sexta-feira, maio 20, 2022

Entrevista a Luis Leal sobre "António Ferro - Ficção" (E-Primatur), 01/XII/2021

Há uns meses, ainda o meu filho era recém-nascido, fui contactado por um meio de comunicação português para responder a uma entrevista sobre a publicação de "António Ferro, Ficção" (para a qual tive a honra de elaborar a introdução). Apesar de andar com os sonos trocados, e estarmos cansadíssimos em casa devido ao novo descendente, sem hesitar respondi sim, pois os implicados na publicação da E-Primatur merecem o meu esforço e grato por se terem lembrado de mim para refletir sobre esta faceta de Ferro. Portanto, com a melhor vontade e da melhor maneira possível, cumpri com a minha palavra e respondi às perguntas colocadas, que, teoricamente, seriam publicadas nesse meio de comunicação que me contactou.
Admito que as respostas não tenham interesse editorial, admito também que outras vozes sejam mais interessantes do que a minha para falar sobre este assunto, porém, não admito é que me façam perder tempo. Digo isto após ter respondido ao solicitado sem sequer haver a decência de uma breve nota ou explicação do tipo "já não nos interessa a sua entrevista, não está dentro da nossa linha editorial". Nem menciono a consideração de um possível e-mail com um "obrigado e desculpe tê-lo feito perder o seu tempo", após as minhas infrutíferas tentativas de comunicação.
Locais, regionais, nacionais ou internacionais, todos os media (e profissionais sérios) merecem o meu respeito. Neste caso, merece um respeito proporcional à consideração que tiveram com o meu tempo e a descortesia de nem dar uma lacónica explicação.
No entanto, a entrevista está feita e publico-a aqui, no meu blog pessoal, para ficar ao escrutínio de quem tiver interesse em conhecer a obra ficcional desse intelectual, tão polémico como interessante, que foi António Ferro. Se se sentirem a perder tempo com as minhas respostas, avanço desde já as minhas desculpas, longe de mim querer ser mal-educado e roubar-vos um bem tão precioso. 

Entrevista a Luis Leal sobre "António Ferro - Ficção" (E-Primatur)
(01/XII/2021)

1. José Augusto França disse que a obra de António Ferro acrescentou ao modernismo português “uma dimensão em certa medida mundana, algo superficial e banalizadora”. José Barreto, em “Fernando Pessoa e António Ferro”, descreveu-o como um modernista menor. Na introdução às ficções, procura colocá-lo num lugar de maior destaque, dizendo que o trio Pessoa, Sá-Carneiro e Almada “sempre encontrará um denominador comum António Ferro”. Afinal, qual foi o papel de Ferro no modernismo em Portugal? E em termos literários? Tinha a qualidade do trio referido ou era de facto mediano?

