terça-feira, março 19, 2024

"A Senhora Condescendência" - Crónica de Luis Leal in “Mais Alentejo”, nº 165, p. 68


Ia a caminho de um almoço familiar e tinha acabado de passar a fronteira quando a rádio me deu a notícia do falecimento do Comendador Rui Nabeiro. À cabeça veio-me “hoje não vou ver a minha irmã e é bem possível que no céu já se possa tomar um bom café".

    Apesar da relação laboral privilegiada da minha irmã no trato diário com o Sr. Rui e da estima e da saudade que lhe deixou, nunca tive a oportunidade de o conhecer. Porém, sou ciente do seu legado na região, no país, na minha Espanha adoptiva e, para além da fortuna e do património, não abdicou de ser um homem bom, cuja essência não se viu corrompida pelo deus pecunio. A sua biografia é notável, quer seja vista através da comparativa de escalar um Everest empresarial com o alpinista João Garcia, através de grandes entrevistadores como a Anabela Mota Ribeiro ou o Luís Osório, através dum “Almoço de Domingo” ficcional do José Luís Peixoto, ou, simplesmente, através de quem com ele lidou durante os seus quase 92 anos a provarem que no capitalismo cabe o altruísmo. Em suma, como dizia alguém e subscrevo, “mais Srs. Rui e menos Musks!”. 

    Nove décadas de vida e não acredito que, na sua senectude, alguém no seu perfeito juízo se tenha dirigido ao “Sr. Rui” (como sempre fez questão de ser tratado) com qualquer tipo de condescendência como algumas pessoas se dirigirem a outros nonagenários. Tristemente, o dinheiro, o estatuto, traz algumas garantias de como a sociedade nos vai tratar se tivermos a ventura (ou desventura) de chegarmos a esta idade. Vejam-se as claras diferenças no uso lexical de “cota”, “idoso”, "ancião" e “velho” e o “peso da idade” (vulgo PDI) mais do que evidentes em sociedades sensíveis à moda da denúncia de todo o tipo de pretensas injustiças, contudo, a necessitarem prestar mais atenção ao “idadismo”.

    Confesso, caro leitor, há muito tempo que não pensava nisto. Cresci entre pessoas de idade no seio da minha família e no entorno laboral da minha mãe (que dedicou mais de duas décadas da sua vida a um Centro de Dia) e, de maneira quase intuitiva, aprendi a respeitar todo tipo de rugas e cabelos grisalhos. Creio que vi um pouco de tudo, desde o queixume do reumático, a viuvezes traumáticas e libertadoras, a demência progressiva, a solidão, o mau caráter (quanto mais velho pior!), a miséria de corpo e de espírito, até ao júbilo de um ser de ter vivido uma vida que mereceu ser vivida, à sabedoria, ao humor geriátrico, e à contemplação tantas vezes condenada à apatia da televisão.

    Como numa foto, voltei aos meus verdes anos rodeado de gente já amarelecida por ter em mãos uma tradução duma peça ambientada num Lar de Terceira Idade espanhol e, na hora de adaptar à realidade sociolinguística portuguesa, deparei-me com uma das formas de tratamento que mais abomino com qualquer ser humano, quero dizer, quando nos dirigimos a alguém infantilizando-o. Que fique claro que não outorgo más intenções ou desprezo a quem muitas vezes se dirige assim a um idoso, tratando-o como uma criança, usando um tom condescendente que nem sequer com as verdadeiras crianças me parece pertinente usar em excesso. Não é por uma pessoa ter caído nas garras do Alzheimer, do Parkinson, ou da passagem do tempo, que automaticamente as devemos tutear ou usar um registo infantilóide. O Sr. João lá por não se lembrar do nome dos netos e estar acamado não passa a ser o “Joãozinho”, mesmo que a sua calvície redondinha nos remeta para um bebé fofinho. É preciso ter cuidado, o “carinho”, a meu ver, não deriva por aí. Evoluímos, temos diversos meios e gente consciente que a terceira idade deve ser tratada de maneira diferente da primeira infância pelo simples facto de, por mais que o idoso pareça regredir à infância, há uma diferença significativa entre ambos: ser criança implica ainda não ter passado.

