quarta-feira, agosto 31, 2016

O meu pai movia-se entre nós - e.e. cummings

O meu pai movia-se entre nós,
cantando cada nova folha saída de cada árvore
(e cada criança tinha a certeza de que a Primavera
dançava quando ouvia o meu pai a cantar).

segunda-feira, agosto 29, 2016

"El Quijote" marchito, igual que un clavel de abril...

Presumível

("make my day")
há um motivo
sorriso
um aviso
uma acção
do passado
talvez o culpado
desta condição.

acusa-se com provas
factos justificados
perante o grande júri.
advogam-se as causas
à luz que deve iluminar
a processo
dentro da lei
dos homens a legislarem a natureza
a evitarem cumplicidades
associações desconsideradas 
até se provar o contrário
criminosas
pelo seu embaraço.

de pé o réu
não admite
em confessa
ser
presumível
autor.

presumivelmente poeta. 
é tudo uma questão passional.
que o julgue o tempo
quando este deixar de ser arguido
da sua própria existência.

A piscina na estrada...


Ensinei o meu filho mais velho a nadar. Posso afirmar, a partir de hoje, ser tudo uma questão de prática. Foi numa piscina aberta ao público, à qual temos ido refrescar estes últimos dias de Agosto. 
Aprender a nadar é aprender a sobreviver num meio para o qual não estamos particularmente concebidos. Espero que nunca tenha de nadar para sobreviver, no entanto, como se faz na Holanda, toda a gente devia pelo menos saber boiar, manter-se à tona dentro (e fora, já agora) de água. 
Em casa, junto com o pequenito, ambos na banheira, lavei-lhes a pele e o cabelo ainda com jeitos de cloro, sequei-lhes a pele atópica e apliquei-lhes o creme do dia-a-dia. Ainda usei o secador nos caracóis do mais novo pois anda um bocado ranhoso. Enquanto fazia estas tarefas, às quais já estou tão mecanicamente habituado, percorri "The Road" do Cormac McCarthy. 
Não dou por garantido cada gota de água com que os lavo, cada noz de champô, cada dose de gel duche, o sabor do dentífrico, a electricidade do secador de cabelo. Não dou por garantido aqui estar sempre para os cuidar no seu crescimento.
Todos os que têm filhos deveriam ser capazes de entender a personagem do pai neste livro de sobrevivência física e moral num mundo com todos os recursos esgotados. Darwin tem quase toda a razão, sobrevivem os mais fortes, mas também sobrevivem os que colaboram. Neste caso, um pai e um filho numa estrada em direcção ao litoral sul.
Estamos no final do Verão mas não sabemos quantos Invernos aguentaremos. Sobreviveremos? Ninguém está preparado. Será que o fogo viverá dentro deles? A semente foi plantada com fé de o clima possibilitar que algo germine nesta era de estupidez.

sexta-feira, agosto 26, 2016

Não te basta já a dor de cabeça de seres de carne e osso?

Escrevo para me descrever, para não me esquecer, isso pensava. Tenho esse hábito, hoje já rotina, de grafar o que sou à solta. Na escrita, silencio o que tem um referente fonético por convenção e hábito, hoje já rotina, que nos torna sociais. 
Escrevo porque o aprendi. Não esqueço descender de quem lho foi impedido, por isso treino-o como pratico uma forma, um golpe rotineiro. No entanto, quanto mais me escrevo mais tenho a certeza da necessidade de saber ler-me. Isso creio que nunca o aprenderei com rigor, nem de cor. 
Numa gritaria nunca sou capaz de isolar uma voz. No trabalho, sem prazer, unicamente necessidade, uso a técnica da sanção colectiva, infelizmente com os pecadores pagam sempre os justos.
Fora desse âmbito, vozes destas são para as evitar. Não te basta já a dor de cabeça de seres de carne e osso?

terça-feira, agosto 23, 2016

Portagem, 23/VIII/2016

Sempre que vou à Portagem passo por Portalegre. Havia coisas a tratar e parámos nos locais indicados para os afazeres. Só depois fomos em direção a Castelo de Vide para matar saudades da paisagem. Ainda em Portalegre, bem no centro tristemente envelhecido, tomei um café que me ofereceu o terceiro volume do Dom Quixote.

O "bookcrossing" é das iniciativas mais bonitas, depois das bibliotecas públicas e escolares, para o fomento da leitura e, quiçá, de um espírito mais iluminado. Tenho "El Quijote" original, edição humilde mas bem completa, porém nunca terminei a sua leitura apesar de ter lido várias adaptações e versões livres. Acredito que muitos dos intelectuais das praças públicas internacionais tão-pouco o leram mas o seu estatuto seria outro se o reconhecessem. Seriam honestos com a inteligência do próximo, mas fundamentalmente seriam honestos consigo próprios. Mentimos tantas vezes a nós mesmos que tornamos a mentira a verdade do que somos. 