Quando me refiro a António Ferro como um denominador comum a este trio de peso do Primeiro Modernismo português faço-o sem uma perspectiva de crítica literária, isto é, sem querer reivindicar comparações qualitativas entre a obra destes autores. Faço-o sim com a intenção clara de recuperar a figura de António Ferro para o conjunto de literatos vanguardistas deste período, principalmente pelo papel activo que desempenhou na promoção destes três autores, tanto dentro como fora de Portugal. Como é bem sabido, e de forma resumida, António Ferro foi “recrutado” para editor da Orpheu, por Mário de Sá-Carneiro (com o beneplácito de Pessoa), dado que ainda era menor e, portanto, inimputável. Parece-me injusto não reconhecer o interesse pessoal dos directores da revista, tal como não referir que, sem negar panegíricos, polémicas e interesses pessoais de ambas partes, Fernando Pessoa, Mário de Sá-Carneiro e, principalmente, Almada Negreiros beneficiaram da sua relação pessoal com António Ferro. Recorde-se, sucintamente, a publicação de Mensagem de Fernando Pessoa pelo SPN capitaneado por Ferro, que, sendo ou não do agrado do poeta dos heterónimos, é um facto, tal como menções constantes à obra de Mário de Sá-Carneiro (colega do Liceu Camões a quem António Ferro dedicou A Amadora dos Fenómenos, reeditada neste volume) podem ser encontradas em vários momentos da biografia de Ferro, e a peculiar relação com Almada Negreiros, quem mais veementemente excluiu António Ferro do movimento de Orpheu, principalmente depois da visita do “académico Marinetti” a Portugal, em 1932. É curioso comprovar como, escassos anos antes, em 1930, a relação entre Almada e Ferro apresentava contornos diferentes, sendo António Ferro visto por Almada como uma companhia que desafiava “as leis do espaço e do tempo”, algo bem grafado pelo punho e letra do polémico anti-Dantas numa carta dirigida a Ferro desde Madrid, a propósito de uma possível visita dos espanhóis Antoniorobles e José López Rubio, dois nomes bastante conotados com o legado da célebre tertúlia do Café Pombo na capital espanhola. Poder-se-ia reforçar este argumento com os trabalhos artísticos que Almada Negreiros fez para António Ferro, como a capa de A Idade do Jazzband (1923), porém, em épocas posteriores, já na génese do órgão da propaganda salazarista, basta remeter para o cartaz de propaganda à Constituição de 1933 e o selo que ilustrou o slogan do Estado Novo “Tudo pela Nação, nada contra a Nação”. Há algumas perspectivas que parecem remeter unicamente para um António Ferro oportunista, carreirista, com intenções ocultas em busca de protagonismo. Não o nego, mas ao mergulharmos na história (epistolografia principalmente) constatamos que o futuro homem forte da Política do Espírito do Salazarismo não foi o único, o que é perfeitamente normal à luz das circunstâncias da época. 
Explicado este denominador comum, apesar de polemista, creio que o papel de António Ferro no Modernismo em Portugal foi sobretudo de divulgação. Na sua autopromoção, principalmente no Brasil e na vizinha Espanha, António Ferro também divulgou nomes maiores (e menores, para recorrer aos adjetivos que usou na sua pergunta) inerentes ao Modernismo português. Merece a pena estudar o périplo de Ferro pelo Brasil em 1922 e as colaborações em 1928 em La Gaceta Literaria, de Giménez Caballero, publicação madrilena na qual o português foi codirector, com Ferreira de Castro, do suplemento La Gaceta Portuguesa.  Aproveito para responder à última questão da qualidade da seguinte forma: não me parece sequer pertinente confrontar a obra literária de António Ferro a um colossal Fernando Pessoa. Quanto a Sá-Carneiro e a Almada também não me parecem adequadas comparações. Porém, não considero o percurso literário de António Ferro menor, muito menos tendo em conta como a sua figura vincula a literatura portuguesa da época ao Modernismo brasileiro ou ao “Ultraísmo” espanhol.  A título pessoal, parecem-me redundantes rótulos de maior ou menor, quer no âmbito artístico, quer no âmbito da investigação. Prefiro conceber autores centrais e periféricos e, efectivamente, António Ferro tem andado na periferia dos estudos literários. Trazê-lo para o centro do meu estudo tem sido sumamente interessante e devo dizer que tenho bastante curiosidade em aprofundar a poesia de António Ferro editada postumamente em Saudades de Mim (1957), que, segundo alguma crítica, não suscitou qualquer interesse.

2. Pessoa, Sá-Carneiro e Almada, que conheceram Ferro e com ele privaram, puseram em causa a sua adesão ao movimento modernista, que de facto nunca chegou a ser total, como mostra a sua curta associação ao “Orpheu”, do qual se afastou definitivamente após a infame carta de Álvaro de Campos à Capital. O próprio Ferro fez questão de se desvincular do modernismo e foram vários os críticos, alguns deles citados na questão anterior, que defenderam que a sua obra ficcional e poética não era suficientemente importante no contexto do movimento em Portugal. Tendo em conta tudo isto, é justo classificar Ferro como modernista e estabelecer uma ligação entre ele e o chamado primeiro modernismo português?

