"Pássaros dum tiro" por Luis Leal (in revista "Mais Alentejo" nº 136)

Sei pouco sobre ornitologia. Há por esta península tantos bandos de aves à solta que isso ajudar-me-ia a compreender melhor o nosso habitat. Tal como observar pássaros, ouvir música é bastante prazenteiro para uma alma simples como a minha. Se posso, faço-o em simultâneo, de fones nos ouvidos e binóculos nos olhos, misturando aves, algumas raras, e melodias. Seria mesmo capaz de compilar uma banda sonora ornitológica. Ainda sou daqueles que aprenderam a entender o conceito de álbum mas, por pragmatismo, também faz “playlists” de momentos e ocasiões. Boas letras e trovas, para mim lírica pura, evadem-me de controvérsias, conceitos de estanqueidade literária e “nóbeis” atribuições.

Poucas vezes cheguei a um cantautor por conta própria, quase sempre alguém, ou algo, me guiou. Ligo bastante à crítica e às recomendações de uma amiga chegada, a casualidade.

A viajar, ainda adolescente pela palma da mão do Duarte Coxo (amigo além do fado), cheguei ao Jorge. O Sérgio acompanhava as noites bem passadas na casa do mestre Jorge Neto. Graças ao ouvido versado do meu cunhado Francisco von Gilsa conheci Joaquín, “el hombre del traje gris”. No entanto, não sei graças a quem ou o quê, fui apresentado ao Juan Manuel. Quatro melros de guitarra a tiracolo, jograis do meu e do tempo dos meus pais, que se deixaram apanhar nas minhas arapucas e, graças a artimanhas de caça para alimentar algo mais que o meu corpo, são magníficos exemplares das minhas capturas como caçador de versos e cantigas.

“Só” por existir, só por caminhar por bairros de amor e em alguns lados errados da ingenuidade, descansei num qualquer “Domingo no Mundo”. Descobri que também Rimbaud andara por desertos do amor e, no primeiro dia do resto da minha vida, mergulhei num mar inconcebível, “Pongamos que hablo de Madrid”, onde até a passarada vai ao psiquiatra e as princesas não querem ser princesas. Ali, no cruzamento de todos os caminhos, rumei ao “Mediterrâneo”, à cidade condal, assumindo a minha afeição por Antonio Machado e Miguel Hernández. A Hernández só pedi perdão por o Portugal de Salazar o ter entregado à “Guardia Civil” ao tentar cruzar a fronteira para exilar-se dum franquismo que o “mataria sem música, com os seus grandes olhos azuis abertos soterrados debaixo do vazio ignorante”.  

Desde o ninho se aprende a voar, desde um esconderijo tornado público se levantam voos solitários. Passadas horas ermitas a subir céu aprende-se a contemplar a companhia, a sincronia, dum bater de asas experiente e carregado de sabedoria. Se a solo o Jorge Palma e o Sérgio Godinho são magníficos, juntos são soberbos. Aqui em Espanha, o mesmo se aplica a Joaquín Sabina e a Juan Manuel Serrat, esses amigos tão diferentes que podiam ter nascido do mesmo parto. 

Curiosamente, encontro muitas parecenças urbanas, com tendência a pisar o acelerador do excesso, nas obras de Palma e Sabina. Igualmente nas de Godinho e Serrat, ambas interventivas e fraternais. Sei que Jorge Palma conhece o Joaquín Sabina. Num final dum concerto, envergonhado mas atrevido, perguntei-lhe enquanto lhe pedia um autógrafo. Quanto aos outros, não faço a mínima ideia, porém espero atrever-me a perguntar ao Sérgio Godinho, aquando da sua “tourné” poética por Badajoz, Cáceres e Plasencia, sobre o seu congénere Serrat. 

Quando me falam de destino, costumo dizer não acreditar no determinismo da palavra. Não o digo muito convicto, digo-o com a “boca pequenina”, recordando o obstetra da família quando se fala de ampliar a família. Mas, se tal sina, desígnio cósmico, fado, ou qualquer outro sinónimo sem volta atrás, existe, espero que em pleno voo, a sobrevoar a península, estes pássaros se cruzem. Prometo estar atento, como bom caçador, sem munição, só com o coração. 

domingo, dezembro 25, 2016

A arte sem afeto de nada me serve. São palavras vazias, notas soltas, imagens perdidas e melodias sem ritmo para os meus dias. É como sapatos bonitos que tenho mas que uso pouco porque não são cómodos ao caminhar. Sempre opto pelos velhinhos, sem estética nem moda, mas que me aparam os pés como mais nenhuns.

"Uma ideia de Bíblia" - Frederico Lourenço

"A Bíblia é uma narrativa em que o herói é filho de um carpinteiro e as restantes personagens são pastores e pescadores. Julgo que isso é muito revolucionário e interessa-me compreender como é que esse mundo greco-romano, no qual esse tipo de literatura era desconsiderado,  se deixou conquistar. Podemos pensar que A mensagem de Jesus de Nazaré se dirigia aos judeus, mas o que ele acabou por conquistar verdadeiramente foi o mundo greco-romano, que não dava o mínimo de crédito a pescadores e a carpinteiros." in "Revista Visão", 15/XII/2016

sábado, dezembro 24, 2016

Luzes de Natal

Todos os anos, desde que comecei a conduzir, ia mostrar as luzes de Natal da minha cidade aos meus avós. A vida idosa de periferia não lhes facilitava deslocarem-se com o fim de visitarem o ambiente natalício do centro histórico. O Natal éramos nós, as luzes eram artificiais mas não falhavam a iluminar-nos. 
Hoje cumpri esse ritual com os meus filhos. E os meus avós estavam connosco.

Alarme: Bicicletas! (por Eduardo Galeano)

- A bicicleta fez mais que nada e ninguém pela emancipação das mulheres no mundo – Dizia Susan Anthony.
E dizia a sua companheira de luta, Elizabeth Stanton:
- As mulheres viajamos, a pedalar, em direcção ao direito de voto.
Alguns médicos, como Philippe Tissie, advertiam que a bicicleta podia provocar aborto e esterilidade, e, outros colegas, asseguravam que este indecente instrumento induzia à depravação, porque dava prazer às mulheres que roçavam as suas partes íntimas contra o assento.
A verdade é que, por culpa da bicicleta, as mulheres deslocavam-se por sua conta, desertavam do lar e desfrutavam do perigoso gosto da liberdade. E, por culpa da bicicleta, o opressivo espartilho, que impedia de pedalar, saía do roupeiro e ia ao museu.