Depois de Castelo de Vide, depois da bela e estreita estrada com árvores de tronco vestido de branco, chegámos à Portagem. Refrescámo-nos na companhia de bons amigos (para variar abusaram no preço do almoço graças ao nosso ar e companhia de estrangeiros) e fomos o que há anos somos. O Luis, o José, a Pepi, iguais aos anos que passam, fiéis ao afecto, com filhos e com a cumplicidade da Elsa, da Camino e do Rafa. Faltavam o José Manuel e a Maite fisicamente. 

À volta, depois de uns mergulhos anti-inflamatórios e de umas conversas à beira do Sever, conduzi feliz em direção a casa. 

Gosto de estar assim, acompanhado, rodeado por gente que não se julga, que apenas é o que é. Consola-me saber isso e ser eu, sem máscara, sem filtro social que não seja o da estima e da amizade. O que é que seria do Dom Quixote sem o seu fiel escudeiro (amigo que era o que era) Sancho Pança? Seria apenas mais um cavaleiro de triste figura. Ao homem incapaz de ser amigo por assim o dever ser, acontece exactamente o mesmo. É um triste homem...

segunda-feira, agosto 22, 2016

Estivemos todo o dia em casa. O agosto remata o final dos seus dias com um calor que só à sombra permite a existência, ou à noite, porque também é amigo da insónia.
Não é fácil entreter duas crianças, uma delas um bebé de um ano, nestas circunstâncias. Há que ter paciência. Têm de aprender a abrigar-se do frio como também do sol que nos marca com raios UV.
Onde vivemos, o frio é passageiro e quase sempre provoca-me saudades. O sul, esse que no mapa também se marca com cores quentes.
O vento é emulado por uma coluna de ar artificial, uma ventoinha que trabalha noite e dia dois a três meses por ano. O seu ruído é mecânico, tão diferente da sínfonia do vento que anunciará em breve o outono.
Não páro de pensar. Não sou capaz de adormecer sem antes fazer ou conjugar algum verbo da segunda conjugação, regular ou irregular, só para rimar. Ler, escrever, por exemplo, para não entrar em mais detalhes.
Hoje li pouco. Uns artigos sobre o Bordalo Pinheiro do Zé Povinho, um documento sobre a guerra civil espanhola e uma entradas num diário alheio. Mas o que levo para a cama é um pensamento preocupante de como os extremismos, neste caso particular o ISIS, recrutam fiéis logo na primeira infância a troco de umas guloseimas, de umas promessas divinas, ofensivas para qualquer deus decente, de serem "as crias" do profeta. É tão fácil doutrinar para que explodam em nome da cobardia humana...
Fecho os olhos em oração a um qualquer deus decente e rogo-lhe que interceda por estas crianças. Tenho fé não sei bem no quê, se em deus ou num resto de decência humana.

As Pontes (Acetre)




Sobre o disco de Acetre a que pertence "As pontes", Arquitecturas rayanas, podemos ler o seguinte na página musicaflok.es :

"As Pontes fue el primer single que el grupo extremeño Acetre lanzó, como adelanto a su álbum Arquitecturas Rayanas. También fue el primer videoclip que realizaron, con impecable resultado, como podéis ver tras el salto. Rodado en Badajoz, el tema habla de los puentes físicos tendidos a ambos lados del Guadiana a su paso por la ciudad."


AS PONTES

Blanca es la paloma
Que aquí se posó
Bella como el alba
Cuando sale el sol

Ó minha pombinha branca
Vem depressa ao meu quintal
Salpicadinha d’amores
Pra ver meu amor chegar

Claveles en mayo
Rosas en abril
Mi amante se peina
Junto al toronjil

Ausente de ti, meu bem
Sempre estou a suspirar;
Esta paixão do meu peito
Já não a posso olvidar

Pequeña es la dama,
Pequeña y hermosa
Y reparte amores
Como hojas de rosa

A rosa depois de seca
Foi-se queixar ao jardim,
O jardinheiro lhe disse
Tudo no mundo tem fim

Abanicos verdes
Lleva la pastora
y guarda el ganado
mientras me enamora

Pastora, boca de cravo
Cintura de capitão
Cadeado do meu peito
Chave do meu coração

Cuando en ti pienso
Renace mi amor,
Donde prendió el fuego
Ceniza quedó

Ó minha pombinha branca
Vem depressa ao meu jardim
salpicadinha de flores
Pra ver meu amor partir

Quando os meus olhos te viram
Meu coração se alegrou
Na cadeia dos teus braços
Minha alma presa ficou.





sexta-feira, agosto 19, 2016

Recordando a Lorca...

Hace dos días, se cumplieron 80 años desde que nos dejó a manos del odio ideológico...