    Se chegar à idade do Sr. Rui, por mais infantil que seja a minha personalidade e fisionomia, não quero ser o “velho Luisinho”, nem que falem comigo como nem sequer falo ao meu filho de 2 anos. Não quero salamaleques, nem títulos. Sentir-me-ei bem se continuar a ser o Luis e, caso mereça ser chamado “Ti Luis”, será porque o Alentejo sempre me fez ver que a sombra dum carrasco jamais se pode comparar à sombra duma azinheira.

Sr. Rui Nabeiro



"A Senhora Condescendência" - Crónica de Luis Leal in “Mais Alentejo”, nº 165, p. 68

Esta crónica já tem uns meses, tal como o Sr. Rui já faleceu há um ano, contudo creio que continua vigente e reitero o que se disse por aí: “Mais Srs. Rui e menos Musks!”. O falecimento deste homem ímpar e um trabalho de tradução literária que tive em mãos também me levaram a refletir se, em pleno século XXI, na era do “omniecrã”, tratamos com o devido respeito e prestamos a devida atenção aos nossos idosos. (in “Mais Alentejo”, nº165, p. 68)

Esta crónica tiene ya unos meses, al igual que el Sr. Rui falleció hace un año, sin embargo, creo que sigue siendo relevante y reitero lo que se ha dicho por ahí: “¡Más Sres. Rui y menos Musks!”. El fallecimiento de este hombre excepcional y un trabajo de traducción literaria que tuve entre manos también me llevaron a reflexionar si, en pleno siglo XXI, en la era de la “omnipantalla”, tratamos con el debido respeto y prestamos la debida atención a nuestros ancianos.






domingo, março 17, 2024

El típico dilema de los líricos...

El típico dilema de los líricos: ¿Vivir de los versos o vivir para los versos?
O típico dilema dos líricos: Viver dos versos ou viver para os versos?

La espera de la perfección...

La espera de la perfección es eterna, pero es perfecta en su finitud.
A espera pela perfeição é eterna, porém é perfeita na sua finitude.

A propósito de integração...

A propósito de integração: Integrava-se tão bem que ninguém dava por ele.
A propósito de integración: Se integraba tan bien que nadie se daba cuenta de él.

Urinou sobre...

Urinou sobre um formigueiro e sentiu o diluvio a sair da sua uretra de falso deus todo-poderoso. 

Orinó sobre un hormiguero y sintió el diluvio saliendo de su uretra de falso dios todopoderoso.

quinta-feira, março 14, 2024

Los hijos son maravillosos...

"Los hijos son maravillosos. Si yo no tuviera hijos, iría por ahí creyéndome Rimbaud.", escribió Charles Simic en una carta a Paul Auster. En mi caso creo que si yo no tuviera hijos, iría por ahí creyéndome Ramón.
"Os filhos são maravilhosos. Se eu não tivesse filhos andaria por aí a pensar que era o Rimbaud."   Escreveu Charles Simic numa carta para Paul Auster. No meu caso acho que se eu não tivesse filhos, andaria por aí a pensar que era o Ramón.

terça-feira, março 12, 2024

"Boas Festas (Com Sentido)" - Crónica de Luis Leal in “Mais Alentejo”, nº 166, p.110

    Boas Festas (com sentido) – Luis Leal

    Há anos ouvi uma entrevista à filósofa Emily Esfahani Smith e despertou-me curiosidade a sua investigação sobre “viver uma vida com sentido”, curiosidade que me levou ao seu livro e terminou numa leitura atenta e enriquecedora. Na realidade, fui prendado pela ocasião e isso, nesta época festiva, faz-me pensar nas prendas que gostaria de ver distribuídas mundo fora. Portanto, aproveitando a confiança do nosso director, que me permite partilhar os meus “Trabalhos&Paixões” na Mais Alentejo, escrevo esta crónica/ensaio e, em simultâneo, desejo aos nossos caríssimos leitores quatro presentes para além do mais importante de todos: a saúde. Sem qualquer preocupação pela sua ordem, vamos lá distribui-los!