(Tradução: Luis Leal)

quarta-feira, dezembro 21, 2016

Aproxima-se o Natal...

Aproxima-se o Natal. O mundo afasta-se da solidariedade da época.  Em Alepo não há milagres. Na Alemanha os mercados natalícios são vítimas de atentados. Nos EUA, um tirano de cabeleira loura prepara-se para subir ao poder com a amizade duns russos que veem morrer os seus às mãos dum vil alcoolismo que se consola, na ausência do vodka, com garrafas de colónia...
No quarto ao lado, dorme uma estrelinha e um pinheirinho. Por eles vivo o Natal e por aqueles que se afastam de serem humanos... Por mim, que me afasto de mim.

Civilidade (Alberto Pimenta)



CIVILIDADE

não tussa madame
reprima a tosse

não espirre madame
reprima o espirro

não soluce madame
reprima o soluço

não cante madame
reprima o canto

não arrote madame
reprima o arroto

não cague madame
reprima a merda

e quando estourar
que seja devagarinho
e sem incomodar, ok madame?

ok, monsieur.

Alberto Pimenta



Recitado por Luís Gaspar em Estúdio Raposa







quinta-feira, dezembro 15, 2016

domingo, dezembro 11, 2016

Seis anos, parte II (9/XII/2016)

Cumprem-se hoje seis anos que descobri que o amor se escreve a caneta e não se apaga… Parabéns filho! Seis anos únicos, teus, nossos… / Se cumplen hoy seis años que descubrí que el amor se escribe con boli y no se borra… ¡Felicidades hijo! Seis años únicos, tuyos, nuestros…


sexta-feira, dezembro 09, 2016

6 anos

Hoje o Santiago faz 6 anos e está a escrever esta entrada comigo no telemóvel. É um dos momentos mais importantes das nossas vidas. Ele está a ler isto em voz alta. Será que um dia ele se recordará de o estarmos a fazer, lado a lado, cabeça com cabeça, dedo a dedo? 
Agora o quê, pergunta ele?  
Vamos publicar, digo-lhe eu.

quinta-feira, dezembro 08, 2016

Ferramentas e afeto


A Amélia e Francisco Nunes, "In memoriam"

Aceder a ferramentas é fundamental para que qualquer obra se edifique. A ferramenta é uma extensão da mão, moldada à necessidade e caracterizada pelo engenho, como tal, quando não se têm os utensílios adequados, o projeto tende a ser mais duro de trabalho, lento, algo tosco, longe dos padrões da perfeição exigida.  

Em casa havia ferramentas suficientes, nem todas específicas, mas sempre tive a sorte de alguém mas emprestar com confiança e generosidade. Isso não impede que a casa da nossa infância se vá desabando na Rua Reguengos de Monsaraz. Não a terminámos a tempo. É imperfeita por medos e ingenuidade, no entanto, tal como a capela do Mosteiro da Batalha, é bela na sua história e não faz falta ver-se acabada.

Atualmente tenho as minhas ferramentas. Aprendi a desenrascar-me, a fabricar algumas por conta própria, mas continuo a ir frequentemente à garagem do Chico Nunes pedir-lhe ferramentas emprestadas. Um alicate específico em pontas, uma broca de diamante, uma chave de bocas ou se posso usar o torno na sua bancada tão organizada que me faz querer ter uma igual na qual seja capaz de escrever um poema e soldar ao mesmo tempo.

Lá está o meu vizinho favorito, músico militar em camisola de alças, a ensaiar com o seu saxofone. Bem me quer ensinar solfejo, porém o ritmo da minha maturidade tarda, é irregular como o dos amantes e nunca poderá executar música porque só serve para frui-la. No meio desta garagem, organizada por serventias, ouço o sopro dum jazz futuro e improvisado, o canto biográfico dum "Bird" e revejo-me na camaradagem do Clarence Clemons na obra, de mangas arregaçadas, do “Boss” Springsteen.

"Leva o que quiseres Pintainho", diz-me com voz grave, brilhante, igual ao saxofone cuidado pelas suas mãos. Confia em mim e eu nele. É uma alegria vê-lo na missa a tocar na banda do Jesus com cara de quem não está chateado comigo por eu odiar que a minha mãe me obrigue a ir à missa todos os domingos. Foi a melhor aquisição para a capelinha da Senhora da Saúde e eu sinto-me melhor ao vê-lo aí. Até os grandes homens, másculos e fortes, vão à missa, logo a minha virilidade não está ameaçada pela beatice a que a minha mãe me obriga.

Não há ferramenta que detenha o tempo, muito menos que o concerte. Da época da garagem, da Eucaristia dominical imposta, passando pela única classe que algum dia tive - porque o meu vizinho Chico, com tanta paciência e carinho me dava o nó na gravata, agradado por ser o eleito da minha amizade, da minha admiração, sempre me dizia "o meu Pintainho" – chego a este dia.  

Também não há ferramenta, de pleno juízo, que me tire a alegria em recordar ir ao outro lado da rua, bater à porta e perguntar à vizinha Amélia pelo vizinho Chico. Ela deixa-me entrar e diz-me para ir ter com ele à cozinha ou à garagem, ali onde ele é a grande ferramenta que a vida, confiante e generosa, me emprestou.

Quis também a vida que não nos despedíssemos. Os amigos não se despedem, honram a amizade de maneira simples. Nunca aprenderei a fazer o nó da gravata. Não quero. Será sempre o vizinho Chico quem mo vai fazer, orgulhoso de ver o Pintainho que as suas ferramentas ajudaram a crescer.

Hoje o meu amigo Francisco Nunes fazia 78 anos. A vizinha Amélia já o ouve a ensaiar na garagem. Qualquer dia volto a atravessar a rua e bato-lhes à porta. Levarei a gravata na mão, bem passada, e peço-lhe para me fazer o nó “windsor”, aquele que ele acha dar-me mais classe…

quarta-feira, dezembro 07, 2016

Víctor Erice - El sur



Por falar em água e vedores..., é o que acontece, Luís. Tens de ver El sur (1983), este filme, esta beleza, mesmo não terminado como o seu realizador, Victor Erice, desejava.

