sentir não ser eu. Como a Mobile Home que transportei para aCourela durante três quilómetros com o nosso pequeno jipe, arrastei três toneladas para um local destinado a nós, ao nosso bem-estar. A Elsa e os pequenos lá estavam à espera de mim, como sempre. Cheguei e libertei o peso. Vou libertando o peso. O silêncio voltou ao meu quotidiano e voltei a desfrutar de gargalhadas e gritarias infantis. O trabalho voltou a ser trabalho, com uma pequeníssima batalha ganha para poder estudar a 100% durante uns tempos. Aceito este ano redondo que tantas vezes me veio ladeira a baixo e amanso a besta a quem já vou apreciando a negritude. Já não é uma invasora, faz parte de mim, tal como este 2018. Hoje, à tarde, ambos apanhámos sol juntos...

2018 no estandal

Amizades brindadas

Amizades brindadas com demasiado álcool evaporam-se e caem no esquecimento etílico.

domingo, dezembro 30, 2018

Crónica: "Chamar os bois pelos nomes" de Luis Leal (in "Mais Alentejo" nº146, p.44)

O mundo era tão recente que algumas coisas careciam de nome e para as mencionar fazia falta que se apontasse com o dedo. Este é o principio de uma das obras mais importantes da história da literatura, esse marco incontornável da narrativa do século XX intitulado Cem Anos de Solidão, de Gabriel García Márquez, no entanto também se pode encontrar no inicio do último livro da filósofa espanhola Adela Cortina.

Ao analisarmos estas linhas de Gabo com tempo (não necessariamente proporcional ao título da obra), apercebemo-nos que toda realidade material se pode apontar com o dedo: uma cadeira, uma caneta, uma revista, uma pessoa, etc. É demonstrativa, definida pela sua tangibilidade. Por sua vez, o que é imaterial, intangível, o que não se pode apontar, necessita uma significação. É por essa razão que ao amor, à compaixão, à lealdade, à ética, à democracia, entre uma quase infinidade de conceitos, há que pôr-lhe um nome. 

Adela Cortina reforça e justifica o uso desta citação com a sua observação dos avanços na meteorologia, na forma como são comunicados aos neófitos as baixas pressões, ciclones e anticiclones. Note-se que, quando se põe um nome a um fenómeno meteorológico, é mais fácil as pessoas identificarem e prevenirem-se dum furacão Katrina, duma tempestade Ana ou dum tufão Jebi.  A partir destas realidades tempestivas ilustra-se a necessidade de significação mencionada. Curiosamente, o mesmo se passa com “a palavra do ano” em Espanha, uma palavra cuja eleição tem por base a sua capacidade transformadora da realidade: Aporofobia.

Aporofobia, do grego á-poros (pobre, desvalido) e fobia (medo, desconfiança), foi eleita a palavra do ano graças à obra Aporofobia: el rechazo al pobre (em português a rejeição do pobre). Adela Cortina justifica este vocábulo com o que ela considera um uso constante e desajustado da palavra xenofobia, denotadora de receio ou temor ao estrangeiro. Apesar dos inúmeros fenómenos xenófobos, não é de isso exactamente que o século XXI está a padecer. Sejamos sinceros, há muitíssimos estrangeiros bem-recebidos, nem é preciso dar mais exemplos do que os desportistas de elite ou os tão benéficos turistas para o PIB. Estamos perante seres humanos cuja diáspora de um continente para outro é feita entre a 1ª Classe ou o Low Cost, em meios de transporte que não se afundam facilmente no Mediterrâneo e não têm de saltar muros e arame farpado para chegar ao seu destino.

Porém, com os pobres, estrangeiros ou nacionais, não se sabe o que fazer com eles. Os desfavorecidos não se recebem com música e colares de flores, tipo Ilha da Fantasia ou Barco do Amor, recebem-se com desconfiança e hostilidade, portanto, para esta filósofa valenciana, havia que encontrar uma palavra, pois apontar com o dedo não é suficiente para identificar esta rejeição ao pobre e não exclusivamente ao estrangeiro.