    Presente nº1: Pertença.  Sintamo-nos valorizados e valorizemos os demais. Em casa, no carro, no trabalho, nas redes sociais, no estábulo, numa manjedoura, onde quer que seja. Recordemos que, a qualquer escala, em todos existe singularidade e importância, algo bem mais relevante do que a mera utilidade no seio de uma qualquer organização. (Presente extra: O filme, já clássico, de Adolfo Aristarain “Un lugar en el mundo”).

    Presente nº2: Propósito. Por outras palavras, objetivos, causas, motivações, estímulos que sejam o motor e o combustível da nossa acção. Note-se que todos os propósitos são dignos e não se medem nem por prestígio, nem por significância. Logo, tão respeitável é o desígnio de encontrar a cura para doenças oncológicas, como a vontade de deixar melhores seres humanos num planeta a precisar de melhoras.

    Presente nº3: Transcendência. E não é que somos minúsculos! Vestígios de poeira cósmica! Sejamos como o astronauta quando, sem gravidade, é invadido pela total humildade de saber-se uma partícula microscópica num vasto e incompreensível universo. Ser conscientes da pouca importância da nossa pessoa no cosmos é, paradoxalmente, um sentimento poderoso e profundo. Há quem reze, há quem medite, há quem dance... há quem se transcenda porque sabe perfeitamente o que é e não é.

     Presente nº4: Narrativa. Charles Dickens (esse mesmo do “Conto de Natal”!) perguntava, através de David Copperfield, “serei eu o herói da minha história ou qualquer outro tomará esse lugar?”. Quero dizer, que história de vida contamos a nós próprios? Miguel Torga escrevia diários (e não só), o imperador Marco Aurélio meditações, António Aleixo quadras populares, Claudio Rodríguez poesia, quando “estava poeta”, e o Zé Manel no X. Escrever a nossa vida ajuda a retirá-la da fragilidade do nosso corpo, do efémero dos nossos dias, e, com ou sem artifícios, permite editá-la perante os nossos próprios olhos. Decidir organizar os capítulos da nossa existência, decidir pontuar parágrafos, recorrer a vírgulas e pôr pontos finais é o livre-arbítrio na nossa história que, como bem lembrou Victor Frankl, nos pode salvar (e este neuropsiquiatra austríaco, formado pelo Holocausto, sabia empiricamente do que falava). Em resumo, porventura o sentido de uma vida não será muito diferente da sintaxe numa frase, quanto mais coerente é, mais sentido tem.

    Segundo Emily Esfahani, estes são os quatro pilares para uma existência com sentido. Admito mais nos quais possamos apoiar a carga que, por vezes, é viver e encontrar sentido onde não existe. Nestas festas, num mundo assolado por conflitos convenientemente enquistados e no qual impera o individualismo, tenho a sorte (como diz a Garota Não, que também me dá muito trabalho!) de ter pilares bem alicerçados: pertenço a uma família socialmente inserida em dois países, entre duas culturas, tenho uns quantos propósitos, transcendo-me sempre que possível e vou-me escrevendo, vou pontuando este texto desorganizado que sou e necessita de ter sentido para, por enquanto, não ser apagado. Votos de Boas Festas (com sentido).



"Boas Festas (Com Sentido)" - Crónica de Luis Leal in “Mais Alentejo”, nº 166, p.110


 

sábado, março 09, 2024

6/III/2024 Notícia do falecimento de A-PV...