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Eduardo Salles



Eduardo Salles. Su página, Cinismo ilustrado.



segunda-feira, dezembro 05, 2016

A propósito da necessidade de levar o ego a cagar à rua


Todos nós passeamos o nosso ego. A diferença está em que uns o passeiam à solta e outros à trela. Melhor estrangulados pela própria força, não vá morder em alguém... 


domingo, dezembro 04, 2016

Fidel

Fidel morreu fiel à revolução cubana. "Com muitas luzes e sombras" dizem alguns. Não duvido e não tivesse ele sido um dos símbolos do seu próprio século, o século XX.
Durou como um dos seus discursos. Foi longo, estruturado, argumentado e findou coerente. Mas a coerência individual, a culminar num culto ao líder de sabe deus quantos dias de luto nacional, é impositiva.
Olho para este barbudo, que associo à k7 de tango do meu pai, com a minha coerência individual, nada impositiva, era um ditador com as suas circunstâncias... Todos têm as suas com mais ou menos bloqueios e sanções económicas mesmo a sul do seu arquinimigo. A circunstância não pode justificar tudo... O mal menor justificado por alguns não deixa de estar mal.

O Bunker

Na Suiça, é comum os edifícios terem bunkers, fiscalizados de 5 em 5 anos, não vá o diabo tecê-las. Se alguém me contasse iria ter dificuldade em acreditar, mas vi para crer como São Tomé.
A neutralidade da história desta nação não lhe confere um estatuto de ingenuidade, todo o contrário, de cautela, precaução e estratégia. Vejo isso como sabedoria e visão a longo prazo.
Hoje, na Áustria, não muito longe donde nos encontramos, houve umas eleições renhidíssimas das quais sair vencedor, por escassos votos, o candidato dos verdes, seguido, quase ombro a ombro, pelo candidato de extrema-direita.
Ouro valem estes momentos partilhados com amigos, sem impedimentos de línguas e com crianças a crescerem iguais em oportunidades pelas convicções de quem as educa. Ouro imaterial, invisível para trocas de sobrevivência comercial, como a de tantos refugiados da história e do presente.
O Jorge receia o pior. É cauto como o país em que vive. Tem razão em sê-lo. Não o sou da mesma maneira porém entendo-o com a mesma certeza que tenho para com a minha intuição. Isso não significa que não deteste que ela tenha constantemente razão.
O tempo também deveria ter bunkers com compartimentos úteis para a sobrevivência da história, revistos com frequência e ensinados por lei... ou não...  Talvez só lá se protegesse a história de alguns.
Este diário digital é um bunker de bytes, escrito para resistir ao olvido do cérebro de quem o escreve. Tem a arquitectura defensiva do betão e a consistência do papel. O que fará em caso de urgência? Apagar-se-á? De certeza que sim. Até lá pode ser que alguém o tenha lido, construa o seu próprio bunker e proteja a liberdade do seu próprio pensamento.

Uster bikes (Switzerland)

As bicicletas dormem na rua e não são infelizes...
Observam como as estações vêm e vão...

Badajoz, Lisboa, Zurique

Nada como a hospitalidade dum colchão e um saco de cama na casa dum grande amigo. Família a reboque e carregado que nem um burro, lá cheguei a Zurique depois dum dia intenso - desses que parecem uma semana - de trabalho, estrada, aeroporto e avião...
O corpo ainda vai aguentando, mas já se começa a queixar da intensidade da jornada e das poucas horas de descanso compensatórias... Vale o abraço das boas-vindas e as boas notícias que nos esperam!

quinta-feira, dezembro 01, 2016

Milagre da casa...

Acredito em milagres porque a casa da minha infância esteve em tijolo vivo, taipais nas janelas e esquentador onde tomávamos banho.
Acredito em milagres porque quem lá viveu tornou-se essa casa. Um edifício com história, precário de construção, austero em luxos, inseguro por ser tão fácil de arrombar, mas com gente dentro. Uma família de arquitectura imperfeita, e por aprovar as plantas na câmara municipal, com pobreza energética, mas com o valor de manter-se de pé, lado a lado, digna de não envergonhar a vizinhança.

domingo, novembro 27, 2016

"Digam-me como é uma árvore" – Marcos Ana (Trad. Luis Leal)

Marcos Ana, preso político, durante 23 anos, do franquismo. Morre o corpo ao homem mas prevalece o poeta de resistência...

"Digam-me como é uma árvore" – Marcos Ana 

Digam-me como é uma árvore
contem-me o canto de um rio
quando se cobre de pássaros,
falem-me do mar,
falem-me do cheiro aberto do campo
das estrelas, do ar.

Recitem-me um horizonte sem fechadura
e sem chave como o choço de um pobre,
digam-me como é o beijo de uma mulher,
deem-me o nome do amor
não o recordo.

As noites ainda se perfumam de apaixonados
nervosismos de paixão à lua
ou só resta esta fossa,
a luz de uma fechadura
e a canção da minha rosa?

22 anos, já esqueci
a dimensão das coisas,
o seu cheiro, o seu aroma,
escrevo às escuras o mar,
o campo, o bosque, digo bosque
e perdi a geometria da árvore.

Falo por falar assuntos
que os anos me esqueceram.

Não posso continuar:
oiço os passos do funcionário.



Que gentileza, que simpatia, que paciência para aturar-me...

Até hoje, nunca um desconhecido me tinha abordado pessoalmente a dizer que lê este blog e lhe agrada o que vai sendo escrito e publicado.
Fiquei algo desconcertado mas visivelmente agradado com tamanha gentileza e simpatia. Não tive ocasião para lhe dizer que este não é um dos melhores fóruns para aprender a língua portuguesa sem um, ou outro, erro de ortografia, tal como desculpar-me por esse facto me envergonhar. Tento rectificar essas lacunas com frequência, pesa-me na consciência, porém sei que continuarei a dar umas calinadas, na gramática e na sintaxe, por estas bandas de quando em vez.
Grafar os meus dias, os meus pensamentos, está a tornar-se o que algumas vezes imaginei no passado. Não profanarei a palavra "escritor" por purismo. Tantos anos de estudos literários nunca renunciaram a prática da literatura, o acto de escrever por si só, bastante mais antigo em mim que análises e teses.
A rapariga que me abordou disse-me o seu nome. Quis a imediatez do momento não memorizá-lo. Outro motivo para desculpar-me...

Viajante ou turista?