A políticos, como Donald Trump, não os preocupa os estrangeiros, basta vê-los rodeados de xeques árabes, perfumados a petróleo. Os pobres sim. Por isso promove-se a ideia dos mexicanos, no caso dos EUA, irem roubar trabalho, aumentar a delinquência, depauperar a segurança social, e, logicamente, isso assusta as pessoas em situação social média/baixa, mas que ainda vão subsistindo do seu trabalho e acreditando numa cultura de self made men mais artificial do que natural.

Por todo o mundo a aporofobia aumenta, contudo também há quem se posicione contra esta forma desumana de existir, veja-se a recepção do Aquarius em Valencia, onde ancorou mais do que um barco, ancorou a esperança da dignidade da vida humana estar por cima de fronteiras, nacionalidades ou condições económicas. 

Quando não existe uma palavra para designar o que quer que seja, vive-se a ilusão de não fazer parte do mundo humano. No Alentejo há uma expressão empírica para isso: chamar os bois pelos nomes. A aporofobia existe (e talvez sempre tenha existido, penso eu), tal como essas tempestades estudadas pelos Institutos Nacionais de Meteorologia, por isso, para evitarmos entrar no olho do furacão, numa espiral sem retorno, temos de questionar, como preconiza Cortina, o que nos parece bem: este caminho de exclusão ou de compaixão. 
"Aporofobia, el rechazo al pobre" de Adela Cortina



O simples

O simples é de
mau gosto, diz o livro.
Será rococó?

As manhãs

As manhãs que se
constroem com os dedos.
Sol na memória.

sexta-feira, dezembro 28, 2018

Cyclone and Power Hot

Ontem ao ar livre da manhã na «aCourela», o Xavi esteve a lançar o seu avião de papel acrobático. Foram «loopings» de risota solarenga até que o sol decidiu tapar-se e mandar-nos para casa. Mas estes «ases indomáveis» do chinês continuaram a voar em casa. Ao «Power Hot», do meu mais pequeno, juntou-se o «Cyclone» do irmão mais velho que descolou do hangar da caixa dos brinquedos. 
Juntei-me a eles e fomos até onde estas asas nos levaram de viagem... duma ponta da sala à outra!

quinta-feira, dezembro 27, 2018

«O Senhor Ventura», dia de Natal e quase porrada... (25/XII/2018)

Num banco da Praça Rodrigues Lobo, o sol do dia da Natal estava a deixar de ser convidativo para odisseia de «O Senhor Ventura», esse alentejano de Penedono que Torga imortalizou em 1943, um ano depois de ter abandonado a prática clínica nesta mesma cidade de Leiria. O frio a aumentar e o Pereira a expirar na história levaram-me a caminhar pelo centro histórico. Em jeito de homenagem à minha literatura de bolso, passei pela placa a assinalar o local do antigo consultório de Adolfo Rocha ("em literatura Miguel Torga") e continuei, pela Rua Direita (ou do Terreiro, não sei bem) a tentar evitar a rijeza a pairar-se-me sobre o corpo e a pensar em passos de poeta. Estes pensamentos não passam disso, uma má imitação. As minhas divagações encarregam-se de me pôr no caminho autêntico, de me atirar à cara ridículas emulações, pois sempre terminam com um ponto final parágrafo de realidade.

Por essa mesma zona, cruzei-me com dois indivíduos, jovens, roupas e boné hip-hop, tatuagens no pescoço, claramente sob o efeito do álcool ou das drogas. Sou de desconfiança discreta. Não estigmatizo, mas não abdico de estar alerta, detectar sinais. Acredito que para sobreviver, no sentido mais abrangente da palavra, necessito observar a natureza humana e, se necessário, desconfiar em silêncio, sem alarido. Assim foi, assim é.