Creio que a resposta anterior já aborda a questão que agora me é feita. Não me parece que António Ferro se tenha querido desvincular do Modernismo com a questão do “editor irresponsável” dos dois primeiros números da Orpheu. Alfredo Guisado, o “poeta galego” como era conhecido, assumiu uma postura afim à de Ferro e tal não se deveu a unicamente pressupostos estéticos, mas também políticos. O Modernismo português não se esgota no movimento de Orpheu, nem no âmbito da literatura, e, no caso de António Ferro, podemos encontrá-lo vinculado à “Questão dos Novos” da Sociedade Nacional de Belas Artes, em 1921, ou à revista Contemporânea de José Pacheko, a título de exemplo. A cisão foi com os “orpheístas”, não com o Modernismo, ou Vanguardismo, como o próprio preferia denominar o movimento estético. Outra prova do que afirmo é o panfleto-manifesto Nós (1920), publicado posteriormente no nº3 da revista Klaxon (revista veicular emblemática do Modernismo brasileiro), que, apesar de haver sido renegado por um Ferro reconvertido em homem do regime, vinculam o seu percurso literário com as vanguardas literárias da época. A meu ver, negligenciar ou omitir o nome de António Ferro deste período é empobrecer a história da literatura portuguesa.

3. Ferro tem sido sucessivamente ligado ao modernista espanhol Ramon Gómez de la Serna, não só pela amizade que os unia, mas também por uma alegada influência literária. A obra “Teoria da Indiferença” tem sido descrita como pertencente ao género greguerístico, inventado por Gómez de la Serna. Na introdução, afirma que “o estudo da morfologia da greguería, a par do estudo da obra vanguardista de Ferro, permite afirmar que o autor não praticou o género”. Porquê?

Para lhe responder como gostaria, necessitaríamos abordar em profundidade o género de Gómez de la Serna, que no cânone literário espanhol assume mesmo estatuto de ismo, o “Ramonismo”, e, por antonomásia, ficou para a história da literatura universal conhecido como Ramón. Contudo, de forma resumidíssima, o género da greguería tende a esbater o ego de quem as enuncia e, normalmente, prima pela ausência de um olhar lírico expresso na primeira pessoa do singular, acabando mesmo por não necessitar sequer de sujeito de enunciação para expressar todo o seu fulgor e, da mesma maneira, possibilitar identificações alheias, por exemplo (recorrendo a uma tradução da minha autoria): “Pedais da bicicleta: máquinas de cortar o cabelo às distâncias”. É interessante constatar que, anulando o humorismo greguerístico, encontramos características semelhantes no haiku. Note-se que a própria greguería pode ser tida como um exemplo paradigmático de toda a obra de Gómez de la Serna, caracterizada por uma mundivisão humorística, mas ingénua, virgem, repleta desse pensamento mágico que associamos à primeira infância, porém, atenta à casualidade, eis o porquê de ser tão próxima do género japonês. 
Por sua vez, em António Ferro encontramos uma aparente indiferença, e um humor petulante, a isolar-se em si mesmo (em palavras do próprio “A minha indiferença isola-me. Só me conheço a mim... por isso, só me admiro a mim...”). Mediante o seu indigitamento como jovem literato português (e futuro cultor duma Política do Espírito), não se encontra propensão ao acaso fora do âmbito do culto da sua personalidade e da sua própria autoestima. Daí não poder subscrever possíveis teses de António Ferro ter praticado o género da greguería, o que não invalida ter sido um leitor (e interlocutor) privilegiado, permeável à influência estética do espanhol. A Ramón associa-se uma estética afável, comparada a “um sorvo de água fresca, vinda do poço de um homem bondoso, ingénuo e roussoniano”. Em António Ferro encontramos uma intenção de manifesto, de afirmação pessoal e artística, não encobrindo um egocentrismo quase inexistente no seu congénere espanhol. 
Portanto admito que, à simples vista, a obra de cariz aforístico de Ferro possa remeter o leitor para essa dimensão mundana, algo superficial e banalizadora que antes referiu, contudo, quando me adentrei no estudo biobibliográfico de António Ferro, tendo acesso a um espólio epistolar riquíssimo com grandes vultos da cultura do século XX, patente na Fundação António Quadros – Cultura e Pensamento, afastei-me dessa ideia que muitas vezes me parece preconcebida, tanto pelas conotações de António Ferro com o Salazarismo, como por desconhecimento.

Rámon Gomez de la Serna numa foto no seu El Ventanal, Estoril, à conversa com António Ferro. (Diário de Notícias, 1924)

4. Diz que o facto de Ferro não ter praticado a greguería “não invalida” que tenha sido “permeável à influência estética de Gómez de la Serna”. Em que é que se traduziu essa influência?