Dentro de mim sempre soube a resposta. Talvez nunca a tenha justificado por insegurança, por não parecer demasiado intelectual. Aí tenho outra lição a guardar.
Tive a oportunidade de questionar um grande escritor de viagens, o Gonçalo Cadilhe, onde existe a fronteira entre o viajante e o turista. O autor, a quem seguramente já fizeram esta pergunta mil vezes, não distingue um do outro, assume-se ambos, porque são o mesmo. Admite, no entanto, um pequeno matiz: a curiosidade. Esta característica talvez previligie um viajar mais autêntico.
O mundo,  esse "lonely planet" mapeado e com guias recomendados, não traz certezas absolutas, traz reflexões que nos remetem para a insignificancia do ser e do estar humano.
"Lá por gostares de foigrat não significa que tenhas de conhecer o ganso" relembrou um Gonçalo que teve a humildade de comparar o seu registo literário ao do Quim Barreiros. Simples e assumido para os outros, aqueles que na viagem já vão na mochila, aqueles cuja viagem é o livro da viagem.
Aqui podemos ter "cagança", dar classe às palavras, preterir umas a favor de outras, e classifico o Gonçalo de viajante e de um ganso com quem não me importaria conversar e conhecer melhor as rotas de voo...

sexta-feira, novembro 25, 2016

A não ubiquidade do corpo

A não ubiquidade do corpo não me permite estar na materna Évora a celebrar 30 anos de Património Mundial da Unesco, não me permite estar em Leganés a abraçar o meu “hermano” José Antonio Santiago Sánchez pelo seu “Habitar” e, igualmente, não me permite estar em San Vicente a recordar a lealdade ao homem, e ao poeta Ángel Campos, que tanto admiro a um grupo de amigos e à da Asociación Cultural "Vicente Rollano".
Mas a intenção é omnipresente, sobretudo a boa, essa desejada aos demais, que verdadeiramente sobrevive às limitações do nosso estado físico...

La no ubiquidad del cuerpo no me permite estar en la materna Évora celebrando 30 años de Patrimonio Mundial de la UNESCO, no me permite estar en Leganés abrazando a mi “irmão” José Antonio Santiago por su “Habitar” y no me permite estar en San Vicente recordando la lealtad al hombre, y al poeta Ángel Campos, que tanto admiro a un grupo de amigos y a la Asociación Cultural “Vicente Rollano”.

Pero la intención es omnipresente, sobretodo la buena, esa deseada a los demás, que verdaderamente pervive a las limitaciones de nuestro estado físico... 



quinta-feira, novembro 24, 2016

Limpeza...

O meu pai morreu sem fechar o livro à cabeceira. Quase não via e acumulava volumes de papel reciclado em solidão.
O meu pai morreu sem deixar-me nada mais que livros.
Tenho de os fechar. Muitos talvez queimar, tantos outros doar. O meu pai morreu bolorento mas orgulhoso de só nos amar mais a nós do que as palavras. E morreu sem deixar-me nada mais que palavras.
Cabe-me a tarefa de limpar a sua última morada. Tanta papelada, tanto nada. Ninguém mais é capaz. Eu também não mas ele ensinou-me a não me queixar, a não me isolar em sentimentos que tantos outros também têm e não se justificam com eles.
Há montes de restos do meu pai aqui, acumulados em pilhas ou por ordem nas estantes do escritório, segundo o formato e não tanto o conteúdo. Sento-me a olhar para as nossas árvores, para as nossas vidas, podadas como se pôde. Há pouco do avô, algumas fotografias, memórias do tempo da sua guerra. Um relógio.
Corto o cordel de uma pilha de papel de jornal. Folheio o cheiro a humidade e decido desfazer-me dele na salamandra.
Porque é que teve de ser assim? Porque é que te dedicaste tanto a mim?
Quem é que me vai abraçar e aconchegar na cama?
Quem é que vai conversar com o homem que criaste?
Cai a lágrima em direção ao chão outrora nosso. Cai antes na mão, no punho entreaberto da navalha que, antes de minha, antes de tua, fora do avô.
Germina a semente no coração. Com esta lágrima. Agora sei porque tantas vezes sentias o meu peito, apertavas contra o teu.
Posso despedir-me pai.
Não quero nada. Deste-me tudo em vida. Vou fechar todos os teus livros. Só assim posso abrir o meu.

quarta-feira, novembro 23, 2016

Reconciliado com o passado?

Ó homem imperfeito! Idiota da história! Estúpido desencontro com a natureza! Como te podes reconciliar com as barbaridades do passado, se no presente te posicionas outra vez errado? 
E o pior não é estares enganado, é andares para aí a apregoar que és sábio!

Évora, a terra da alma (30 anos, Património da Humanidade)

Apercebi-me de Évora ser o que é quando tinha 5 anos. Estava um senhor, creio que funcionário camarário, debaixo dos arcos, esfregando a escova áspera palavras já suaves de ordem dum pós-revolução. Aquilo custava-lhe imenso, e à minha curiosidade também, mas via como cuidava com brio o granito histórico da minha cidade. “Vem cá a Rainha de Inglaterra” disse meu pai à minha estupefação em frente do escadote aberto em hora de expediente. Sem grande ruído nem furor, esse foi primeiro contacto que tive com um argumento shakespeariano, com uma figura da realeza sem ser a dos contos dos irmãos Grimm. Há tanta luminosidade nesta minha recordação... na minha cidade…

Aprendi com Claudio Rodríguez que todos levamos uma terra dentro, que nos alenta, que nos acusa e que nos salva. É a terra da alma.

Nasci ali e em mim habita cada rua, cada casa, cada passo, saltos e trambolhões, cada eborense guardião desse templo de capitéis de luz ao qual regresso tantas noites em sonhos. Ali me ajoelho, leal à sua história, apesar de Évora não mo permitir. Em solo com reminiscências feudais, esta cidade, erguida por três culturas, ensina-nos a dignidade de, no latifúndio do espírito, mandarmos apenas nós.


Há 30 anos atrás, atribuiu-se-lhe o estatuto de Património da Humanidade e de ponta-de-lança no que respeita a atribuições deste tipo no Alentejo. Envaidece-me essa espécie de “Liga dos Campeões” da UNESCO. Porém, para quem se sente eborense, é o seu andar, caminhar, passo a passo, pela vida da cidade, o verdadeiro património, para mim, bastante mais imaterial que material.

domingo, novembro 20, 2016

"Habitar" de José Antonio Santiago

Enquanto andamos por este mundo físico, tão sensível à dor como também ao tato e ao abraço, habitamos o nosso corpo e invadimos, de inúmeras maneiras, o habitat de outros.

A amizade, a camaradagem, que a vida me tem vindo a brindar tem muito de “habitar” em mim, sentindo, com gratidão, a reciprocidade no outro em tons de estima e apreço mútuo, ausente de bajulações, interesses ocultos, imperando o respeito e muita sinceridade.

