aprende-se a sublinhar, a
anotar, a apontar num livro, porque já se viu alguma vez uma palavra, verbo,
frase acariciada pela tolerância do lápis ou sentenciada pela ponta ajuizada duma
esferográfica.
de ciências (ou meio físico
talvez) da 3º classe, herdado de irmão de segunda mão. estava no armário da
gaveta de quinquilharias úteis do meu avô joão. esse e um livro para traçar
letras, analfabetizadas pelas circunstâncias, que não se sabem ler mas esperançadas
de ser a chave de uma porta qualquer ou ferramentas para operar longe do mundo
operário. estes eram os únicos livros que a casa dos meus avós possuía.
eram escassas as letras no
pátio do carvalho nº5 e o carteiro, à exceção da contas com números para pagar,
também não nos letrava. a vida levava-se com a razão do pão nosso de cada dia,
de estantes vazias, limpas de pó, cheias de afectos visíveis e invisíveis, com cúmplices
passos xadrez, de chão branco e castanho, numa cozinha de bancos duros e
conversa suave.
o cheiro frio matinal livre do
peso dos cobertores que pesavam em temperatura mas que me guardavam os sonhos
de menino. o couro cabeludo fresco no áspero verão de sabão azul com o aroma do
banho de mangueira, o final de tarde duma infância loira penteada com a mão
firme em doçura de helena, que deixara tróia para ser minha avó e leal como
todos nós.
com meu avô páris e sua
helena, o azul dos meus olhos mergulhou pela primeira vez no atlântico. os meus
progenitores estavam ocupados a construir um reino que afinal se vendeu antes de
afundar-se.
nas margens em branco das
páginas do livro de ciências (ou meio físico talvez), amarelecidas pelas
passagens das estações com paragens pontuais de poucos dedos, estava um itálico
pueril de “importante”. provável
apontamento futurista de tio para sobrinho. um de vários para rios de portugal,
linhas de norte a sul da cp e a constituição de uma planta que só fazia a
fotossíntese para louvar deus e,
eventualmente, se salazar deixasse.
esse livro morreu nas minhas
mãos. matei-lhe a genealogia na minha idade média adolescente. abriu-me as
portas do renascimento mas ainda bem que não me viu piegas como os românticos.
ficou no coração, ajudou a cabeça a ser humana e ajudou a pagar a alimentação do
estômago para que chegasse à modernidade tão desassossegada por um passado com
tão poucas letras…
mas tão, tão sublinhado.
XI/MMXIV
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