"Viagem à terra dos canivetes" - Luis Leal ("Mais Alentejo" nº137, pp. 24, 25, 26)

Um dos lugares-comuns sobre a Suíça é que é um país de evasões. Isso é indubitável, mas nem todas as evasões têm porque ser fiscais. Com tanta informação hoje em dia, o mundo parece-nos mais fácil de compreender, mais acessível à mobilidade física e intelectual do ser humano, porém, a meu juízo, muitíssimo mais complexo e com novos estereótipos a nascerem desse turbilhão informativo. Talvez o interesse e a curiosidade sejam a melhor maneira de combater ideias preconcebidas, além de nos ajudar a entender o porquê de existirem estes lugares-comuns.

A noção de Suíça chegou à minha geografia montada num Toyota Celica, estacionado com frequência ao fundo da minha rua, uma matricula emigrante que me apresentou este país, esta comunidade helvética, simbolizada por uma cruz. Mais tarde, o escasso conhecimento somado foi graças a um herói televisivo, de ténis e blusão de cabedal com chumaços, cuja arma de destruição massiva - tão pouco típica dos músculos hipertrofiados da época - era a funcionalidade multiusos dum canivete suíço. Esta série de domingo à tarde, que recolhia Portugal às suas casas, subliminarmente, passou-me a ideia de a Suíça ser um país funcional e pragmático, sem sequer imaginar ser este um país exemplar para a engenharia e as mega infraestruturas. Hoje já entendo o porquê do Celica suíço do bairro. Devia ser pela necessidade de esticá-lo nas más estradas portuguesas. Experimentem fazê-lo nas belíssimas autoestradas suíças e receberão, de imediato, um simpático postalito em casa por parte das autoridades competentes! 

Apesar dos ecos pop dos 80’s, foi a amizade, como também a concorrência de várias companhias a operarem Lisboa-Zurique, com vários voos diários, que me levou a este país.

Tínhamos pensado usar os transportes públicos, mas o conselho autóctone avisou-nos ser mais em conta o aluguer de carro e não nos arrependemos. Quatro dias para pouco servem, mas, se temos alguma mobilidade, conduzir pelos Alpes suíços é uma experiência única, ainda por cima se S. Pedro decide brindar-te com um tempo invernal radioso.

Recém-aterrados, o pequeno carro alugado via net que nos esperava foi simpaticamente substituído - sem alteração do preço contratado! - por uma gama mais alta, graças à atenção da amável funcionária ao ver-me chegar com a família completa. O susto das mudanças automáticas foi logo substituído pela comodidade suave da condução contemplativa desta região.

Ir à Suíça, em tão pouco tempo - sempre melhor que tempo nenhum - deve ser uma experiência para degustar ao ritmo de cada um, mas, se me permitem a sugestão, preferencialmente de maneira lenta e intensa, como o chocolate deste país.

Longe de ser guloso, aprendi a desfrutar desse derreter lento a lambuçar-me de endorfinas. Porém, como em todos os momentos em que há fartura, não sou pessoa de me saciar à bruta. Assim foi na fábrica e museu do chocolate Frey que visitámos em Suhr. Recomenda-se a experiência e degustação das fontes de chocolate, com destaque para a mesa rolante que, em vez de sushi, nos serve todo o tipo de derivados do cacau!

Ao final da tarde, início da noite, Zurique esperava-nos no mercado de Natal, na zona de Stadelhofen, com “Glühwein” (vinho quente) para aquecer as mãos e ruborizar a face, mesmo em frente a uma elegante Ópera iluminada a condizer. Olhava para os olhos grandes, mas pequenos de experiência, dos meus filhos e via como todo o ambiente da cidade os fascinava. O facto de terem visto um velho São Nicolau de Harley Davidson, talvez ainda os tenha deixado mais despertos para a época natalícia já em alta.

Os reflexos da iluminação cosmopolita de Zurique no rio Limmat ofuscam as diferenciações sociais feitas por esta cidade dentro do seu próprio burgo. Achei piada à zona de Kusnacht, onde mora a rainha do rock, Tina Turner, mas também à sua congénere Wipkingen, dedicada à realeza dos que trabalham sem tanto glamour. 

Queria muito visitar o Cabaret Voltaire, esse mítico clube artístico no coração da cidade, no qual os dadaístas de Hugo Ball se reuniram para a posteridade. Omitir a minha decepção não seria honesto da minha parte. Fiquei com o busto do autor de Cândido na memória do telemóvel e com a reflexão no bloco de notas de que a nossa Brasileira e o modernismo português deveriam ter melhor marketing ao nível da história da arte mundial.

À raiz desta divagação, no dia seguinte, sem nos apercebermos, rumámos a Flumserberg, aos Alpes, na região também conhecida por Heidiland. Depois de tantos anos, foi necessário ir à Suíça para saber que a Heidi, esses desenhos animados da nossa infância sobre a vida duma menina órfã a viver com o avô, é, na realidade, uma adaptação de literatura infantil do final do século XIX da autoria de Johanna Spyri. E eu que pensava que era uma invenção ocidental do Hayao Miyazaki…

Percorremos cada quilómetro, esperamos que à velocidade permitida (de momento ainda não chegou nenhum postal de boas festas da policia suíça), com um prazer igualmente infantil. Na estação de ski de Flumserberg vimos como os desportos de inverno e de montanha são importantes para o ócio dum povo acostumado ao frio sem jamais renunciar ao ar livre. Enquanto as crianças brincavam com a pouca neve do dia, convertida num mini-boneco de neve com uma cenoura no nariz, podemos provar uma tradição quente-fria alemã chamada “Kaiserschmarrn” numa esplanada alpina e solarenga, tal qual como em Portugal, as crianças brincam na areia e os pais comem uma caracolada à beira-mar. Muda a altitude, a paisagem, a temperatura e, consequentemente, a indumentária, mas o sol é o mesmo para todos.

De volta a Zurique, na conhecida zona de Uster para tantos portugueses, mais actividades típicas da quadra. Um desfile de Pais Natais generosos para a criançada, distribuindo saquinhos de amendoins e tangerinas, um contraste interessante de energia de alcagoita com a vitamina C do cítrico, quem sabe para combater as gripes sazonais. 

A noite e duas crianças ainda muito pequenas, não permitiram que desfrutássemos do “Käsefondue” (fondue de queijo) ao ar livre como manda a tradição helvética. Fizemo-lo no calor do lar anfitrião acompanhado por pão alentejano, fiel e resistente amigo por esse mundo fora desde a época dos Descobrimentos. Se existiu saudade gastronómica da nossa terra, foi a nível microscópico, de análises de sangue, com uns nostálgicos, e queixosos, colesterol e triglicéridos. 