Escrever sobre JAS é escrever sobre um verdadeiro “hermano”, sem plasma nem biologia, mas com o habitar no apartamento em cima do meu, numa época que ficará para sempre num limbo do que somos e ao qual sempre podemos recorrer, se a memória assim o entender.

Esta semana recebi pelo correio, num envelope anacrónico (sem siglas de empresas multinacionais de venda on-line), o seu mais recente livro no qual, quis este mundo físico, este tempo, este companheirismo doméstico, que também eu habite. 

Obrigado José. “Gracias mi buen hermano”. Mesmo longe, estás e fazes-me melhor. Ambos somos tanta coisa…  Queira a vida que sejamos essa lealdade bela, sem complexos nem nexos, até um de nós deixar de “habitar” este solo indistinto de fronteiras ou pátrias.

Ramón Gómez de la Serna acreditava ser a amizade mais do que motivo para enaltecer o génio. Neste caso, nem se justifica, não é necessário, é evidente.

Este livro supera o ensaio sobre arte poética. É o génio de um intelectual, a argumentação de um filósofo vivo contaminada pela alma de poeta, o habitat natural de um ser humano cuja existência obrigou a abandonar a timidez, a inibição das nuvens de um dia chuvoso, e a deitar-se ao brilho do sol mais formoso… e, simplesmente, “Habitar”.

Eis a sinopse (em português) desta obra que, no dia 25 deste mês, será apresentada em Leganés:

Os dois textos que compõem este volume encontram-se presididos por uma ideia comum. A imprescindível necessidade humana de “territorializar” e “habitualizar” toda a sua existência. Desde a própria linguagem (“Poetizar ou a necessária superstição da linguagem”), até à sua mais própria “quotidianidade” (“Casar a casa”), o humano encontra-se marcado biológica e biograficamente pela sinalização espacial e temporal. Estar marcado significa também – por isso mesmo – que em toda cultura e situação histórica, o ser humano precisa de selar o seu espaço e o seu tempo: vestígios, ciclos, palavras ou datas são os limites adaptativos e de sentido desde o qual todo habitar humano pode, dessa forma, projetar-se ou restituir a sua própria condição”.


Sexualidade galáctica

Do pudor excessivo do passado, passámos a uma sexualidade de normalidade explicita. É usual verem-se conteúdos de teor sexual, material, sem resíduos de afeto, em qualquer lugar e em qualquer hora do dia.

A explicitude desta sexualidade navega pela rede sem pensar em privacidade nem futuro. A libido, de tão imediata, caí flácida em segundos. Eros substituído por euros. É possível desfrutar duma sexualidade sem nos sentirmos oprimidos pelo império da imagem, esse devastador do império dos sentidos?

Nunca conseguiria descrever bem uma relação sexual no papel. Excitar com a pena, lubrificar estranhas ou erguer falos com verbos bem escolhidos e conjugados. Quando leio sobre géneros literários, ou cinematográficos, cujo motor da intriga é o sexo, penso não ter glamour para isso, nem sombra de talento que se aproveite. 

Pode ser porque tenho uma sexualidade de revistas pornográficas dos anos 80, partilhada com os amigos do bairro, uma imaginação galáctica, de VHS, fruto do biquini da Carrie Fisher no "Regresso de Jedi", ou sinta o vazio do "fim da aventura".


Não tenho medo de partilhar o que me faz sentir maduro com os meus sentidos e desejos não ocultos a quem de direito. Tenho medo de ver que nos estão a vender, e nós a comprarmos, ser normal abdicarmos da nossa privacidade e converter a nossa sexualidade, pervertida de performance, como perfil de uma rede social de rasto perene.

E sei que esta entrada neste diário se escreveu a propósito duma visita a uma exposição do universo "Star Wars" e um encontro imediato com o biquini da minha imaginação nessas tardes de Verão em que o video só funcionava com os botões "pause", "play", "rewind" e "foward"... Estarei velho? De certeza. Conservador? Não. Não poderia. Se alguém encontrar essas k7s de video ficaria a saber, na sua fita gasta, o porquê.


sábado, novembro 19, 2016

Plantar

ao plantarmos
obcecamo-nos com o crescimento
da árvore.
sem querermos, as raízes aprofundam-se em esquecimento.

al plantar
nos obsesionamos con el crecimento del árbol.
sin querer, las raíces
se profundizan en el olvido.

Triste parque esquecido...

Na cidade, os espaços dedicados às crianças costumam ser os parques infantis. É frequente, em várias zonas de influência, encontrar este mobiliário urbano gasto pela criançada e vandalizado pelos "nem, nem". Escorregas, baloiços e balancés, são o contacto que alguns dos nossos filhos têm com a natureza biomecânica dos seus corpos.
Não gosto de parques infantis. Se vou é porque não há alternativa ou porque é necessário ar da rua. Concordo com o que me diz uma colega de trabalho, uma analogia urbana e perfeitamente entendível para o citadino comum, "los niños tienen que sacarse a la calle a diario como los perros". Poucas vezes estamos de acordo.
Este Verão, a escassos metros do parque infantil da nossa área de residência, inaugurou-se uma infraestrutura invejável dedicada à pequenada, uma infraestrutura centrípeta que suga as brincadeiras para além do bairro e faz com que, miúdos e graúdos, ali se acumulem em uniformidade.
A empurrar o carrinho do mais novo e de mão dada ao mais velho, passei de largo, com a sentença lida de não haver tempo para nos juntarmos à maralha. Foi nesse momento que o meu filho mais velho me disse "papá, o parque sente-se triste".  Desconcertado, não o entendi à primeira. "Este não papá, o outro que já não tem meninos".
Não me atrevi a estragar tão belo sentimento de infância. Apertei-o contra a minha perna e anca com os seus cabelos arrepiados entre os meus dedos. "Não te preocupes, qualquer dia vamos lá fazer-lhe uma visita".

