domingo, março 17, 2013

"O Armário" de Manuel Alegre (Em momentos como este, penso como seria ter este poeta como presidente do povo português? Pelo menos palavras teria. Já seria alguma coisa.)


Quando abrires o armário tem cuidado
mais que versos falhados cartões melancolia
pode sair de repente o que não esperas
aquela cujo sol de um outro tempo
quando olha para ti ainda te mata.
Por isso tem cuidado: não abras as gavetas
talvez Deus esteja escondido
ao lado do retrato da primeira comunhão.
Não abras: pode soltar-se
o espírito
podem sair os mortos todos
as bruxas o diabo as cartas o destino
e aquela parte da tua vida que não cabe
não cabe em nenhum verso.
E se o bafo soprar?
Não abras
não abras as gavetas.
Pode sair a tua guerra
os aerogramas
as cartas escritas da cadeia
o amor o tempo as emboscadas
as longas noites de interrogatório
e também os duzentos metros livres
uma tarde de glória na Praia das Maçãs.
Este no pódio és tu.
Não queiras ver.
O que passou passou e não passou.
Deixa ficar o sol fechado no armário
o sol e a vida
não só poemas cadernos e retratos
mas também lâminas um pincel de barba
um pente
os pequenos nadas do teu quotidiano
antes do salto.
Tão inúteis agora.
Ninguém regressa à vida interrompida
mesmo que por dentro do armário
bata por vezes um coração.
Tem cuidado ao abri-lo.
Pode sair o que nunca imaginaste
um pedaço de Deus em papéis velhos
uma foto esmaecida
um amor rasgado
sabe-se lá o quê.
Alguém que não conheces
alguém que não sabes quem
alguém que aponta o teu retrato
e de repente diz: Ninguém.

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