Há serões que duram para sempre. Os que passámos na Suíça recordar-me-ão boas novas, um cão meigo a brincar cuidoso com crianças, os vizinhos do lado a decorarem um pinheiro comunitário de Natal e as queixas de que passear na Suíça é um atentado à carteira do comum mortal. Sem eufemismos: sem amigos por lá, ser turista na Suíça fica muito caro!

Não me podia ir embora sem passar pelo “Swiss Knife Valley”, um vale sem imitações chinesas, tal qual é impossível imitar a qualidade das míticas navalhas com as quais, como já antes mencionei, Angus Macgyver salvava o mundo! Aqui não fiquei defraudado. Não ir ao berço do meu objeto favorito, estando ali em pessoa, seguramente acarretaria remorsos que fraudes. O museu não estava aberto ao público por remodelações, mas a simpatia da lusofonia, personificada por uma funcionária brasileira, da Baía, levou-nos a uma visita rápida onde vislumbrei o primeiro canivete de 1891.

De volta ao aeroporto, já ao final da tarde, apercebi-me da escassez de apontamentos para este compromisso que tenho com a minha estimada “Mais Alentejo”. Não os necessitava e não me evadiria à confiança do seu director. Os meus sentidos encarregaram-se de anotar tudo. 

Não sei se voltarei à Suíça, do mesmo modo que não sei se voltarei a outros sítios onde gostaria de voltar. É-me indiferente. Tivemos uma curta oportunidade de ir. Eis a crónica duma rápida, mas lenta, viagem.

Nota: Esta crónica de viagem foi intitulada originalmente "Evasão Invernal" por o autor, sendo intitulada posteriormente "Viagem à terra dos Canivetes" por decisão editorial. 

The Counselor

Ver uma referência à obra de Machado num filme sobre narcotráfico é algo que poucos esperariam. Não me pareceu demasiado engenhoso como também não vi a citação totalmente despropositada.
O elenco era de luxo e esta participação inesperada abrilhantou ainda mais o casting, porém a história ficou muito a desejar. A avareza, a ganância leva-nos a caminhos sem volta atrás... Filme fraco, previsível, cuja única virtude, para além da introdução, algo forçosa, do poeta de Sevilha na trama, foi uma esparregata da Cameron Díaz no para-brisas dum Ferrari. Elasticidade digna de nota e uma carga sexual desconcertante, bem filmada e elegantemente narrada.

«No corras. Montar en bici no consiste en correr» - Miguel Delibes

(...) Mi padre, a la vuelta siguiente, frenó mis entusiasmos:
- No corras. Montar en bici no consiste en correr.
- Ya.
Le cogí el tranquillo y perdí el miedo en menos de un cuarto de hora. Pero de pronto se levantó ante mí el fantasma del futuro, la incógnita del «¿qué ocurrirá mañana?» que ha enturbiado los momentos más felices de mi vida. (...)

Miguel Delibes in «Mi Querida Bicicleta», p. 4.

domingo, fevereiro 26, 2017

Liberdade é como saborear...

Liberdade é como saborear um passeio de bicicleta sem precisar apostar corrida com ninguém. Basta que a brisa toque em nosso rosto!

Adriana Araujo Leal

«Que ideia mais parva termos crescido»


“Que ideia mais parva termos crescido. Aprender a andar de bicicleta, aprender a jogar ténis, perseguir lagartixas no muro e como tudo isto gela em nós um bloco de saudade.” 
António Lobo Antunes

sábado, fevereiro 25, 2017

Montevideo, "livros e gatos", e a capital dum sonho a claudicar...

Vai fechar livraria Montevideo. Aguenta mais este mês e encerra de vez. Posso considerá-la a livraria do bairro, da minha área residencial, e um local onde gastei dinheiro porque, mais do que os livros, admirava o sonho do livreiro. 
O seu dono é o Julio Abelenda, cujo nome oculta um segredo, uma identidade a necessitar de pseudónimo à força pelo peso da identificação patente na cédula de nascimento: Antonio Machado. Um livreiro chamado Antonio Machado que prefere ser conhecido por Julio é um acto de discrição digno de nota. Sem ter nada a ver com o poeta dos «Campos de Castilla», o Julio podia ter usado o seu nome de nascimento para marketing tipo «A livraria do Antonio Machado». Talvez essa falta de promoção, fruto do carácter discreto do proprietário, também seja uma parcela na equação que levou ao anúncio do seu fecho. 
"Livros e gatos", esse era o seu slogan. Dava gosto ver os dois gatos a caminharem, a patas seletivas, por entre os livros ou a serem uma estátua viva ao sol numa estante a jeito. Um deles, creio que o preto, chama-se Onetti. É engraçado primeiro conhecer um gato e só depois um autor.
Uma livraria é um negócio como outro qualquer. Para mim é uma ameaça à carteira pelo estímulo constante a abri-la. Porém, de todas as atividades de troca de bens por dinheiro, parece-me ser a que fica sempre a perder. Um livro quase sempre te traz algo imaterial, inquantificável, que fica e não se digere ou usa como a roupa. Ou talvez não. É dos negócios mais enganadores, faz-te pagar por o que, mais cedo ou mais tarde, deverias ter disponível na biblioteca pública ou na web... Não sei. "Mixed fellings, they say".
Fecha a Montevideo. O Julio, ou o Antonio, como queiram, confessou-me sentir-se aliviado e sem arrependimentos. Empreendeu o sonho de vender livros, arriscou escolhê-los e recomendá-los, aguentou dois anos, e agora aceita manter os livros e os gatos só em casa.
Há algo parecido nesta atitude à que eu tenho com a arte. Arrisco, no entanto também sei que não posso comer dela. Também eu tenho os meus livros e gatas em casa.

quinta-feira, fevereiro 23, 2017

Que semana!

Que semana! Tantas coisas se acumulam e tanto haveria para se processar. Aponto aqui esta nota, como sempre, porque sei que a memória me atraiçoa e irá ainda mais trair com essa meretriz que é a degeneração celular. Já a música, mesmo se a esquecer, sempre me irá perpassar o corpo, algo que, se já não puder ler ou escrever, o verbo não fará. Basta que alguém a toque ou carregue num qualquer play, bem escolhido!

Primeiro o Mestre Joaquim Soares “foi pra Lisboa” definitivamente. Fiquei sem mestre de cante alentejano.