terça-feira, novembro 15, 2016

Netos dos filhos, dos filhos da ira

Há escassos dias celebrou-se o 98 aniversário do armistício da Primeira Guerra Mundial e o meu pai esteve, com a sua Liga dos Combatentes, presente nas cerimónias oficiais. O meu bisavô Umbelino combateu nesta guerra, o meu bisavô Leopoldo também, esteve desaparecido, foi prisioneiro de guerra e voltou "esgaseado" pelo gás mostarda das trincheiras. Os seus filhos, os meus avós maternos, nunca souberam que este fora o primeiro grande conflito à escala mundial, era, para a visão possível do mundo em pleno salazarismo, a guerra de França. Curiosamente, ambos, a minha avó Helena e o meu avô João, viram refugiados e ouviram canhões da Guerra Civil Espanhola, souberam doutra guerra em França, e de uns alemães ávidos de tungsténio português, despediram-se dum filho a embarcar para Angola e outro para um exílio de cruzeiro, pois já nem as suas mãos escaldadas na infância o livravam de ser carne de canhão. As guerras não acabaram por aqui. Nem acabarão. Nunca souberam história, nunca estudaram história, eles foram a minha história e enquanto viver recordá-la-ei como homenagem... 
A guerra está no passado de quem me criou, com quem vivi e ainda faz parte do que vivo enraizado em Portugal. Sou um herdeiro envergonhado de não poder aliviar o sofrimento dos meus bisavós devido aos gases que lhe queimaram pulmões, pele e equipamento de pouco mais que serapilheira. Sou os olhos envergonhados, por não ajudar os espanholitos a atravessarem a fronteira e a chegarem ao Atlântico, cheios de medo da GNR. Sou o camuflado e as mãos suadas a segurarem a G3 que me baleou de rajada uma juventude que não saberei entender nos meus filhos sem trauma e stress. 
Sou o filho mais novo do fim do século XX, a quem as gerações mais velhas não lhes agrada, nem levam a sério, o meu desapego e a descrença num mundo utópico de paz sem recurso à violência. 
Voltei ao século passado, ao passado familiar, graças a um jovem poeta da minha geração com quem partilho a lírica da primeira guerra mundial, o atrevimento de Shackelton, os despojos da modernidade que nos impõem. A ouvir Ben Clarck a recitar, aceitei a condição  de netos dos filhos, dos filhos da ira.

segunda-feira, novembro 14, 2016

"I love gazpacho, I not love freedom" (www.politocracia.com)

Entrad en "Dentro del Secreto", nuestra traducción (Pedro L. Cuadrado y Luis Leal) del viaje a Corea del Norte de José Luís Peixoto,  publicado por Xordica Editorial. ¿Se comerá gazpacho en Corea del Norte?

Um desenho de infância...

Um desenho de criança é um dos melhores recordatórios de amizade pura e desinteressada. O meu filho mais velho trouxe um hoje para casa. É do seu primeiro melhor amigo. O meu foi o Carlos. Tenho saudades dele, de subirmos os postes das balizas da escola como amigalhaços e imitadores de bombeiros...
Fala-se tanto do primeiro amor, dá-se-lhe tanta importância e, por vezes, um teor ultraromântico. Entre o meu primeiro amor e o meu primeiro grande amigo, fico com o segundo, esse com quem não nos importamos de partilhar o primeiro grande amor...
O Carlos e eu assim o fizemos, a Ana Albano recebeu cartas escritas no amor infantil da primeira pessoa do plural. Obrigado ao Fernando, irmão mais velho do Carlos, por escrever sentimentos idiotas de dois meninos que não imaginavam um dia descobrirem que idiotice é coisa de adultos.

Fim da semana

Estou cansado. Pouca paciência tenho. A semana termina e tenho a certeza de ter sido das mais determinantes que vivi na minha vida.
Primeiro, burocracia medonha e nada esclarecedora do que um gajo anda para aqui a existir.
Segundo, trabalho e local da labuta em clima de conflito entre pares. Tento abster-me do ridículo da situação, da falta de relações de afecto, sexuais mesmo, de alguns que canalizam a sua energia vital para isso. Sinto vergonha alheia por eles mas confesso estar já a afetar-me a sua conduta.
Terceiro, o Trump ganhou as eleições do país mais influente do mundo e tenho a certeza que isso vai afetar-nos negativamente a todos. Uso um eufemismo para não cair em pessimismo reforçado por uma intuição aguda.
Quarto, apresento o meu trabalho a gente disposta a prestar-me atenção. É bom para o ego e para a minha ética de trabalho, trabalhar arduamente como forma de respeito por aqueles a quem me dirijo. Na escola, nem sempre trabalho com este perfil de gente...
Quinto, estou a organizar-me para terminar outra etapa académica. Mais do que um título, é uma questão de determinação e vontade de que algum conhecimento não voe sempre com o vento...
Sexto, morreu o Leonard Cohen. Perdi o poeta da cassete original encontrada no banco da automotora e trazida para casa pelo meu pai. Talvez o único suporte de poesia por ele me oferecido enquanto jovem.
Sétimo, fiz gala de ser tão pouco rebuscado, fino, afinal tímido sem o aparentar. Fiz gala de ser quem sou, um tipo qualquer com muita coisa a fervilhar dentro e muita ambição de voar alto com os pés bem assentes no chão.
Oitavo, fui um pai presente mas irritado, visceral visível que se arrepende de não ser capaz de interpretar o papel do pai ausente que quando está compra o tempo com papel de notas de euro.
Estou cansado. Pouca paciência tenho. Gostava de poder rezar como quando acreditava em superpoderes divinos, milagres documentados em propaganda religiosa. Era tudo mais fácil mas mesmo assim prefiro entender estas semanas estranhas como responsabilidade nossa e não de Deus. Quanto muito, esta semana, pode ter sido vitoriosa para o Deus envangelista dos apoiantes do Sr. Trump, o tirano do penteado à base de laca.
Vou construir um muro ao redor de mim esta semana agora a começar. Prometo derrubá-lo quando tiver o exército preparado para proteger-me de mim mesmo.

quinta-feira, novembro 10, 2016

Plasencia, 9/XI/2016

Passear na "Plaza Mayor" e ver o sol a pôr-se por entre os edifícios frios é um prazer para o meu deambular limitado pelos compromissos de hora marcada. Se vou escrevendo é também graças a sítios como este, generosos e acolhedores.
De tão castelhana que é, fez-me lembrar as ruas da minha cidade, aquela que me ensinou a deambular. A moura Évora.

segunda-feira, novembro 07, 2016

A lenda do Galo de Barcelos (em inglês!)



É pena, mas parece que não há uma versão em português deste ótimo vídeo sobre a lenda do galo de Barcelos...





domingo, novembro 06, 2016

in "Terra de Sonhos" de Jiro Taniguchi

o enredo da semana 
esfia-se nas patas dos gatos. 
finda estirado ao sol de domingo.


El enredo de la semana
Se deshila en las patas de los gatos.
Finaliza estirado al sol de domingo. 


quinta-feira, novembro 03, 2016

Qué hermoso viajar, muchachos...

