É verdade, isto do colesterol intelectual. Há coisas que enfiamos para dentro da nossa cabeça, que teimamos em assimilar, que não passam de gorduras saturadas, à boa maneira das morcelas de Leiria, ou de Burgos, que enfiamos para dentro do bucho, lambendo os dedos e, no dia seguinte, colhendo os frutos num local redondo que parece uma anilha em chamas. Coisas que nos dão um imenso prazer, mas que, no fundo, não servem para nada e não sei como é que o nosso organismo as assimila ou expele. O hedonismo, em suma. Algumas nem dão assim tanto prazer, mas, para bem parecer, também para cá as metemos. Já fiz isso com Tarkovski, e tal como a sua obra, foi um “sacrifício”.
Mas, apesar de ser um adepto dos temas gastronómicos, não é isto que me fez teclar por esta época do ano que, segundo o telejornal da TVI, é propícia à depressão.
Ontem, lá estava, como centenas como eu, num shopping a ultimar os últimos “regalos” natalícios. Muitos de vocês sabem o que são estas compras em que temos que tentar adivinhar o que poderá ser do agrado do outro ou ter alguma utilidade e, devo dizer, que é uma tarefa que roça o penar.
Já estava farto, à minha maneira, de andar daqui para ali e ver como estava rodeado de coisas que pouco ou nada melhoram a minha vida e que a sociedade faz com que pensemos que estas ainda hão-de ser prioridades. A elas estará intimamente unida a nossa busca de felicidade, é verdade. Sei que a minha prima não será a mesma se não atingir o seu ideal, a Britney. Se é que o consumismo traz felicidade, ao menos que seja momentânea como é seu apanágio… e que nos traga sexo! A sério, no futuro, ou se calhar já agora, os centros comerciais, a par das massagens tailandesas, dos spas e sei lá o quê, certamente terão novos bordeis e casas de prazer. Será isto uma imagem de uma sociedade degradada? Ou sou eu a anunciar o apocalipse em lingerie? As quatro cavaleiras negras do apocalipse, no dia da besta, a cavalgarem a besta que há em nós… Dirão alguns, “Heaven, I’m in Heaven, and my heart beats so that I can’t…”
As coisas que nos passam pela cabeça, quando já estamos fartos de estar num local em que o único movimento está associado ao vaivém de sacos de marcas registadas.
E onde estão as feministas? Onde estão? Certamente estão a discutir o porquê da utilização genérica do termo “homem” como sinónimo de humanidade, que as bilhas de gás não têm sexo e podem ser carregadas por quem seja, e todas essas questões que têm mais a ver com questões de géneros gramaticais e pouco com a verdadeira igualdade entre mulheres e homens. Onde estão essas senhoras e senhores? Onde estão? De certeza que não vão aos shoppings, ou são desses como eu que lá vão, gostam, e no entanto só sabem é criticar e armar-se em intelectualoides. De certeza que não vão, porque se fossem aperceber-se-iam que este comércio, ávido, hedonista, ilusório, tem faixa etária e principalmente copa B de “underbra”. Por essas bandas, não se vê o Sr. António alfaiate e a D. Joaquina modista, nem o Sr. Adelino e a D. Beatriz que venderam a retalho toda a vida com o lema de “servir bem e bem servir”. Mas como o cliente tem sempre razão, o melhor é mesmo optar pelas Britneys do salário mínimo, bem munidas de talha de sutiã, que nos deleitam o olhar e que, graças às suas tetas, podem comprar os seus presentes de escaparate.
Longe dos centros comerciais, apesar de saber tudo sobre tecidos, marcas e como bem atender, vejo o Sr. Ernesto, que tantas calças e cuecas vendeu, sentado à espera da sua vez no centro de emprego, onde uma técnica, a recibo verde, à qual não consigo avaliar a copa, apesar do decote, lhe diz: “Apesar da sua experiência, Sr. Ernesto, não me parece que o senhor se adeqúe à candidatura desta loja de roupa especializada em pijamas”.
O Sr. Ernesto, resignado nos seus quarentas e picos, inspira fundo e pensa: “no próximo Natal vou pedir ao Pai Natal uns implantes”, tudo isto vislumbrando um horizonte arredondado, voluptuoso e de copa desconhecida.