Um deles, visivelmente, queria afastar-se do outro a falar-lhe alto, ao mesmo tempo que me abria passagem pelo velho e estreito urbanismo leiriense. O outro não, não se ficando por falar alto. Deu passos na minha direcção, parou-se no meu caminho, perguntando se eu era português. Instintivamente, dirigi os meus passos para a esquerda, afastando-me do bloqueio. Nesse momento, uma mão, a agarrar-me o ombro direito, intrometeu-se no meu corpo. O instinto não parou e o meu braço direito, sem o tronco se virar para trás, fez um rápido movimento circular que afastou e empurrou o intruso do meu espaço vital. O larga-me pá! simultâneo denunciou a minha nacionalidade, enquanto sentia o ar duma patada desequilibrada e um vitupério de filho da puta, levas um sovão! ou qualquer coisa do género em que insultava a minha mãe. Continuei o meu caminho, sem responder a provocações de anda cá, parto-te todo!, com o olhar periférico a controlar diagonais.

Ao virar da rua, ainda sem ninguém na mesma, senti a adrenalina a tremer-me as pernas e um ligeiro desejo de violência. Foi ligeiro, pois tal como me reconheço na necessidade da calma, também sei identificar perfeitamente a brutalidade do sangue e do contacto com os nós dos meus dedos. Talvez as aventuras do Senhor Ventura, alentejano secundado pelo jogo do pau do amigo minhoto, horas antes me tivessem pedido acção. Porém, o ponto final estava posto quando me levantei do banco para aquecer o que restava de luz do dia. 

Literatura e vida tendem-se a confundir. Não discuto, nem contra-argumento. Jamais algo que diga, ou escreva, trará algo útil à discussão. Eu apenas fiquei com mais um Natal riscado na fuselagem, um livro quase terminado no bolso e com a sensação ridícula de ter quase quarenta anos e ainda haver gente a querer provocar-me para andar à porrada, como nos meus, já quase longínquos, dezoito anos.

A prudência faz-me agora estar a escrever esta nota de diário e ver os meus filhos a brincarem e a rirem. Quando puser o ponto final, vou levantar-me e brincar à "porrada" com eles. A natureza ensina o leão a proteger os seus domínios. Nós de leões não temos nada, quanto muito um bocadinho de bovinos a pastar na charneca, mas temos o domínio da nossa integridade física e psicológica para defender. As pernas vão sempre tremer, esperemos que o menos possível.  





Diante do mar (S. Pedro de Moel, 26/XII/2018)

Diante do mar
os pés abalam a fé
em terra firme.
Foto de Elsa Lopes

A alma deste cavador (Haikus Alentejanos)

A alma deste
cavador resiste dura
ao chão bravio.


Velha enxada.
Metal, madeira, seca
em mãos humildes.


Esbarrondou-se
o barranco sobre mim.
Morro com terra.


A charneca tem
trigo e horizonte.
Olhar de ganhão.


A memória
de maioral resiste
ao sol de Verão.


O rafeiro vai
ao monte cumprimentar
velhos malteses.


Na taberna há
versos, vinho, pão, cante
e muitas petas.


De navalha no
bolso sou ganhão, maltês,
neto de feitor.


Fui investido
ganhão pela navalha
do Mestre João.


A navalha vai
migando a fome ao
pão e bolota.


Fio de azeite.
Ostento a riqueza
da oliveira.


Sobreiro velho
dá sábia cortiça.
Aprendeu ao sol.


Não enxota nem
exclui a azinheira.
Olhem "pós" porcos.


A árvore dá
sombra e memória
a esta terra.


Enforcou-se a
nascente no ramo da
vide eterna.


Velhas palavras
habitam nestes torrões.
Pó. Memória.


A fonte secou.
Magano o destino
alentejano.

quarta-feira, dezembro 26, 2018

As raízes (Leiria, 26/XII/2018)

As raízes deveriam de sempre ser cordas e escadas penduradas para um futuro honesto com o passado...

Vibrações, de Jacob do Bandolim (Trio Brasileiro)


O Trio Brasileiro interpreta Vibrações de Jacob do Bandolim.