António Ferro começou a moldar o seu perfil de literato no início dos anos 20, quase em simultâneo com a sua carreira como repórter, e na sua escassa obra demonstrou ser proclive à estética do átomo, do fracionamento, que convida a reconfigurar, pelos espaços que gera e nexos implícitos a um tema subjacente, uma unidade encoberta, abrangente, polimorfa, como a que se associa ao género da greguería. O prefácio de António Ferro para a tradução de La Roja (1923) de Ramón é uma prova evidente (fortemente amparada por um epistolário de três dezenas de cartas enviadas pelo espanhol ao seu amigo português) que este foi um conhecedor privilegiado da obra de Gómez de la Serna, desde a mais minúscula greguería até às grandes monografias e novelas, nas quais o madrileno (que chegou a ser um ilustre residente do Estoril) se dedicou a desconstruir, a decompor, para depois voltar a reunir, a associar o desarticulado numa vasta collage. A greguería – género novo, estrutura quase única e paradigmática da obra ramoniana – apresentou-se a António Ferro como uma estrutura emergente e dinâmica, uma estrutura “a libertar-se”, passível de concentrar-se ou expandir-se para, de seguida, transformar-se e libertar os restantes géneros que toca. Posto tudo isto, parece-me improvável que um intelectual, com o perfil de António Ferro, ficasse indiferente a um contacto tão privilegiado com o génio de Ramón Gómez de la Serna.

5. A par de Gómez de la Serna, as influências de Ferro parecem ter sido sobretudo estrangeiras. Podemos dizer que os referentes do escritor estavam fora de Portugal e que os modernistas portugueses, a quem esteve brevemente associado e que depois criticou, não exerceram qualquer influência sobre a sua obra escrita?

Apesar de ter sido apelidado como “o Gómez de la Serna português”, tenha-se em conta que António Ferro negou publicamente, em 1928, nas páginas de La Gaceta Literaria, o magistério de Ramón, rematando o assunto de qualquer afinidade estética para a leitura atenta da obra de ambos. Segundo Ferro, quando este conheceu a obra do pai das greguerías o seu espírito já estava em marcha, já estava formado, partilhando com o espanhol apenas a época, o tempo e uma estreita camaradagem. Aproveita para recordar que Valéry Larbaud, conhecedor de ambas obras, o coloca na mesma família literária de Gómez de la Serna, mas em modalidades diferentes e, caso se assemelhasse a alguém, seria ao francês Joseph Delteil. Esta afirmação de Ferro afasta-me um pouco da perspectiva de António Rodrigues que conflui a obra de António Ferro para a estética futurista de Marinetti ou, até mesmo, para o Dadaísmo. A alusão de Joseph Delteil por parte do próprio António Ferro, a par de um confesso fascínio pelo ambiente parisino, não o perfila no ambiente Dada de Zurique. No entanto, dados os pontos de convergência entre Dadaísmo e Surrealismo no seio das vanguardas literárias, considero que António Ferro foi bastante permeável a ambos, mais do que aos seus contemporâneos modernistas em Portugal. 

6. A ficção de Ferro decorre sobretudo na cidade de Lisboa, num ambiente cosmopolita e moderno. Como é que se explica a centralidade da capital portuguesa na sua obra e a escolha de ambiente?

Perdoe-se-me a analogia, mas na obra literária de António Ferro “Lisboa é Portugal e o resto é paisagem (ou reportagem)”. Por favor, não confundamos esta faceta de António Ferro com o seu papel como Teseu da propaganda salazarista. O cosmopolitismo do jornalista com estatuto de repórter estrela do Diário de Notícias, esse “enviado-especial” da imprensa portuguesa da época, não era propício ao ambiente natural e aos elementos bucólicos. Nada melhor do que as palavras do próprio nas páginas da Ilustração Portuguesa, revista de O Século da qual foi director no início dos anos 20: “Lisboeta do Chiado, da Serra do Chiado, custou-me a habituar à serra do Gerês, custou-me a receber a intimação dos montes... Ontem, porém, lá fui, lá investi com a montanha, contrafeito, esquivo, como quem vai fazer a reportagem dum crime, como quem vai para uma repartição pública, a repartição pública da Natureza...”. Sem dúvida, a “natureza do Chiado” é a que predomina na literatura de António Ferro. 