1 comentário:
OPINIÃO - “Crónicas de Lisboa”
Quando eu era menino, era (muito) pobre e, para mim, o Natal era um “luxo” dos outros meninos, ricos ou remediados. Havia na igreja da minha aldeia, um presépio muito bonito e no qual estava um menino que tinha nascido tão pobre quanto eu, porque também eu nasci numa “manjedoura” e no dia do Seu aniversário de nascimento (25 de Dezembro), celebrava-se esse acontecimento e o padre “dava-nos” a beijá-lo, nu como tinha nascido, tal como todos nós, residindo aí a única igualdade entre pobres e ricos, isto é, nascermos nus.
Tal como Jesus, menino entretanto feito homem e do qual não se conhece a sua vida na fase da idade da adolescência e da juventude, segundo as escrituras e das quais muito pouco sei, também eu fui “promovido”, prematuramente, a homem muito cedo e parti, por este mundo, deixando o a minha aldeia beirã, tal como Jesus o fez, onde nasci e cresci até aos onze anos. Não parti para pregar a doutrina do bem, do amor e da fraternidade entre todos os seres humanos, mas sim para lutar contra a “fatalidade” de ter nascido pobre e pobre poder vir a ser toda a vida, se cruzasse os braços e me resignasse.
Se Cristo lutou contra os “adversários”, ao ponto de ser condenado e crucificado, também eu lutei contra muitas adversidades e sofrimentos, mas pé antes pé, fui vencendo cada etapa da vida e deixei de ser pobre, material e culturalmente falando. Fui, na escola (real), mas também na dureza da vida, por vezes a melhor escola, aprendendo a ser homem e fui vencendo. Fiz-me homem e atingi a “riqueza”, não a riqueza material de que se fala e que cega muita gente, mas uma certa “riqueza” assente na realização pessoal e profissional, pelo que me posso considerar um privilegiado, colhendo os frutos de muita luta e maiores sacrifícios. Contudo, o desgaste dessa luta também apareceu para me fazer companhia ou me transmitir a mensagem de quão frágil é esta nossa vida e, por isso, aprendi ainda mais os valores de que nós, os seres humanos, deveríamos praticar e ver nos outros, seres como nós, uns mais ricos e outros mais pobres, mas todos filhos de um Deus Maior que, por vezes, parece esquecer-se daqueles que sofrem.
Olhando em redor, num horizonte global, fico magoado por ver que, a final, a doutrina de Cristo, que é (deveria ser) uma referência mesmo para aqueles que não acreditam ou professam outras religiões, foi sendo substituída, neste últimos tempos, com uma velocidade estonteante, por uma outra “religião” e que se chama “consumismo”. Esta, que em vez de pregar a fraternidade entre os humanos, faz apelo a outros valores que nos tornam, nós humanos, menos sensíveis aos problemas dos outros e nos deixam mais pobres, apesar de materialmente falando nunca a sociedade ocidental ter tido um nível de vida como o actual. O natal (este novo natal) até começa cada vez mais cedo, por efeito também das acções e da força do Marketing, mas também porque muito cedo, crianças, jovens e adultos começam a desejar que esse natal chegue depressa. Que pobres que nós somos, apesar de cada vez mais estarmos rodeados de bens materiais (somos ricos, por isso?), muitos dos quais acabam por ser inutilidades e desperdícios! E no meio de tudo isto, tanta hipocrisia e tanta frieza em torno dum período que deveria ser de doze meses em cada anos de fraternidade, de solidariedade e de paz e amor. Paradoxalmente, comemoramos um aniversário e não “convidamos” o aniversariante e pensarmos na força e na actualidade das Suas mensagens e, meditando nelas, podermos fazer uma autocrítica dos nossos (novos) valores e dos nossos comportamentos. Quantos de nós não nos sentimos tristes logo no dia 26 de Dezembro e à espera de um outro Natal? Sinto-me “pobre” e perdido neste tipo de natal e fico (muito) triste, mais triste ainda neste período do que durante o resto do ano, porque talvez estejamos a ficar cada vez mais “pobres” e mais frios e isso não nos traz a felicidade e a (outra) riqueza.
Serafim Marques / Economista
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