Preocupamo-nos mais com os que não são da nossa espécie que com os nossos semelhantes. Como se costuma dizer “não é defeito, é feitio” e é uma constatação óbvia. No outro dia, antes da semana das festas natalícias, rumei a Lisboa, quer para fazer um pouco de turismo, quer para poder aceder as umas publicações que, apesar da internet, teimam em não chegar ao resto da “paisagem”. Andava eu por as ruas da baixa pombalina, quando me deparo com a astúcia de um mendigo, mendigo esse que utilizava os cachorrinhos da sua fiel cadela para fazer mais uns trocos para a sopa quente, o pão ou para mais uma narcótica dose. Não sei, sei que pedia uns trocos para tirarmos fotografias com os “cachorrinhos de Natal” e, se regateássemos, talvez pudéssemos comprar os rafeiros a um destino que antevê rua e restos do lixo. Claro que a ideia teve êxito, as pessoas derretiam-se, principalmente as do género gramatical feminino, com os fofinhos cachorrinhos que se abrigavam no velho cesto de vime sob o olhar atento e triste da sua progenitora e o olhar oportunista de um desdentado oportunista que confundiu a amizade (não digo amor porque se o ser humano tem dificuldade em entendê-lo talvez um canino também tenha, ou não…) da sua fiel companheira, aproveitando-se, sem um pingo de vergonha, do fruto do seu ventre abusado numa época de cio.
É curioso que os cachorrinhos manifestavam mais interesse que o sem-abrigo. Qual dos dois manifesta mais compaixão quando lado a lado? Imaginemos um pobre cachorrinho, parido onde a mãe o pôde parir, na mesma rua, na mesma arcada, que um sem-abrigo, também ele parido por alguma “cadela” que o destino, ou uma hipoteca, um desaire, uma opção, um erro fez com que se tornasse o rafeiro de uma sociedade de pedigrees atestados por contas bancárias ou estatutos estranhos ao mundo animal. Já imaginaram? Eu já. Devo dizer-vos que prefiro o cãozinho, a quem posso fazer festas, dar de comer, comprar um ossinho para brincar, que, apesar das pulgas e de me cagar a carpete, sei que vou ser bem visto pelos meus amigos, família e pela liga protectora, e, com um pouco de astúcia, ainda posso ensinar a obedecer-me cegamente. O que é bom se o ensinarmos a ir buscar o jornal ao quiosque da esquina.
Os outros, os que todos os dias engrossam a lista dos proscritos pelos governos dos números, os que começam com a envergonhada carência e desaguam na miséria olvidada, que não pedem habitação social nem têm direito de antena, apesar da Lassie ter há mais de cinco décadas (pelo menos),apenas à sopa aguada dos pobres. O melhor mesmo é olhar para o lado, esconder-me na minha vergonha, na minha confortável vergonha, e seguir o meu caminho, na esperança que o tecto que me protege nunca venha a ser de cartão e que no futuro existam mais “ligas” que cuidem da minha espécie.
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