7. Sugere que Ferro abandonou a escrita por simples desencanto e não pela sua entrada na vida política ativa. O que é que o leva a afirmar isso?

Apesar de estar ciente do perfil político e de autopromoção de António Ferro, inquestionavelmente conotado com o regime ditatorial mais longevo da história da Europa, sou capaz de admitir tal desencanto. Como também admito que me entristece ver neste presente que tal admissão possa ser vista como um atrevimento, uma ousadia de pensamento. A leitura da última novela, relativamente desconhecida e agora recuperada nesta edição, intitulada “Suicídio” (1929) publicada na revista Civilização de Ferreira de Castro (como quem codirigiu La Gaceta Portuguesa e, ao parecer, também cortou relações depois de 1933) ampara esta minha sugestão. Por mais ambição que se lhe possa associar, por mais poder (real ou simbólico) que possa ter tido, António Ferro era humano, no sentido em que se algo caracteriza o carácter humano é que não é estático, oscila entre estados de espírito, estímulos, sucessos e reveses. À luz da psicologia contemporânea, há autores que encontraram em António Ferro síndrome de “um verdadeiro workaholic”, misturado num turbilhão de cultura e criatividade, da qual se beneficiou o Estado Novo de Salazar, daí que admitir cansaço e desencanto acaba por apenas humanizar uma figura controversa que adquiriu a rigidez da história e a falta de flexibilidade de algumas mentes dogmáticas.

8. José Barreto, num texto incluído no livro “Portuguese Modernisms: Multiple Perspectives on Literature and the Visual Arts” (2011), contemplou uma outra possibilidade, a de o fim da carreira literária de Ferro se ter devido à implementação da censura, que o próprio aceitou e apoiou. Parece-lhe uma hipótese plausível? 

Muito plausível e um amplo conhecimento das várias facetas da sua vida permite equacionar e até justificar tal cenário, contudo, esse mesmo conhecimento, a par de uma análise textual da obra de António Ferro, igualmente permite contemplar a perspectiva que antes mencionei, sem cair em qualquer tipo de preconceito, seja ele de carácter estético ou ideológico.

9. A obra literária de António Ferro tem recebido pouca atenção. Considera que isso se deve exclusivamente ao papel que desempenhou no regime salazarista e à dificuldade de tratar a sua obra literária ignorando esse mesmo papel? Ou será que a pouca atenção que tem recebido tem a ver com o papel secundário que muitos consideram ter desempenhado e com a qualidade mediana dos seus textos? 

Ainda que escassa, estamos perante a obra literária do verdadeiro engenheiro do espírito de um regime ditatorial constitucionalmente instaurado, vigente desde 1933 até ao 25 de Abril de 1974, e que permite asseverar que Ferrismo é o ismo epistémico do Salazarismo. O papel que António Ferro desempenhou à frente da propaganda do Estado Novo tem uma importância superior ao seu legado como escritor e isso é evidente, contudo, estudos recentes que vinculam a sua figura a grandes nomes da literatura mundial (Ramón Gómez de la Serna é disto um exemplo paradigmático), faz com que devamos prestar mais atenção ao António Ferro literato. Se não tivesse ocorrido um incêndio na Calçada dos Caetanos nos anos 60, onde António Ferro residiu com a sua esposa Fernanda de Castro e a sua família, possivelmente, o já fecundo espólio da Fundação António Quadros – Cultura e Pensamento seria visto como outros mais mediáticos, porém com um valor documental menos relevante. Quero dizer, de volta e meia, encontrar-se-ia – como frequentemente acontece – mais um interessante documento (carta, texto, simples recorte de imprensa ou livro dedicado, etc.) e tal achado teria uma atenção pública merecida, principalmente porque o espólio da família Ferro/Castro/Quadros em Rio Maior não se cinge à literatura. Como investigador, centrado nos estudos literários ibéricos, creio que António Ferro um dos protagonistas culturais do século XX e muito ainda está por se discernir nos seus textos alheios à Política do Espírito do Estado Novo. 
António Ferro - Ficção (introdução Luis Leal), 2021, E-Primatur






Sem comentários: