quinta-feira, novembro 22, 2012
Que conhecimento da democracia - José Gil
Divórcio, entre conhecimento e democracia
“ a lentidão da «aprendizagem da democracia», segundo a expressão consagrada pelo povo português. Os progressos no campo da história, do direito, da sociologia do nosso país não tiveram equivalência na prática da democracia, repercutindo-se timidamente no conhecimento geral que o povo tem dos mecanismos do Estado em que vive.
Mais: depois do surto que se seguiu ao 25 de Abril, os ânimos voltaram a uma espécie de apatia, tanto no campo político como, digamos, no da cidadania. As universidades, que vivem em círculo fechado, mas também o regime partidário, as suas práticas e os seus discursos, o «autismo» dos governos e a sua visão medíocre do futuro, a falta de imaginação e a falta de coragem políticas contribuíram largamente para que os reflexos herdados da ditadura demorassem (e demorem) a dissolver-se.
Refiro-me ao medo, à passividade, à aceitação sem revolta do que o poder propõe ao povo.
Como se, tal como antigamente, a força de indignação, a reacção ao que tantas vezes aparece como intolerável, escandaloso, infame na sociedade portuguesa (tolerado, aceite, querido talvez pela maneira como as leis e regras democráticas se concretizam na sociedade, quer dizer no húmus das relações humanas), se voltasse para dentro num queixume infindável quanto à «república das bananas» ou «a trampa» que decididamente constituiria a essência eterna de Portugal, em vez de se exteriorizar em acção.
Gostaria de insistir num ponto: o legado do medo que nos deixou a ditadura não abrange apenas o plano político. Aliás, a diferença com o passado é que o medo continua nos corpos e nos espíritos, mas já não se sente. Um aspecto desse legado deixou uma marca profunda num campo específico: no saber, na hierarquia do poder-saber que Salazar promoveu, cultivou e utilizou em proveito directo do poder autocrático que instaurou. O efeito desse medo hierárquico faz-se ainda hoje sentir.
Por exemplo, o direito à cultura e ao conhecimento ainda não chegou ao sentimento da população portuguesa. Que esse direito existe e que cada português deveria vê-lo para si cumprido – todos o sentem, mas como parte do que idealmente lhes é devido pela justiça (que, aí, nunca se cumpre). Essa aspiração não é, pois, uma exigência tão evidente para os portugueses que estes, iletrados e analfabetos, saiam para a rua em manifestação pelo direito à cultura. Porquê? Porque o 25 de Abril não conseguiu abolir a divisão instruído/sem instrução que correspondia mais ou menos ao par poder-saber/pobreza-ignorância do tempo do salazarismo. Porque na sociedade portuguesa actual, o medo, a reverência, o respeito temeroso, a passividade perante as instituições e os homens supostos deterem e dispensarem o poder-saber não foram ainda quebrados por novas forças de expressão da liberdade.
Numa palavra, o Portugal democrático de hoje é ainda uma sociedade de medo. É o medo que impede a crítica. Vivemos numa sociedade sem espírito crítico – que só nasce quando o interesse da comunidade prevalece sobre o dos grupos e das pessoas privadas.
Mas não somos livres? O poder que nos governa não é livre e igualmente eleito por todos os cidadãos? Estaremos nós a praticar, de forma perversa, mais uma variedade do queixume?
Não se pode, hoje, dissociar direitos democráticos e direitos de cidadania. A cidadania política, que engloba as eleições livres com o direito universal de escolher os seus representantes, não se concebe sem os direitos sociais, iguais para todos – direitos à educação, à saúde e todo o tipo de serviços sociais.
Numa outra linguagem, poderia dizer, com Espinosa, que o fim de todo o Estado – e toda a organização dos homens em Estados é fundamentalmente democrática, para Espinosa – é assegurar a liberdade do cidadão, entendendo por liberdade o máximo possível da expressão, em sociedade, do seu conatus, quer dizer, da sua potência de vida.
Ora, há diversas expressões, diversos graus de liberdade. Há sociedades e homens mais ou menos livres.
Portugal conhece uma democracia com um baixo grau de cidadania e de liberdade. Dou a esta última palavra um sentido próximo do sentido espinosista. Sabemos pouco – quero dizer, raros são aqueles que conhecem – o que é um pensamento livre. Raramente no nosso pensamento se exprime o máximo da nossa potência de vida.
Dito de outro modo: estamos longe de expressar, de explorar, e portanto de conhecer e de reivindicar os nossos direitos cívicos e sociais de cidadania, ou seja, a nossa liberdade de opinião, o direito à justiça, as múltiplas liberdades e direitos individuais no campo social. “
“Que conhecimento da democracia?” em “Portugal Hoje, o medo de existir “, José Gil
Subscrever:
Enviar feedback (Atom)
1 comentário:
Uma análise lúcida, mas terrível. Infelizmente, entra-te aquele sentimento empírico que já viveste estas palavras, vive-las e vivê-la-às...
Um grande abraço,
Primo Luis!
Enviar um comentário