Douglas Lora - violão de sete cordas
Dudu Maia - bandolim
Alexandre Lora - pandeiro

The Living Room, NY, Fevereiro/2012




segunda-feira, dezembro 24, 2018

«Costumo dizer...» - Onésimo Teotónio de Almeida

Costumo dizer: quando fui para a Terceira, percebi que era micaelense. Na Madeira, senti-me açoriano. Em Lisboa, vi que era insular. Em Espanha, reconheci-me português. Em Paris, já era ibérico. Nos EUA, europeu. Na China, achei-me decididamente ocidental. Se um dia for a Marte, hei-de sentir-me terrestre

Onésimo Teotónio de Almeida (2014)

As andorinhas

As andorinhas chegaram para o inverno na aCourela...

domingo, dezembro 23, 2018

O avião de papel

O avião de
papel é a pureza
lançada no ar.
"O avião de papel" - Luis Leal

"O Primeiro Presépio" - Luis Leal (in "Rayanos Magazine")

Ver o Natal brilhar nos olhos dos nossos filhos faz-me voltar à época natalícia da minha infância. Longe do consumismo do século XXI, fazer o presépio e a árvore de Natal em casa dos meus pais marcava a contagem decrescente para o dia 25 de Dezembro. Lembro-me do primeiro pinheiro artificial que tivemos (como tanto de nós, acabou em casa dos meus avós) e das figurinhas do presépio que a minha mãe foi juntando ao longo dos anos. 

Ir ao musgo, procurar essa relva em miniatura (ainda há uma semana vi em Lisboa o vasinho a 5€!), era uma tarefa que significava estar quase a chegar a celebração do nascimento do Menino Jesus. O nosso presépio fez-se, durante anos, no lugar da lareira que não acendíamos e só anos mais tarde albergou uma salamandra. Retirávamos a caixa de Skip redonda dos meus brinquedos e a braseira de cobre para, durante mais ou menos um mês, erguermos uma aldeia cujos lagos eram fragmentos de espelhos, a vegetação musgo da quinta dos meus tios ou do descampado em frente da linha de comboio. E a neve, essa precipitação que só viria a conhecer bem gaiatão, eram dedos polvilhados de farinha e pedacinhos de algodão. Por entre pastores, rebanhos, a Leonor a ir à fonte, um poço na colina e uma ponte sobre água estagnada a refletir a minha inocência, lá foram Playmobiles, Legos, GI Joes, e até o He-Man e o Skeletor, junto aos Reis Magos, adorar o recém-nascido salvador.

Verdade que o presépio da minha meninice foi guardado numa velha caixa de lata azul e expatriou-se, se não me engano, para casa da minha irmã. Hoje, minha mãe tem vários presépios nas vitrines da sala de jantar. Herdou esse gosto da infância que só nos últimos anos pôde consolidar. Porém, o seu humilde presépio, o primeiro, teve três infâncias: a sua, a da minha irmã e a minha.

Este Dezembro, com um presépio Made in China e musgo virado a norte no campo aberto à infância dos nossos filhos, fizemos o primeiro Portal de Belén na aCourela. Para eles, como para mim, as figurinhas pouco diferem da bonecagem com que brincam, contudo o acto foi simples e solene. Só se faz uma vez ao ano, tal como infância só se tem uma, dure ela o tempo que durar.

Procuro-me constantemente nas palavras dos outros. Há poucos autores nos quais posso dizer que sempre me encontro. Manuel António Pina é um dos escassos nos quais me encontro com tanto adrego como encontro um bom amigo, do qual há muito nada sabia, ou esse velho livro, metido bem para o fundo da estante, que tanto fez por mim. Por mais estranho que me pareça, nas suas palavras sinto que sou eu, que somos nós: 

Como a infância, o Natal é algo que só podemos ter quando o perdemos. Quando somos crianças, o Natal é próximo de mais, e real de mais, para ser verdadeiro. Só a memória (e a memória construímo-la como um presépio: com pedaços) o torna verdade. E só a memória nos permite saber, enfim, algo essencial: que o Menino da manjedoura éramos nós. 


"O Primeiro Presépio" (Foto: "aCourela do Alentejo")

sábado, dezembro 22, 2018

Ser pontual

Ser pontual é
um mau karma que tenho.
Soube-o tarde.