"Qué hermoso viajar, muchachos, qué hermoso andar
en bicicleta con la camiseta puesta
en una hermosa jornada, por un hermoso camino,
con el corazón contento y en los huesos la alegría."

De "Las rimas de Lorenzo Stecchetti" de Olindo Guerrini.
(Qué hermoso es pedalear con vosotros... mis pequeños gordos...)

“Que belo é viajar, rapaziada, que belo é andar
de bicicleta com a camisola vestida
em uma bela jornada, por um belo caminho,
com o coração contente e nos ossos alegria.”

De “As rimas de Lorenzo Stecchetti” de Olindo Guerrini [trad. Luis Leal]

(Que belo é pedalar convosco… meus pequenos gordos…) 

"Habitar" de José Antonio Santiago (Apresentação 25/11/2016 em Leganés)

“Habitar” é dos verbos mais importantes para a condição humana que, infelizmente, se vê pervertido por um materialismo de índole economicista. “Habitar” não é sinónimo de construção nem de propriedade. É tão transitório no seu aparente imobilismo de tijolo e cimento, que nos esquecemos do habitante poder ser também o habitat.

José Antonio Santiago Sánchez sabe-o melhor do que ninguém. Ele, e eu, habita onde sempre é primavera porque o inverno não se acaba e o verão e o outono não se põem de acordo com o calendário oficial…

Lado a lado, vejo o meu filho a juntar letras em sílabas e sílabas em palavras. Antes de sequer imaginar que começaria a ler, um ano antes de que eu começara a ler, fluem-lhe frases com esforço mas repletas de naturalidade.
Tem um rosto meigo e uns olhos sinceros. Lembra-me o físico do lado Leal da família, com a capacidade de desenhar herdada do lado da mãe. Já sabe ler. É a terceira geração letrada...
O meu avô João Leal continua a definhar, o seu bisavô analfabeto continua à espera do fim da escrita naquele lar... Aqui aprende-se a ler e há amor inocente nesta rima triste com morrer...

Queixo semeado de meninice (Leiria)

Tenho o queixo semeado de barba branca. A mandíbula desleixada e com remoinhos de preguiça de pêlos a necessitarem de ser cortados ou (para disfarçar o estar-me a cagar para estas pilosidades) penteados.
É normal que os meus trinta e seis anos sejam mais que evidentes o menino, a viver em mim, esteja escondido debaixo do ar de falso pioneiro, ou peregrino, que a minha pinta vai promovendo fora de mim. 
Mas há sempre quem invista para além da barba cerrada, dos dias por barbear e não deixem de encontrar a alma imberbe vinda ao mundo sem saber para quê. Agradeço à simpática senhora do self-service, da sopa de legumes e do bacalhau à Gomes de Sá, me ter lembrado, ao tratar-me por menino, ainda não ter idade para beber café e beber vinho. Fiquei-me por um sumo de laranja natural mas, para reivindicar um queixo que não quero fino, não abdiquei do cafézinho. Sozinho, cheio, a observar este menino não querer envelhecer. 
Porra para a sementeira de canas brancas...

Honestidade

"Sabendo o que sei hoje, trocava os meus sete romances por um filho" - Valter Hugo Mãe (entrevista ao "Diário de Notícias")

sábado, outubro 29, 2016

The theory of poetry

Cortesia do grande Jorge Rosmaninho Neto, sempre a semear o ar com o seu fértil olhar... Obrigado amigo.

Ruy Belo


Esta é a medida de espanha
ó vida minha vida estranha


Ruy Belo, "Homem de palavra(s)"

quinta-feira, outubro 27, 2016

Mona Lisa

A rececionista chamou:
- D. Mona Lisa Cruz!?
Levantou-se uma pintura africana, inspirada por Da Vinci, e dirigiu-se para o gabinete do fundo onde se prepararia para a ecografia.
Estranheza só se tem quando não se sabe apreciar a composição do quadro. Aquele era real e casualmente belo no quotidiano cinzento desta semana. Não precisei de estar nas filas intermináveis do Louvre para o contemplar. Mona Lisa estava ali, acompanhada do marido a tratá-la como peça de arte única a precisar de cuidados especiais, mostrando-me que, afinal, o nome até não desfigura o ser.

O meu “pueblo” Valencia de Alcántara (in "Mais Alentejo"nº135)

A primeira vez que viajou até ao país vizinho a fronteira estava povoada por alfândegas e guardas-fiscais. Nem sequer imaginava um dia a poder cruzar livremente, no velho Clio, de mala cheia e, no banco de trás, para caber, uma bicicleta desmontada e não ter de abrir o porta-bagagens para declarar os escassos pertences.

Atrás deixava a geografia do Alentejo, no fundo desconhecida, e, na fronteira dos Galegos, vislumbrou pela primeira vez Puerto Roque, onde escalaria um 5 de Outubro e cairia numa cicatriz, essa dolorosa lembrança de um tornozelo partido que prefere sentir com orgulho republicano.

Adentrado em território espanhol, apercebeu-se dum recente incêndio, visível no cinzento rochoso carente do verde flora de antanho. Não sabia o que pensar. Esperava que devido ao facto de, entre 1644 e 1668, esta raia ter sido portuguesa, a mesma não tivesse contraído o mal crónico dos fogos florestais.

No semáforo das Huertas, experimentou o prazer de cumprimentar o banco de homens sentados à porta do bar. Seguiu em frente, pela N521, mais alguns quilómetros até à entrada do “pueblo”.

A noção de “pueblo” em português pode traduzir-se numa localidade mais pequena que a cidade, abarcando a dimensão da vila e da aldeia, e Valencia de Alcántara tinha-lhe passado de raspão no mapa das estradas a caminho de Cáceres, contudo ali estava, a tirar mochila e sacos do carro, para começar uma nova vida laboral na escola secundária da terra.

À semelhança da última capital de distrito portuguesa por onde passara na viagem, não se via muita gente nesse primeiro domingo de Setembro. Estacionado no parque das “Ranas”, subiu com a tralha para o apartamento alugado ao Sr. Maneli (um bom amigo a quem deve uma crónica) e terminou a tarde absorta na varanda virada a pôr-do-sol.

Saiu de casa. O recolhimento da tarde fora substituído pelo alarido dum serão de gente a falar, a rir, a comer, a tomar a sua “cañita” ao balcão de um bar ou numa das muitas esplanadas. As crianças corriam pela praça e brincavam no parque com uma alegria despreocupada à qual não estava acostumado no outro lado da fronteira.