Segundo, o Sérgio Godinho por cá. O nervosismo de o conhecer e o medo de, como diz o Gonçalo Cadilhe, “gostar tanto do foie gras que fico defraudado quando conheço o ganso”. Tendo em conta recentes experiências, estava acagaçado a esse nível, mas se alguém pôde ficar defraudado foi ele. Vivi um momento marcante, sei-o bem e senti-o ainda melhor. 

Terceiro. O Zeca morreu há 30 anos. Há tanta necessidade de revisitar a sua obra e os valores dos seus versos, a dignidade da sua vida. 

Mesmo se não conhecesse as suas obras, tal como já me referi a Pessoa, indiretamente eles estariam aí para a atenção dum Luis a quem hoje, publicamente, chamaram poeta e sentiu-se tão bem, com um terrível remorso de saber-se arrogante, ao gostar de receber esse elogio.

Passados esses 30 segundos de alago, voltei a mim, ao chão do meu ser e à casa que construo para os meus filhos. Fabriquei um “Golden Ticket” para o meu Charlie, passaporte fantástico para a realidade do sonho, o atrevimento do trabalho e a teimosia de querer sempre saber quanto vale. Nesse papel dourado vi uma grande fortuna. Fabriquei-o eu, atrevi-me eu, mas há sempre alguém, ou algo que nos empurra, nos critica construtivamente porque dá valor ao verbo construir, porque sabe construir. Esses oiço-os com atenção. Os outros que criticam construtivamente e jamais agarraram na pá de pedreiro, jamais sujaram as mãos e a roupa com cimento, jamais levantaram o cu da sombra do sobreiro, esta semana aprendi a não os ouvir. Prestei mais à honestidade da garganta sedenta duma mini por se trabalhar tanto em obras concretas e dizer: vai para o caralho!  

Não valho grande coisa. Valho o que valho. As minhas cicatrizes e gargalhadas não fazem mal a ninguém. Quero ser honesto comigo mesmo. Talvez seja meio caminho andado para sê-lo com os outros. 

Amigo Zeca, trinta anos já?



"Gravado em Roma, disco de solidariedade para com o jornal República e a reforma agrária, editado em 1975, com interpretações de José Afonso e de Francisco Fanhais, numa iniciativa conjunta do Manifesto e das organizações Lotta Continua e Vanguardia Operaria, nunca foi distribuído em Portugal."






quarta-feira, fevereiro 22, 2017

Pela estrada fora...

Há histórias do caraças. Há coincidências do caraças. Hoje a almoçar com o Sérgio Godinho, o Pedro e eu, ficámos a saber que o nosso estimado (e finado) Manuel António Pina foi quem lhe emprestou o «On the road» do Kerouac, quando ambos eram estudantes do liceu no Porto. Para o Sérgio este foi um dos livros mais marcantes dessa época vital e duma itinerância que nunca mais abandonou.
O que emprestou ficou, várias vezes disse, sem complexos, não gostar muito de viajar, dum certo incómodo que lhe causava. O que levou emprestado disse para si mesmo "tenho de me pôr à estrada". Pina e Godinho. Há coincidências do caralho... para não falar que o Zeca foi judoca e o Sérgio ainda bateu com os costados no tatame sem sequer saber que o amigo da adolescência Pina andou pelo Viet Vo Dao até, pelos vistos, se ter lesionado numa costela.

Presentación de Sérgio Godinho en el Aula de Poesía Díez-Canedo (21/02/2017) - Luis Leal

Me arriesgo a decir que ningún poeta portugués posterior a la generación de Orpheu, directa o indirectamente, escapa a la influencia del genio de Fernando Pessoa. Lo mismo pasa con cualquier hijo auténtico de la libertad del 25 de abril, del sueño en forma de clavel, que tampoco puede omitir dos nombres en su “intertexto” vivencial. El primero, del cual dentro de dos días se cumplirán 30 años de su muerte, es el gran y añorado José Afonso. Sin embargo, el segundo afortunadamente sigue activo, creando en plenitud, y se me ha permitido tener el privilegio de estar hoy aquí sentado su lado.

Este hombre, del cual espero decir con aún más orgullo, que este día 21 de febrero del 2017, en esta “Aula Díez-Canedo de Badajoz”, tuve el honor de haber presentado al futuro nuevo “Prémio Camões”.

No es que esto a Sérgio Godinho le importe, es pura divagación mía, pero también un sentir colectivo que desea ver su obra, con más de cuarenta años, reconocida con el más importante galardón de la lengua portuguesa.

Este deseo compartido aquí públicamente con vosotros, es como el “rayo X” de un recorrido biográfico riquísimo. Entre nosotros tenemos a un poeta, un cantante (o «cantautor», ese término español hace mucho exportado al idioma luso), un compositor, un guionista, un actor, un ilustrador, un ser humano polifacético y comprometido con el arte, ese arte en el cual creo y me identifico y cuyo orden no tiene que estar precedido por numerales ordinales.

Para una persona como yo, creyente en que, como en la vida, no hay una única opinión en arte, y que es selectivo con su tiempo vital, Sérgio Godinho es un poeta, un narrador de vidas que me llevó a conocer, entre muchas otras cosas, la dignidad de muchos niños a los que, entre fuegos de artificio, se les amputaba la infancia. Me hizo además discípulo de viejos samuráis, me puso a caminar con Rimbaud en desiertos de amor y me acercó, con su mano incapaz de levantarse en actitud beligerante, a la historia verdadera de la guerra que fue la de mi padre y la de toda una generación, llena de defectos de fábrica, pero que me educó lo mejor que pudo.

Cuando nací, ya la carrera de Sérgio no se podía acotar ni en redundantes cantos de intervención, ni en poesía, cine o narrativa. Es imposible acotar un artista comprometido con el arte, alguien como Sérgio Godinho.  Independiente y solidario, Sérgio acompañó la generación que soñaba con la libertad, que escuchaba más allá de la frontera los ecos del mayo del 68, acompañó las voces ilusionadas con la democracia, el “boom” de una Europa de ilusa prosperidad y los últimos años de precariedad y de Alzheimer en lo que concierne a derechos humanos y dignidad.

Las consignas de hoy son más bien muros y vallas. Sin embargo, Sérgio me enseñó de niño a saber abrazar. Recuerdo la suma de brazos de la “canción de los abrazos” del disco y serie infantil “Los amigos de Gaspar”. Hoy enseño yo a mis hijos que “es tan bueno tener una amistad, hace muy bien saber con quién contar” y espero que un día entiendan con un “brillito en los ojos” los versos: “Hoy hice un amigo y cosa más preciosa en el mundo no hay”.

Pero si hay algo que me fascina en este hombre es la generosidad de su obra. Una generosidad hecha afecto, capaz de unir su canto a nombres como José Mário Branco, Fausto Bordalo Dias o a otro pájaro cuya lírica llevo dentro, Jorge Palma.

Esa generosidad, evidente por su parte en hacer caso a un tío como yo, importunándole para traerlo a Badajoz mientras le otorgaban un premio de carrera, lo lleva a colaborar con las nuevas generaciones de artistas como Helder Gonçalves, David Fonseca, Filipe Raposo, Nuno Rafael, Manuela Azevedo o Nuno Markl.

Otro ejemplo de lo que os comento es, al igual que la buena tradición de la música popular brasileña, Sérgio reconoce el mérito de la obra de los demás y la influencia que tuvieron en su propia obra. Os remito para el aprecio evidente en el disco “Estimadas Canciones” en que nuestro “escritor de canciones” canta a los suyos, a Caetano Veloso, a Violeta Parra, a Chico Buarque, a Zeca Afonso, pero también al rey Elvis, al “rey lagarto” Jim Morrison, a Jacques Brel, a The Kinks o a los cuatro fantásticos de Liverpool.
Pero, amigos míos, el colmo de su generosidad, está en el “elixir de la eterna juventud” que tiene y no le importa compartir con los demás. ¡Su panacea es gratis y está disponible desde hace más de cuarenta años!

Hoy es martes. Para muchos es el primer día del resto de sus vidas, pero para mí es un domingo cualquiera en el mundo en cual el canto de un gran poeta desorganiza la escasa biblioteca de un Luis adolescente. Una desorganización tan grande que le descubre que la vida está hecha de pequeñas nadas, que así es la vida. ¿Qué hay entonces qué hacer?  Vivir.


Muchas gracias Sérgio. Muchas gracias a todos los presentes.








Se... (Alexandre O'Neill)



Foi assim que alguém deixou de beber uisque... "tac", não foi, Luís?


Se... 

Se é possível conservar a juventude
Respirando abraçado a um marco do correio;
Se a dentadura postiça se voltou contra a pobre senhora e a mordeu
Deixando-a em estado grave;
Se ao descer do avião a Duquesa do Quente
Pôs marfim a sorrir;
Se Baú-Cheio tem acções nas minas de esterco;
Se na América um jovem de cem anos
Veio de longe ver o Presidente
A cavalo na mãe;
Se um bode recebe o próprio peso em aspirina
E a oferece aos hospitais do seu país;
Se o engenheiro sempre não era engenheiro
E a rapariga ficou com uma engenhoca nos braços;
Se reentrante, protuberante, perturbante,
Lola domina ainda os portugueses;
Se o Jorge (o "ponto" do Jorge!) tentou beber naquela noite
O presunto de Chaves por uma palhinha
E o Eduardo não lhe ficou atrás
Ao sair com a lagosta pela trela;
Se "ninguém me ama porque tenho mau hálito
E reviro os olhos como uma parva";
Se Mimi Tavessuras já não vem a Lisboa
Cantar com o Alberto...

...Acaso o nosso destino, tac, vai mudar?


Alexandre O'Neill


Do seu livro No Reino da Dinamarca (1958)


"A princípio é simples, anda-se sozinho..."



Obrigado, Sérgio, pela música, porque fazes parte da banda sonora das nossas vidas!





Um primeiro dia

Serão com o Pedro, a Elsa, o Juanra, o Quique, o Paulete, o Manel (o homem que carregou no meu interruptor para ser professor, e não só...), a Helena e o Sérgio Godinho. Parece mentira que passei este momento com quem tanto me abriu as portas da literatura e da vida quando era adolescente... O Sérgio e o Manel...
Continuo igual ao miúdo do bairro. Mas com o privilégio da ousadia de querer saber porquê há gente que se atreve a criar, a sonhar e dar sonhos a outros. O Sérgio Godinho ensinou-me, com canções, a ir por aí como posso. Hoje pude. Estou grato. Somose e estivemos entre amigos e coisa mais preciosa no mundo não há...

domingo, fevereiro 19, 2017

"Foi-se embora para Lisboa", o Mestre Joaquim Soares...

É com profunda tristeza que me chega de Évora a notícia do adeus ao Mestre Joaquim Soares. Tenho a voz embargada, como fiquei as poucas vezes que com ele cantei, pela beleza do “cante”, a fidelidade à terra e o reconhecimento ao homem. 

No “Cancioneiro Popular Alentejano”, na moda “Vou-me embora p’ra Lisboa”, os últimos dois versos são “Chora por mim, que eu choro por ti / Já deixei o Alentejo”. Foi um privilégio tê-lo conhecido. Jamais esquecerei o seu canto e sei que, apesar de hoje se chorar uma travessia do Tejo definitiva, a sua memória continuará a celebrar o património da nossa terra, do nosso Alentejo.

Mestre Joaquim, por onde quer que andemos, o nosso cantar fará sempre pontes…

sábado, fevereiro 18, 2017

Évora: Obra discográfica de José Afonso (1953-1985)

Blogue A Cinco Tons



"Exposição sobre a discografia de José Afonso é hoje inaugurada em Évora" (3 de fevereiro de 2017)


Insisto não ser tristeza
Soluçar sobre uma mesa

E mais não ser deste mundo
Meter navios no fundo

Num caminho de esqueletos
Sempre se plantam gravetos

E se a velhice for tua
Senta-a no meio da rua

José Afonso








Estou convencido da liberdade se encontrar...

Estou convencido da liberdade se encontrar com mais facilidade através da junção de letras do que das operações de números. Para a última a abstração de pensamento necessita alguma liberdade já adquirida pela palavra...

Boomers, Geração X, Millenials...

Conflitos geracionais, quando é que história não os teve? Principalmente a do mundo ocidental, mais propensa a negar o passado do que a assumí-lo. O oriente sempre me pareceu mais dado à síntese geracional do que nós, os de matriz europeia. Atualmente, nem sei o que pensar... vou pensando.
Li num artigo de um jornal inglês que há um conflito geracional assumido entre os «Boomers», nascidos dos destroços da segunda guerra mundial, e os «Millenials», a rapaziada nascida na viragem do milénio. Os primeiros herdaram a esperança cheia de traumas de totalitarismos dos papás, foram bebés em forma de «boom», instauraram o sistema consumista como base dum capitalismo ainda controlado pela necessidade de não cometer os erros que levaram à grande depressão. 
Os segundos, netos ou filhos tardíos dos primeiros, nasceram assistidos na segurança material dos progenitores, crentes em direitos adquiridos, casa acessível apenas na casa hipotecada dos pais, e mercado de trabalho mais flexível do que um contorcionista a trabalhar num circo cujos palhaços assumem-se políticos ao serviço duma cambada de ursos, proprietários da tenda que, vistas bem as coisas, era de todos até ter sido privatizada.
Sem costumes gregários, unicamente nos fóruns e grupos da net, os «Millenials» são os mais formados de sempre, os que tiveram o acesso à informação mais rápida de sempre, os mais inteligentes de sempre, mas pouco habituados a intervirem no mundo não virtual. Esse facto é-lhes atirado à cara pelos «Boomers» que pouco ou nada fizeram para educar o novo milénio com o exemplo, a solidariedade, a empatia. Preferiu-se a competitividade. 
No meio desta geração está, segundo este artigo, a Geração X, e, pelas características e datas imprecisas, deve ser onde o meu nascimento se insere.
Lembro-me em adolescente nos chamarem, em Portugal, «Geração Rasca». Esta memória vem aliada à de um cu ao léu numa manifestação estudantil. Associo a isso o rasca. Um cu contra o poder é um acto de coragem como se veem poucos, todos sabemos como os poderes vigentes costumam tratar o traseiro da gente... Eu nunca me atrevi e acho que não teria valor para tanto.
O «X» marcou-nos a neutralidade nesta luta entre passado e presente, um empate como no totobola. No meio está a virtude, apesar da malta não se ver como grandes virtuosos. Temos uma perspectiva do passado e do presente sem grandes saudosismos e sem soluções técnicas estilo panaceia com ligação Wi-Fi abertas para toda a gente. Vivemos alguma estabilidade climática, poluímos ingenuamente, e agora vemos que isto está tudo ligado e não é só pela Internet que podemos presumir ter democratizado ao «Boomer», com a sua conta conservadora do Facebook, e ao Instagram egocêntrico do «Millenial». Temos pouca, mas alguma virtude, de estarmos no meio de extremismos. Mas é lógico que digam que nem somos carne nem peixe. Têm razão. Gostamos da comida da avó, adoramos o vintage, levamos os nossos filhos à fast food com um brinde à mistura e adoramos gadgets e aplicações que nos facilitem a vida.
No entanto, ao ler neste jornal a equação que me põe numa geração «X», não pude ficar indiferente à minha juventude de OTL num Centro de Dia do bairro. À infância envelhecida no pátio dos meus avós. À geriatria que deixou de ser sinónimo de sabedoria para estas gerações. Foram eles que me falaram da Primeira Guerra Mundial, do Estado Novo, da Guerra Civil espanhola, do Hitler, da bomba atómica... É claro que um rasca como eu prefere dar-se com estas más companhias e acompanhá-las a casa onde sempre partilhavam a escassez do seu lar. 
Para este jornal inglês, apesar da sua monarquia representar um pouco este passado, esta geração já nem geriátrica é. Se não morreram estão a morrer. A sua memória é inconveniente. 
Agora é o preto ou o branco. O cinzento não é pertinente. É mais do que velho... é anacrónico.
Onde está esse velho poeta inglês, que se fez comando na guerra, para lutar contra o fascismo? 
Morreu novo. Não tem geração. Nascem espontaneamente como as belas flores dos campos de esperança...

sexta-feira, fevereiro 17, 2017

Onésimo

«(...) Aprendi a rever criticamente ideias que se instilam em nós como óbvias quando nos circunscrevemos a um único universo cultural. Quando nos confrontamos diariamente com outra cultura apercebemo-nos dos nossos pressupostos. Sobretudo aprendi a pensar muito com os pés no chão e reconhecer a diferença entre o que as coisas são e o que gostaríamos que elas fossem.» Onésimo Teotónio de Almeida (in revista "Visão")

quinta-feira, fevereiro 16, 2017

Dias de profissão sem grande sentido

No outro dia falava com um grupo de alunos, com uma educação e sensibilidade fora do comum, sobre como o «ser amável» me parece estar em vias de estinção.
A sociologia analisa que a origem social determina a educação, o acesso à mesma, e que em classes sociais tendencialmente médias ou altas isso se nota. Nota-se no rendimento académico, mais alto, mais competitivo, mais hiperestimulado por pais com visões do mundo mais tecnocratas ou economicistas. Têm as suas razões para pensarem assim e é totalmente legítima  a sua postura perante a educação dos seus filhos. Falam línguas, dominam o cálculo matemático, já leram bastantes clássicos, muitos já viajaram a mais sítios que muitos viajantes, e são aquilo que alguns docentes veem como alunos ideais.
«De pequenino se torce o pepino», ouvi desde sempre na minha língua materna. Se lhe inserimos todas essas coisas boas, esses arsenais de conhecimento, esse hiperestimulo, o futuro está garantido. Será?
A hipertrofia muscular, e cerebral, cresce dura e sobre tecido dilatado e, se a biologia não me falha, ferido em pequenas microroturas. Por vezes sinto que estou rodeado de gente já formada, que a minha presença ali podia ser prefeitamente substituída por um youtuber, que a minha profissão é dispensável pela técnica dominante sobre o espírito.
No entanto, sei que hão de ser sempre necessários profissionais do ensino, professores normais e correntes, desses que fazem o seu trabalho como outro qualquer, com dignidade, sem aquela muleta constante da vocação ou que se vive para a escola. Faço muitas horas extra, como o meu pai fez num trabalho mais mecânico, como milhares de horas extra de outros trabalhos pagos ou pagos com a exploração do trabalhador. Faço-o por brio e nada mais. Mas sei que faço falta. Que tenho de passar os portões da escola e pôr a máscara. Tenho de ensinar mais do que a minha disciplina, mais do que a minha formação académica. Tenho de ensinar a uma cada vez maioria de jovens que esta profissão, que por esse mundo moderno já poucos querem exercer, mantém um pilar que pode evitar um apocalipse. O pilar da amabilidade, do ensinar a dizer se faz favor e obrigado, seja em que língua for.
Obrigado pelo vosso tempo, pela vossa leitura. Continuo a acreditar no poder da amabilidade, da gratidão, mesmo hoje num dia complicado em que duvido que estejamos no bom caminho.

terça-feira, fevereiro 14, 2017

Sérgio Godinho na "Aula de Poesía Díez-Canedo" de Badajoz (Informação Oficial)

Sérgio Godinho, compositor, intérprete, ator, dramaturgo e escritor, com mais de quarenta anos de carreira e um referente do panorama cultural português, estará no próximo dia 21 de fevereiro, na cidade de Badajoz, para apresentar a sua obra poética na “Aula de Poesía Díez-Canedo”, reconhecida instituição na divulgação e promoção da atividade poética a nível peninsular.

A iniciativa, organizada pela “Asociación de Escritores de Extremadura” (AEEX), apoiada pelo “Gabinete de Iniciativas Transfronterizas” e pela “Diputación de Badajoz”, será a primeira duma digressão literária que levará Sérgio Godinho às cidades de Plasencia e de Cáceres.

O autor fará a leitura pública, às 20:00, na sala de atos do Museu de Arte Contemporânea de Badajoz (MEIAC), tal como se distribuirá o “Caderno de Poesia”, nº 150, com uma antologia bilingue da obra poética de Sérgio Godinho.

O evento, aberto ao público, contará com a presença dos diretores da “Aula de Poesía Díez-Canedo”, José Manuel Sánchez Paulete e Enrique García Fuentes, o escritor e presidente da AEEX, Juan Ramón Santos e será apresentado pelo professor e tradutor Luis Leal.

segunda-feira, fevereiro 13, 2017

"Cheiro a Café" - João Afonso

O cheiro a café e esta música são, sem a menor dúvida, e à medida que os anos vão passando, dois dos meus pequenos prazeres. Guardo religiosamente este disco do João, assinado pelo cantautor, para momentos que não necessitam muitas explicações, apenas os sentidos. "Cheiro a café" não tem nada a ver com os "prazeres" de Brecht, mas para mim são indissociáveis... 

domingo, fevereiro 12, 2017

A família do Charlie e a minha...

Se não fosse pelo meu filho mais velho, a personagem de Willie Wonka, criada por Roald Dahl, passar-me-ia ao lado. Saberia da sua existência, teria uma ideia preconcebida da sua fábrica de chocolate, mas não seria agraciado com o «Golden Ticket» que partilhei com o meu filho, tal qual como Charlie partilhou com o seu avô.
A vida oferece-nos tantos sabores, mas só o verdadeiro chocolate nos liberta as endorfinas do prazer e do bem-estar, semelhante ao que sente um ser apaixonado. Sempre gostei de chocolate, apesar de ser pouco guloso e dado a doces, mas só na idade adulta conquistei esse prazer. Ensinaram-me que há que saborear o derreter lento entre a língua e o palato. Penso que todo lado hedonista necessita duma conquista, seja através dos sentidos, seja através do entendimento, da consciência.
Numa tarde chuvosa, agradável à terra necessitada de água, fizemos programa de sofá. O alemão glutão, a recordista competitiva, a queque mimada e o arrogante, de conhecimento pseudocientífico e televisivo, estiveram a fazer companhia ao pobre Charlie que, afinal de contas, não sofre de pobreza de afectos, pois tem o mais doce de todos os chocolates, uma família unida. 
Somos poucos cá em casa. Fora dela também não há muitos com quem se possa contar como família. Há os que têm que haver e são suficientes. Mas a mensagem do chocolate desta fábrica Wonka é simples. Cada qual tem os tesouros que tem. O do Charlie e o meu é o mesmo. A nossa pequena família.

sábado, fevereiro 11, 2017

Adeus "Homem que caminha"

Parou e não voltou a pôr-se a andar. Jiro Taniguchi, que inaugurou este local de caminhadas feitas com posts divagantes, morreu. Tenho o primeiro livro seu, que comprei e a partir do qual me tornei seguidor da sua obra, «O homem que caminha», nas mãos. 
Era um artista gráfico, um autor de manga, um contador de histórias, que entendi principalmente como poeta. Escrevo esta entrada no blog com um estranho sentimento de ausência, uma tristeza invernal a rematar o dia, calma e rica, se é que a tristeza alguma vez pode ser sinónimo de riqueza. Admito-lhe unicamente a rima.
Há vidas e obras que não acabam. No caso de Jiro Taniguchi já tinha ido ao bairro longínquo antes da definitiva ida. Ele e o homem que caminha só foram dar uma volta por aí...

Ritmos

Se pudéssemos recordar o primeiro som captado pelos nossos ouvidos, seria o ritmo cardíaco das nossas mães. Só depois se elaborariam outras melodias, compassos, vozes, ruídos para o discernimento do nosso sentido da audição. 
O coração late com um ritmo primário, fácil de identificar e reproduzir, porém carregado de vida e emoção. O mesmo se passa com a arte discriminada como popular. É prosaica, identificada com a maioria, emulada e aproveitada, mas símbolo da vida e, sem dúvida, emotiva. Bem perto do coração (um lugar agradável, chamem-me lamechas...).
Quando o ritmo começa a entrar em caminhos pautados por outras composições melódicas, intelectualizadas e trabalhadas mais além do primário e instintivo, a arte assume outra vertente, minoritária e, se assim a quisermos definir, formada e elitista
Coração e cabeça reagem de forma diferente aos estímulos, aos ritmos da existência. Haverá um melhor do que o outro? O politicamente correto não se molha com tomadas de posições que ponham a causa os intelectuais das praças públicas. É assim e sempre será.
Tal qual como os ritmos que aceitamos como nossos ou que queremos ouvir com prazer, só nosso e com mais alguém vindo por bem.

quarta-feira, fevereiro 08, 2017

À procura de água

Desde o líquido amniótico que a nossa vida pende (e depende) para a água. Nesta era, apelidada de moderna, é raro nos apercebermos disso. Estamos cómodos nos nossos recursos diários e, na nossa latitude ibérica, não costumamos dar graças aos céus por abrir a torneira para litros de duche, para o bochechar do lavar os dentes, para a piscina onde nadamos e depois escorremos o cloro, as máquinas de lavar que consomem água invisível, o autoclismo que tocamos e multiplicamos ao longo do dia numa lista, de recursos hídricos finitos, a tender para um uso infinito.
A sede, a privação de água, é das piores e mais intensas sensações que um ser vivo pode sentir. Já a senti, sem chegar a extremos, numa subida de bicicleta até à cidade da Guarda em pleno mês agosto. Também guardo a imagem do ano da canícula, 2002 ou 2003, em que o gado pastava morto no campo.
Como os judeus, também a minha família tem uma terra prometida. A nossa Israel é uma pequena quarela de 5 hectares a sonhar ser sustentável. Não está em conflito com nenhuma Palestina, no entanto, tal qual como Israel, a água é a fonte de toda a promessa, mesmo que esta se disfarce de religião. Nós temos pouca, menos do que a que imaginávamos a jorrar dos cinco furos que lhe fizemos na pele de quartzito e outros minérios.
Ansiar e acreditar em promessas é uma forma de ir molhando a boca, hidratar o suficiente para se manter vivo o sonho de chegar a um oásis. É típico dos mamíferos esta ânsia e desidratam-se sempre mais depressa porque respiram demasiado rápido.
Os répteis fazem uma melhor gestão da sua existência com falta de água e ardem ao sol da pedra sem jamais aquecer uma gota do seu sangue frio.
Sou tão mamífero que sofro deste problema. Respiro de boca aberta e desidrato-me nestas terras quentes de Invernos de solidão. Tenho de aprender com o lagarto.