"0:00:00/24:58:39" - Luis Leal

O haiku ocidental/acidental

O haiku ocidental tem
três versos de inspiração acidental 
com boa métrica de preguiça.
Imagem de "El sitio de las palabras"


Janela recém

Janela recém
aberta e a saltar
para a manhã...

sexta-feira, dezembro 21, 2018

A divagação

A divagação
nasce sempre de parto 
com epidural.
Autor Desconhecido (Edição Luis Leal)

A duas horas

A duas horas
do solstício olho
para o luar.
"Luar" (Autor Desconhecido)

quinta-feira, dezembro 20, 2018

A poça

A poça lava
o pássaro de todas
as suas penas.
Sparrow Puddle Swimming Water Bird Wet Photos Wallpapers

A vitrine

A vitrine não
é imune ao tempo
nem a passar pó.
Foto: Vitrine "Ikea" (Ikea)

Aristóteles

Aristóteles
ri à gargalhada do 
pum atrevido.


Não escolhes...

Não escolhes o
tempo que marcas, sabes
porquê relógio?

segunda-feira, dezembro 17, 2018

Depende da corda, ou da má qualidade da pilha, o livre-arbítrio do relógio.

Provincianos?

Provincianos
os prédios do bairro?
Com muito gosto.

Sol a expirar

Sol a expirar,
a reconciliar-nos
com o domingo.

Azud, 16/XII/2018

sábado, dezembro 15, 2018

Espanta-espíritos...

Espanta-espíritos em árvore amputada...  (aCourela do Alentejo)
Espanta-espíritos 1 (aCourela do Alentejo)

sexta-feira, dezembro 14, 2018

O tubarão

Nesta cama o
companheiro de sonhos
é um tubarão.

(a propósito de sonhos e pesadelos induzidos por Steven Spielberg)

quinta-feira, dezembro 13, 2018

Joaninha Amendoeira (aCourela, Nov./2018, foto de Elsa Lopes)


Joaninha Amendoeira 1 (aCourela, Nov./2018, foto de Elsa Lopes)

Joaninha Amendoeira 2 (aCourela, Nov./2018, foto de Elsa Lopes)

«Parece que se pone lentes el paisaje» - Ramón Gómez de la Serna

(...) «Algún pintor se ha inspirado en ellas y las he visto realizadas, como en aquel cuadro de Souto, que pintó al óleo la que dice que cuando pasa una bicicleta por lo alto del camino parece que se pone lentes el paisaje.» (...)
in «Greguerías, Selección 1910-1960».

Haiku de wc

Vou ao wc e já
está alguém ao lado.
Oiço defecar.

Entre silêncios

Entre silêncios
pára um coração só
para contemplar.

«Não avances tão depressa»

Não avances tão
depressa noite dentro.
Ocultar-te-ás.

(a propósito da memória)

12/XII/2018

terça-feira, dezembro 11, 2018

A gata lambe

A gata lambe
restos de iogurte.
O que sentirá?

“Ontem caminhei...” (Casimiro de Brito)



Ontem caminhei
nos campos de chuva; hoje
chove dentro de mim.

Casimiro de Brito


segunda-feira, dezembro 10, 2018

Manchester by the sea... (08/XII/2018)

A vida, neste filme de Kenneth Lonergan, é tão frágil como profunda em aleatoriedade e humor. Eis um belo reflexo da condição de ser-se humano, imperfeito, arruinado na culpa de um erro do passado ou responsável pelo legado, em forma adolescente de vida, de um irmão sempre aí até que o seu coração parasse e mandasse o seu corpo para a câmara funerária frigorífica. 
O silêncio incómodo para o outro, é a forma de sobreviver, de chegar ao final arrastando sofrimento em imagens emolduradas de três vidas perdidas nas cinzas...

A noite terminou com o final deste «Manchester by the sea». Nunca a dor e a agonia poderão ser belas para quem as sofre, porém, este filme está repleto de beleza, incómoda, mas tremendamente visível (mesmo em silêncio...). 

"Manchester by the sea" (Casey Affleck)

«Nuestra revolución artística y literaria...» - Ramón Gómez de la Serna

«Nuestra revolución artística y literaria es tan incomprensible para los revolucionarios sociales que bien podemos nosotros negarnos a comprender sus premisas simples y deleznable. Además, nuestra renovación y desvariación de las cosas es de una programática que va mucho más allá de los alláes». 

RGS in "Almanaque literario" de 1935

Octávio Paz sobre Ramón

"Adrede no he mencionado a Ramón Gómez de la Serna. Para mí el gran escritor español: el Escritor [con mayúscula] o, mejor, la Escritura [también con mayúscula]. Comparto la admiración, el fanatismo, de Larbaud: yo también habría aprendido el español sólo para leerlo. Gómez de la Serna, inmenso como Lope y como él popular, cotidiano, prodigioso, inagotable. Popular y aislado: el cenobita en su ermita de Madrid o Buenos Aires, el solitario «dans son tout au centre de notre capitale, disant précisement ce que nous cherchions a dire». Nunca fue más justo un elogio: hubo un momento en que la modernidad habló por la boca de Gómez de la Serna. Fue tan nuevo que lo sigue siendo... [hoy más que nunca, agregaría yo en 1979]. Fue tan poderoso y generoso que la muerte misma me parece, en sus páginas, saludable. ¿Cómo olvidarlo y cómo perdonar a los españoles e hispanoamericanos esa obtusa indiferencia ante su obra?" - Octávio Paz

(Año XII, tomo XLVII, núm. CXL, "Una de cal...", páginas 186-187.)

domingo, dezembro 09, 2018

«Luke, this is my bike»

Darth Vader riding his Death Star Bike (unknown author)

sábado, dezembro 08, 2018

Musgo lisboeta (Lisboa, 08/XII/2018)

É época de Natal e fazem-se presépios por este Portugal fora. O musgo, como já por aqui divaguei antes, é um elemento típico desta decoração natalícia e acredito que, em plena Lisboa, não seja fácil encontrar locais virados a norte (para o Porto caso não se dominem pontos cardeais) onde abunde musgo para tantos presépios. O que não estava à espera era encontrar vasinhos de musgo a cinco euros num mercado da capital. Seria musgo do bom certamente, pois figurava entre vários produtos biológicos e o vaso era redondo e verdinho. Por instantes, pensei num possível nicho de mercado, nas grandes quantidades de pedras musguentas que temos espalhadas pela «aCourela». Depressa se desvaneceu o espírito empreendedor. Olhei para aquele musgo e vi-o já a secar, longe da paisagem propícia ao seu manto tão verdejante como humilde. Vi-o como eu. Um provinciano que entende a grande cidade à distância da possibilidade de ter um pé no asfalto e outro na terra. Tive mesmo para comprar um vasinho e transplantá-lo para terras raianas. No entanto, cinco euros são cinco euros e, por mais que eu empatize com um musgo desenraizado e triste, preferi gastá-los num alfarrabista... Não é todos os dias que abandono a paisagem e venho a Portugal, perdão a Lisboa, ser turista!

Musgo em vaso

Musgo em vasos.
Cada um cinco euros.
Preço urbano?

Sol de Inverno

Sol de Inverno
assoma-se através
deste Outono.

«Toda a verdadeira vida é encontro» (Martin Buber, «Eu e Tu»)

Lembro-me de ter apontado esta citação de Martin Buber, «Toda a verdadeira vida é encontro», quando li esse clássico de Savater, «Ética para um jovem». Já passaram uns anos desde que li essas fotocópias que não respeitavam o copyright deste notável filósofo, mas que possibilitam o meu bolso, sem grandes fundos, ir formando-se academicamente e como pessoa.
Ainda ando às voltas com ambas formações. Antes não as dissociava, porém a académica apenas pesa por um desejo de ver em papel os anos que se vão acumulando a pesquisar e a investigar por «amor à arte». A pessoa não precisa de certificados e espero que tenha preponderância sobre todos os outros âmbitos. Vou tentando.
Esta semana foi rica de encontros, logo, lembrando Buber, foi rica em vida. Por questões académicas a minha pessoa desfrutou da presença de um ser humano que a enriqueceu. Na Fundação António Quadros, no trilho das vidas de António Ferro e Ramón Gómez de la Serna, tive o prazer de conhecer (e sei que posso dizer «estabelecer amizade») a sua presidente Mafalda Ferro. 
Por entre livros, epístolas, documentos interessantíssimos e inéditos para inumeráveis estudos e teses, foram as pausas, o seu bem-receber, o seu humor, a sua cultura, a sua sensibilidade e o nosso espírito falador, o melhor desses três dias passados em Rio Maior.
A Fundação António Quadros, reúne o espólio de três vidas, as de António Ferro, Fernanda Castro e António Quadros, no entanto, e sem desprimor para os demais herdeiros, uma mais, a da Mafalda, pelo zelo com que mantém os alicerces desta instituição de interesse público.
Já de volta a casa, e já fora dela outra vez, a pôr o cadeado nas bicicletas que nos têm transportado nestes dias, encontra-me uma pessoa que não esperava. Creio que veio cumprimentar-me por algo mais que educação. Posso estar enganado, não encontro razão para interesses ou segundas intenções, pareceu-me estima. Fico contente e cada vez sinto mais que com isso me basta. 
Obrigado Mafalda, obrigado a essa pessoa cuja identidade talvez outro dia revele, na vossa presença, e mesmo rodeado de tantas coisas fascinantes, continuo a lembrar-me desta citação. Até um próximo encontro!

