Há 15 anos, um jovem oriundo do distrito de Portalegre
preparava-se para ir a uma gráfica buscar a edição de autor de um livro que
intitulou “Morreste-me”. Duas manifestações de coragem num só acto: uma, a valentia
da edição de autor; duas, o atrever-se a afrontar um tabu através de um ensaio íntimo
e pessoal sobre a morte. Não imaginava que tinha sido no mês de maio…
Hoje, esse jovem feito homem, o José Luís Peixoto, desde o
distrito de Portalegre para o mundo, partilhou esse facto, essa efeméride que
marcou para sempre a literatura portuguesa e a vida de muitos que tocaram, com
algo mais que o olhar, as suas palavras.
Foi já bastante tarde que me cruzei com a perda do José
Luís. Já admirava o autor, conhecia o livro, supunha que conhecia o assunto,
mas ninguém conhece a dor do outro, nem mesmo depois de lê-la na primeira
pessoa. Tratava-se do meu medo assumido de abordar essa parte de uma biografia
a quem, como se costuma dizer, ninguém escapa.
“Morreste-me” interrompeu-me uma tarde de estudo numa biblioteca
do distrito de Portalegre. Interrompeu-me com a força escondida que têm os
pequenos livros, ocultos por vezes pela lomba imponente do livro do lado, com
quem se comparte estante.
Naquele instante de leitura era minha a finitude do
progenitor, a infância que se desmoronava não num quintal, sim num pátio onde
já ninguém brincava comigo nem se sentavam no portado a apanhar o fresco dum
verão sem finais de tarde… “Morreste-me” era também as minhas ruínas, aquelas
ausências, cujo medo assumido sempre me impediu de encontrar-lhe beleza ou
consolo.
Nunca fui capaz de falar muito sobre este livro, muitíssimo
menos escrever. Apercebo-me, no entanto, que está muito presente, mesmo que em
silêncio, no meu círculo de afectos. Assumi-lo dá-me um certo orgulho
vulnerável, diferente de outros orgulhos que espelham o meu ego com um sorriso
que assobia sem que se note.
“Te me moriste”, a tradução ao espanhol do Antonio Sáez é
também ela, nas palavras deste meu mestre e amigo, “um processo de luto
apropriado das palavras do Peixoto”.
Não sendo um diário de luz e sombra, “Te me moriste” tem
tanta luminosidade e escuridão como a “campiña” comum ao meu irmão José Antonio
Santiago, onde nos ardem tanto os que perdemos, como o incêndio que pintou Jola
cor de cinza. Essa dor morta-viva, ao bom estilo zombie agora na moda, que se
levanta do peito para lembrar-nos que a morte nunca está oculta se se está
atento à vida.
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