Ócio e não só

O ócio é o estímulo perfeito para o conjuro. Negar essa evidência parece-me falta de atenção e pouca observação da natureza humana.
Quem conspira, sem valores nobres de liberdade e combate à opressão e tirania do outro, quase sempre encontra na mesquinhez a sua justificação.
Se conspirasse seria logo apanhado. Além de ter pouco tempo, a minha mesquinhez é constantemente travada pela preguiça, que não está prá aí virada, isto é, para aturar-me a mim mesmo.

terça-feira, fevereiro 07, 2017

Encontrar o equilíbrio

Encontrar o equilíbrio, dar balanço e coordenar as pedaladas é fundamental para se aprender a andar de bicicleta. O meu filho mais velho já deixou as rodinhas há um par de meses mas ainda tem de praticar esta arte de andar pela vida, equilibrado em duas rodas locomovidas pela sua força muscular.
Saímos de casa ao final da tarde para aproveitar um pouco do sol de inverno, atrevido no meio destes últimos dias cinzentos, cada um no seu fiel corcel a pedais. O seu irmão comigo, na cadeirinha sentado, observava atentamente como o referente mais velho aprende com a experiência. Tem informação privilegiada e tudo o que o seu irmão mais desejava com esta idade. Um irmão.
Voltámos para casa com a felicidade do tempo juntos e com a sorte de podermos merendar todos juntos. Lembrei-me de quem não pode e quer viver tempo de qualidade com os seus filhos, quando não há saúde e quando não há pão. Nessas circunstâncias por mais que se dê balanço, coordenem as pedaladas, o equilíbrio parece escapar-se por debaixo das rodas.
Não gosto de pensar demasiado na posteridade, sinto-me desmedido em ambição quando a penso, porém, neste caso, e a pensar neles, dentro de mim tenho esse desejo. O desejo de que algo simples lhes fique no íntimo e que valorizem a merenda que lhes reconforta o estômago. 

Eu hei-de amar uma pedra (Vitorino & Janita Salomé)



Vitorino & Janita Salomé - "Eu hei-de amar uma pedra" do disco Moda Impura (2012)

Musica Tradicional do Alentejo
Recolha, adaptação, arranjo e voz (alto), Janita Salomé





segunda-feira, fevereiro 06, 2017

Para bem e para mal

Podemos não gostar de alguém por o que essa pessoa representa aos nossos sentidos. É verdade e sei ter algumas animosidades desse tipo, não me cheiram, não me inspiram confiança ou o puro estilo dum conhecido meu que diz não gostar da obra do Miguel Delibes por este ter sido caçador (talvez também por ser de Valladolid). Esqueci-me de lhe perguntar se também não gosta do Hemingway, do Torga e de mais algum, como eu, com a carta de caçador no curriculum literário e não só.
Não escondo o passado caçador presente nos genes leais ao sangue materno, nem o facto de já ter acabado com a vida de vários animais ao volante do carro fortuito mas nunca com pólvora e chumbo apontados a uma vida. Se o tiver de fazer, fá-lo-ei para me alimentar, ou os meus, porém nunca o farei como desporto. Esta atitude, desde o meu ver, é um ato de respeito pela vida sem ser demasiado hipócrita com a vida que levo.
Este meu conhecido vê esta atividade típica do mundo rural com as dioptrias da cidade, minadas de exemplos bárbaros camuflados de desporto cinegético, e não lhe retiro alguma razão. Pena que fica por aí. Não enxerga a dignidade de bater terreno, esperar pela presa que levará presa ao cinturão, a arte da companhia dum cão, e em casa depená-la, esfolá-la, prepará-la como refeição muitas vezes para matar ou paliar a escassez de alimentos. 
Aqui não há só santos ou pecadores, bons ou maus valores, há a realidade da natureza animal e humana. Com o passar dos anos, cada vez entendo melhor porquê atacava cartuchos com o meu avô João, porquê me ensinou a respeitar primeiro o perigo e depois a utilidade duma arma, porquê aprendi a manejá-las mesmo sem querer usá-las. Sobreviver ensina-se sobrevivendo. Não me esqueço disso tal qual como não me poderei esquecer dos valores transmitidos pelos calos nas mãos cuspidas, valor de como a dor e sofrimento se convertem na nossa própria carne. E eu sou Leal. Para bem e para mal.

domingo, fevereiro 05, 2017

"Morerías" de Elías Moro (“Ediciones Liliputienses”)

Uma “greguería” é um texto breve, semelhante a um aforismo, quase sempre uma única frase redigida numa única linha, que expressa, com engenho e originalidade, reflexões filosóficas, humorísticas, pragmáticas, poéticas, ou de qualquer outra índole. Atribui-se a sua criação ao génio literário de Ramón Gómez de la Serna.

Há pouco tempo, cruzei-me com prazer com estas “Morerías” de Elías Moro, um grande e digníssimo herdeiro da tradição do nosso mestre comum Gómez de la Serna. Esta obra (editada pela “Ediciones Liliputienses”) tem Lisboa na capa, Ramón também teve Portugal na sua obra, e Elías apresenta-nos pequenas delícias às quais o leitor atento não fica indiferente. Eu não fiquei. De tantas “morerías” que poderia ter traduzido, as que aqui vos deixo foram de imediato sublinhadas. Recomenda-se a leitura do original, acessível ao leitor português cuja tradição literária portuguesa também conheceu um "Gómez de la Serna luso", o sempre polémico António Ferro.

Eis algumas “morerías” do amigo Elías:

Os calos nas mãos são o sofrimento feito carne.

Os ramos da árvore, nus e indefesos contra o frio, são como um ideograma chinês a falar-nos do verão que perdemos.

A gabardina é um guarda-chuva cujas varetas são os nossos ossos.

O cisne, narciso tenaz, interroga-se continuamente se outrora fora patinho feio.

O leão há tempo que deveria de ter ido ao cabeleireiro.

Os peixes, às vezes, sonham com toalhas.

Na cabeça dos carecas, as orelhas adquirem de imediato uma importância que antes não tinham.

O escorpião traz um apóstrofo letal ao final da cauda.

O ataúde é um móvel do qual não desfrutamos.

O helicóptero é uma libélula que se transformou num monstro.

Os forenses nunca discutem com os seus pacientes.

O pedalar da infância dura-nos toda a vida.

Como pacíficos ursos de tecido, os casacos e pulloveres, os cachecóis e as luvas, hibernam durante o verão.

O pião é o mais bailarino de todos os brinquedos. Até se espaldeirar.

O nariz é o nosso radar portátil de aromas e odores.

O rábano envergonha-se do seu destino de hortaliça; a isso se deve o seu exagerado rubor.

Testamento: cruel vingança do morto contra parentes indesejáveis.

O parafuso sem a porca não é mais do que um solteirão de ferro destinado a enferrujar em solidão.

Fotografia: recordação do esquecimento que será.

O ciclista é o escravo a rodar do equilíbrio em movimento.

Na época dos melões, os agricultores jogam rugby com a colheita.

O novelo, entediado no cesto da costura, sente saudades do gatinho brincalhão.

As gotas de suor gostam de suicidar-se desde a ponta do nariz.

O ouriço zangou-se com todos os pentes.

Azinheira: medusa imóvel do montado.

Os sobreiros são todo o campo que verão, até os cortarem, as árvores da cidade.

A preguiça é uma das formas mais confortáveis de rebeldia.

O maior desejo do dandi é morrer na moda.

O giz arranha o quadro para arrancar-lhe os seus segredos.

Uma carícia imprevista é como música na pele.

A toupeira conhece melhor do que ninguém os diálogos secretos dos mortos. E, discreta como é, leva-os consigo para a tumba.

O jornal ri-se de nós todos os dias com as mentiras que nos conta.

O espantalho está desejando que lhe demos um abraço.

As bailarinas das caixas de música sentem-se um pouco como os burros de nora.

O buraco da fechadura multiplica a beleza do proibido.

A cicatriz é a memória da ferida.

A máquina de lavar roupa gosta de comer uma meia de vez em quando.

O café é uma infusão vestida de luto.

Um solteiro de férias dá sempre um bocado de pena.

A bússola está apaixonada pelo Norte.

Enquanto nos barbeia, o barbeiro tem a nossa vida nas suas mãos.

O tradutor é um contrabandista amável de linguagens e idiomas.

Ao malmequer nunca se lhe pergunta se bem quer ou mal quer alguém.

A memória é a arqueologia dos próprios sentimentos.

Poeta: tradutor do silêncio.

(Estas “morerías” foram traduzidas para português por Luis Leal)

Companhia... e cafeína

"Queres um café?" é uma pergunta que gosto de fazer. Quase sempre junto à máquina, à espera que aqueçam as resistências, sou grato pela companhia e o meu corpo agradece a cafeína...

sexta-feira, fevereiro 03, 2017

Pousos

Esta terra tem este nome, segundo me foi explicado, porque aqui se "pousava" o gado para descansar por esses caminhos da "trashumancia". Havia sombra de pinheiros e camalhos de caruma. O pastor, talvez nas horas livres resineiro, socorria-se do pinhão para alimentar as horas de pé, a caminhar ao lado dos animais.
O vento está em alerta significativo, laranja parece-me que ouvi na rádio, agita as árvores altas e recolhe os habitantes da freguesia a casa. Estou com eles, num santuário caseiro dedicado ao glorioso SLB do meu amigo Nuno. Partilhamos um trago de aguardente velha, um café digestivo e pousamos as nossas vidas na simplicidade do ser. Os livros para que me possam valer têm de ser muitas vezes o que são. Papéis pintados com tinta pousados na estante e distantes dos verdadeiros instantes do homem que alberga o poeta.

Kunta Kimte

Remake duma série marcante do passado, "Roots". O homem negro sempre teve a sua existência marcada pelo horror do esclavagismo. O miserável branco via-se superior mesmo sendo explorado pelo senhor ainda mais branco e de sangue a pensar-se azul. Ainda hoje é assim e há quem queira regressar a estas raízes de escravidão e de bons negócios negreiros para os portugueses, esse exemplo do miserável branco que, atascado no atoleiro, olha de soslaio para quem está quase submerso.
Lembro-me da cor da Paula quando éramos crianças, da presença retornada e da primeira geração do ex-império a procurar melhor sorte na metrópole. 
Só se olha à cor se nos ensinarem, e mentirem, que há cores melhores que outras. Num bairro de gente humilde, gente trabalhadora, herdeiros das vítimas do servilismo ao latifúndio, ninguém nos ensinou diferenças. Éramos crianças. Apenas crianças.
Preto e branco são adjetivos que não interessam à pureza da infância, ao verdadeiro coração onde habita a bondade e o justo. A Paula e eu fomos cruzados numa capelinha duma Senhora da Saúde. Somos preto e branco. Somos ricos e partilhamos a nossa riqueza com quem vier por bem. Talvez ainda sejamos cruzados apesar de já não encontrarmos a insígnia na lapela com a qual a irmã Lídia nos investiu nas tardes de catequese. Somos esse anúncio da Benetton que não vende roupa mas nos emoldura os afectos.

O meu Jesus de plástico

"Não me importa se chove ou faz frio

Desde que eu tenha o meu Jesus de plástico
A acompanhar-me no tablier do meu carro
Mas parece-me que me vou ter de livrar dele
O seu íman arruína o meu rádio
E se tiver um um acidente ele vai deixar-me cicatriz".

in "Cool Hand Luke" (1967)

80 anos do Fernando

O Fernando Assis Pacheco hoje faria 80 anos. Passou a Walter pelo peito durante o ultramar mas foi um ataque cardíaco que o tramou. Já o escrevi uma vez: "Fernando, foi uma pena que tu morresses quando eu era apenas um gaiato, pá!".

Súbdito? Só deles.

Ontem falámos das minhas convicções republicanas. Justifiquei-as com datas e cicatrizes simbólicas. O que não lhes disse é que como poeta sou súbdito d'el Rei D. Dinis, também ele neto dum sábio.