Parem, escutem, olhem...

Parem, escutem,
olhem a natureza.
Simplicidade.

quarta-feira, dezembro 05, 2018

Entre árvores (Coruche)

Entre árvores
jaz o que antes foram
formosos ramos.

Rocinha, 24 de setembro de 2010


"PROIBIDO PARA MENORES No Jacarezinho o menino com máscara de Batman, não tem tempo para a fantasia, a violência acontece ao vivo diante dos seus olhos infantis, fosse ficção ele estaria proibido de assistir - Reuters."

(Fotografía: 24-9-2010)

www.rocinha.org


 


terça-feira, dezembro 04, 2018

Ponto de fuga

Ponto de fuga.
Harmonia felina.
Haicai perfeito.



Ao teu colo (02/XII/2018)

Ao teu colo a
gata encontra-se com
manha e tempo.

(para a Elsa, numa manhã com manha de Domingo)

Ao teu colo... (02/XII/2018)

O caracol diz:

O caracol diz:
Sonha, mas não adormeças.

segunda-feira, dezembro 03, 2018

Rio Maior 03/XII/2018

Estou imerso a estudar o que outros viveram e escreveram há cem anos. Estar um dia inteiro a tentar decifrar a caligrafia de Ramón por enquanto é um desafio fascinante, mas temo que uma futura falta de tempo o faça deixar de ser.
Não sei porque motivo estes autores, cuja cumplicidade estética e literária estou a investigar, começaram a escrever. O peso da modernidade, da vanguarda, por si só seria um motivo, porém o que é que despoletou nestes dois seres humanos, separados por uma fronteira, a vontade de se tornarem escritores? Outras perguntas até sou capaz de responder, mas esta não e tampouco traria nada de importante ao nosso estudo.
Hoje mesmo pensava porque motivo me agarro às palavras como uma tábua a flutuar de um naufrágio. Talvez por ler tantas citações tenda a dizer que escrevo para os meus filhos, para que eles, algum dia, saibam que tipo de homem foi o seu pai para além do progenitor rotineiro do dia-a-dia. 
Não é que exista uma fraude nessa afirmação, mas as palavras acompanham-me desde há muitíssimos mais anos do que aqueles que os meus filhos vieram à luz.
Ainda hoje, enquanto esticava as pernas no final de dia em Rio Maior e via como as luzes de Natal iluminavam o fecho do comércio da cidade, tive dificuldade em aceitar a minha solidão apesar do corpo e da alma ma solicitarem. 
Sei que houve uma época que redigia para deixar constância da minha solidão. Agora não. 
Dar uma resposta ao porquê escrevemos é fechar a porta ao exterior daquilo que somos e qualquer contestação que saia da nossa boca será apenas isso, uma delimitação. Um fecho. 
Por vezes sei, muitas vezes não e cada vez menos isso me importa.
Estudo os outros porque, desde que sei escrever, preciso de me entender a mim.

O touro pasta

O touro pasta
ciente de estar nos
próprios cornos.

(entre Évora e Montemor-o-Novo)