Sentia a mudança. O sotaque anunciava-lhe a condição de estrangeiro cuja pinta confundia a procedência de jovem duma cidade do interior português. Caminhou só pelo Bairro Gótico, subiu ao castelo e parou no Rocamador, onde se celebrara a boda régia de Isabel de Aragão e D. Manuel de Portugal. Aí lembrou-se das vinhetas duma agradável BD, lida há pouco, sobre “Histórias da Raia”.

Regressou tarde, ainda acompanhado pelo movimento da rua. Queria descansar o suficiente para se levantar cedo e apresentar-se com boa cara na escola. “Hola, soy Luis, el nuevo profesor de portugués”.

Não foi preciso lembrar-se da canção do Sérgio, era o primeiro dia do resto da sua vida, dum contrabando de afectos que o levaria à Fontañera, a El Pino, à Aceña, ao Jiniebro, a toda essa “campiña” que, cada dia 15 de Maio, celebra S. Isidro, o Lavrador, vestida a rigor e com carroça a condizer.

Não são muitos os portugueses a adoptarem um “pueblo”. Em Portugal não se ouve tanto dizer ao fim-de-semana, num feriado feito ponte (vá lá, talvez nas férias grandes, mais a norte do país), “vou para a minha aldeia, vila…”. Seria pouco provável uma campanha de marketing, como a que fez aqui ao lado uma famosa bebida isotónica, ao propor-se pôr em contacto “pueblos” a necessitarem de gente e gente a necessitar de “pueblos”. Em Espanha, o amor e regresso ao “pueblo” perpassa gerações e não se resume ao berço, vive-se.

Hoje já não está em Valencia de Alcántara. Sente-se afortunado por aquele “pueblo” o ter deixado ser o seu durante sete anos. Agradece-lhe por, ao ser de cidade, poder sempre dizer “Valencia es mi pueblo”.

Outra vez com herpes literários

É por estas pequenas coisas que ainda aturo o ego do Lobo Antunes: "(...) Para sempre, porque a amizade de dois homens, tal como o herpes, é para toda a vida. 
É que os homens, quando de facto o são, estão condenados a entenderem-se. Meu camarada, meu companheiro, meu mano para sempre." (ao Ernesto Melo Antunes)
Se é o génio cuja escrita mudará para sempre a literatura portuguesa não sei. Para mim é "como o herpes". Há mais de uma década que me rebenta a boca todas as semanas.

sexta-feira, outubro 21, 2016

"Los espistolarios sirven para pegarse un tiro con la pistola que hay en su título" - Ramón Gómez de la Serna (in "Greguerías", 1940-1943)

quinta-feira, outubro 20, 2016

"O sorriso do cão" - Crónica de António Lobo Antunes (in "Visão", 13.10.16)

"(...) O problema do cão é que vai obrigar-me a vasculhar nos caixotes à procura de ossos enquanto ele espera, comovido, um resto de tutano, ferrando os dentes que ainda lhe sobejam no que ele imagina uma sobra de carninha que quase não há e da qual, se houvesse, eu aproveitaria os últimos fiapos. Por aqui se depreende que escrever crónicas é um trabalho não apenas penoso mas terrível de dificuldade e persistência.  Se, por exemplo, eu falasse de política seria canja mas não posso porque a minha mãe ensinou os filhos a não se sujarem, era uma mulher honesta e detestava porcarias."

segunda-feira, outubro 17, 2016

A linha da vida

Se a vida for como uma linha desenhada num papel branco, um risco com princípio e fim, em que parte me encontrarei? 
Pela idade contabilizada no bilhete de identidade, espero encontrar-me uns restos de tinta, ou de antracite se se desenhou a lápis, antes do meio do traçado. 
Irwin Yalom, psiquiatra e célebre autor do "O dia em que Nietzsche chorou", usa esta analogia linear com os seus pacientes, exigindo-lhes uma localização cronológica e uma reflexão no baú dos remorsos. 
Não tenho muitos, mas tenho alguns, quase todos relacionados com perdas de tempo e com condutas pessoais que deveriam ter sido melhores como ser humano. Felizmente, não se tratam de remorsos feitos em insónias. 
Conhecermo-nos mais ou menos ajuda. Não tenho medo de reconhecer a minha vergonha nem as minhas limitações. 
Hoje cruzei-me com uma vergonha que me moldou e que se silenciou com o tempo. Quando era adolescente tive uma paixão como tantos outros clientes da Clearasil. Apaixonei-me e via na outra pessoa tudo aquilo que a falta de maturidade, o impulso sexual, o idílico romântico dos 17 anos te fazem pensar que é aquela e será eterna. 
Atirei-me de cabeça, baixei a guarda, abri os cordões à bolsa de moedas de mealheiro e tentei ser o mais encantador que um neto de analfabetos e filho de trabalhadores podia ser. Até pensava ter um look que ajudasse à conquista, a essa lenda de paixão a ondular nos meus cabelos louros. A verdade é que nunca fui muito confiante no que concernia a assuntos do sexo oposto, mas desta vez ia ser diferente, gostava da chavala a valer e ela correspondeu com charme, sedução e uns quantos serões de Verão de "curtes". 
A coisa não deu. Ela não estava virada para um "Brad Pinto" ridículo, pouco educado (a dizer "a gente vamos") e sem garantias dum futuro imediato interessante a vislumbrar desejos futuro. Conheci a minha primeira insónia. Derrotado na cama calorosa de Agosto, enrolei-me ensopado nos lençóis da vergonha e fechei para sempre a frustração de não ter sido aquela. 
Fui ao tapete muitíssimas mais vezes, inseguro mas atrevido, tentei viver o momento como me foi possível. Encontrei o amor e a reciprocidade e abraço-a todos os dias. 
Dessa época ficou essa vergonha, a de ter sido recusado. Sei que não era o indicado, que não encaixaríamos. Doía-me sentir a diferença, aquela que alguns do seu entorno apontavam a dedo, "ele não é do teu nível, do nosso nível"... Hoje esses que apontavam estão em cargos de poder político em Portugal. Por acaso são sociais-democratas mas podiam ser de outro partido qualquer. 
Como o Nietzsche, cujas lágrimas terão tido sífilis, o que não me matou fez-me mais forte. Mas tive vergonha, muita vergonha. De onde vinha, da humildade dos meus, da sua iliteracia, do nosso carro, de ter de dar serventia de pedreiro ao meu pai, de casa, do bairro, das minhas roupas, de mim. 
Hoje envergonho-me da minha vergonha. Sei o nível que tenho e gosto de não ter o mesmo nível dos que tão bem sabem apontar.