Recebo a notícia do falecimento do António-Pedro Vasconcelos com bastante tristeza. A cultura portuguesa perdeu um homem interessantíssimo com o qual tive a honra de aprender e de partilhar alguns momentos graças à nossa “Mais Alentejo”. Dele guardo o enorme conhecimento e amor pela sétima arte (e pela literatura), tal como o activismo pela liberdade que Abril nos trouxe há quase 50 anos... Mas guardo fundamentalmente o respeito que o artista deve ter pelo público da sua arte. Lembro-me bem de estar sentado a seu lado a visualizarmos um filme de sua autoria e, ao falarmos do escasso mercado cinematográfico português, dizer-me: “Sabes Luis, eu, em primeiro lugar, tenho sempre respeito pelo público”. Até qualquer dia caríssimo A-PV...

Os meus mais sentidos pêsames à sua família e seres queridos.

Recibo la noticia del fallecimiento de António-Pedro Vasconcelos con bastante tristeza. La cultura portuguesa pierde a un hombre sumamente interesante con quien tuve el honor de aprender y compartir algunos momentos, gracias a nuestra “Mais Alentejo”. De él guardo un vasto conocimiento y amor por el séptimo arte (y por la literatura), así como el activismo por la libertad que nos trajo Abril hace ya casi 50 años... Pero, sobre todo, guardo el respeto que el artista debe tener por el público de su arte. Recuerdo claramente estar sentado a su lado viendo una película de su autoría y, al hablar sobre el escaso mercado cinematográfico portugués, decirme: “Sabes, Luis, en primer lugar, siempre tengo respeto por el público”. Hasta otro día estimado A-P V…

Mis más sinceras condolencias a su familia y seres queridos.

António-Pedro Vasconcelos e Luis Leal (Badajoz, 2017)


Gramática eleitoral: uma observação sobre o modo imperativo no arco da governação português. Gramática electoral: una observación sobre el modo imperativo en el arco de gobernación portugués.

09/III/2024: Portugal vai a votos no domingo e olho para o espectro político através da língua portuguesa concluindo que a qualidade da democracia reside na pluralidade de siglas, acrónimos e algum substantivo aliado a um adjetivo para designar alguma coligação ou iniciativa ideológica. Contudo, quando o modo imperativo chega ao espaço democrático tem exatamente o mesmo uso que na língua do dia-a-dia, isto é, oferecer poucas sugestões (geralmente simplistas) e sim focar-se a dar instruções e ordens. É curioso, como no trabalho e noutros ambientes, não se costuma gostar de mandões e dessa gente cuja vontade impera porque sim e sem direito ao contraditório. O modo imperativo tem esse uso tanto no funcionamento da língua como no regime político que preconiza ou instaura, é pouco plural e não admite complexidade como, por exemplo, o modo conjuntivo ou até mesmo o infinito que, quando é pessoal, assume uma certa empatia pelo outro. Mas isto são coisas de análise gramatical e de outros tipos de análise que se tem desprestigiado ao longo dos anos. Às vezes basta saber um pouco de gramática para antever programas políticos e o que daí pode advir... 

09/III/2024: Portugal va a votar el domingo y observo el espectro político a través de la lengua portuguesa, llegando a la conclusión de que la calidad de la democracia reside en la pluralidad de siglas, acrónimos y algún sustantivo acompañado de un adjetivo para designar coaliciones o iniciativas ideológicas. Cuando el modo imperativo llega al ámbito democrático, tiene exactamente el mismo uso que en el lenguaje cotidiano, es decir, ofrece pocas sugerencias (generalmente simplistas) y se centra en dar instrucciones y órdenes. Es curioso cómo, en el trabajo y otros ámbitos, no se suele gustar de la actitud mandona y de aquellos cuya voluntad prevalece porque sí y sin derecho al contradictorio. El modo imperativo tiene ese uso tanto en el funcionamiento del idioma como en el régimen político que preconiza o instaura; es poco plural y no admite complejidades como, por ejemplo, el modo subjuntivo o incluso el infinitivo, que, cuando es personal, muestra cierta empatía hacia el otro. Pero estas son cuestiones de análisis gramatical y de otros tipos de análisis que se han desprestigiado a lo largo de los años. A veces, simplemente conocer gramática permite antever programas políticos y lo que puede advenir de ellos...