Sísifo de rede ovelheira

O trabalho do campo é duro e qualquer pessoa que tenha noção de várias vidas laborais além das que no seu dia-a-dia exerce deve concordar comigo. 
A minha manhã começou bem cedo, ver o sol nascer é sempre uma maravilha, e esperava-me uns metros de cerca ovelheira, arame farpado dissuasório de focinhos intrometidos e bastantes estacas ressequidas no meio do matagal rasteiro do Agosto alentejano. 
Munido de alicate de corte (estúpido deixei o universal em casa que tanta falta me fez), chave de fenda, martelo de orelhas (as quais não resistiram nem a um dia de labuta) e algumas coisas, tipo cordéis e elásticos, para desenrascar, meti mãos à obra. 
Pouco a pouco, fui entrando na rotina de arrancar grampos, cortar arame, enrolar as velhas cercas e reciclar o arame farpado. A tarefa exigia movimento constante numa solidão que nem minimizei com o rádio ou música do telemóvel, uma vez que até tinha posto os auriculares no bolso da camisa. Dei por mim a pensar em coisas estúpidas, incertezas, medos de que o outro, o que está fora da minha cerca, me invadisse com más intenções. Receios que o que tenho recolhido, criado aqui dentro, sem essa barreira fugisse para longe de mim. 
Estava desconfortável, não com o trabalho duro, com as mãos e antebraços picados e arranhados, sim com a solidão dos meus pensamentos. 
Mas, por mais "new age", "couching" ou sabedoria proverbial de livro de auto-ajuda pareça, os pensamentos são as flores do nosso jardim. A nossa tarefa de jardineiros é escolher o tipo de flora que por lá queremos ver a propagar-se. A fotossíntese com a cara ao sol e os sentidos cientes dos elementos, ajuda-me a minimizar o que hoje por lá plantei. 
A rodar pelo terreno acima, lembrei-me do mito de Sísifo e de quando o conheci e entendi o que talvez significasse. Não quero ser arrogante e dizer que o entendo, quando o que sinto é compaixão. Hoje rebolei rede ovelheira, outros dias carrego sacos de compras, móveis, livros, utilidades e inutilidades, etecetera, longe da condição de titã, lá me vou aguentado, duvidando, sendo cada vez mais pragmático num corpo onde sinto marcas de tempo e se veste com roupas totalmente cobertas de pó.
Num ritmo cada vez mais parecido ao do meu avô e do meu pai, trabalhei com as ferramentas quase adequadas, olhei-me no horizonte passado e reconheci mais lentidão, mas com mais segurança e eficácia nos passos. Dorido, ao fim do dia, repenso que todos os trabalhos exigem inteligência, brio e destreza. No meu caso, um cinto de ferramentas ter-me-ia poupado as costas e feito ganhar minutos na execução das tarefas. Tenho sorte. O Sísifo tem sorte. Por mais pensamentos infestantes que tenhamos, amanhã podemos recomeçar.

quarta-feira, agosto 17, 2016

Victor "Young" Perez

O sol da tua infância tunisina
nunca deixou o teu coração ser francês.
Os teus punhos foram nacionalizados
mas tu nunca foste um protectorado de Vichy.
Obrigaram-te a levar a estrela
a ti a verdadeira estrela
o mais jovem campeão
do mundo
e de David.
O quadrilátero era de arame farpado
e o árbitro mais que comprado.
Com fome e sem sentires o jogo das tuas pernas
voaste pelo fumo das chaminés do crematório
a escorreres sangue de campeão,
verdadeiro, sem raça,
sem pureza que só existe
em farsas
e ideologias
que para a história
não foram mais que sofrimento
derramado em hemorragia.
A tua guarda debilitada
pela guarda de um campo de concentração
não te desconcentrou
nem pôde a humilhação
desleal doutra categoria de peso
fazer frente ao peso da alma.
Há quem afirme que o peso da alma são 21 gramas,
se assim é foram as tuas gramas
que se imposeram à tonelagem de crueldade
e fizeram do teu voo
um combate para a eternidade.
O sol em Janeiro na Polónia não se vê. Foi difícil marchar de pés sangrentos
para voltar à beira-mar do mediterrâneo.
Oportunista, como bom pugilista, encontraste um aberta na guarda da morte
e esquivaste o esquecimento.
Bastava-te um momento
mas uma bala fez-te ir ao tapete
antes de tempo.

Rua da Cal Branca

Como qualquer superfície de mármore, era preciso ter cuidado para não se escorregar. Mas sempre os sentidos se alegravam por ali passarem.
Optava por lavar todas as escadas de joelhos. Do rés-do-chão ao segundo andar, a senhora da limpeza, de quem nunca soube o nome, era tal qual a sua mãe que anos antes lavara a mesma escadaria na mesma incomodidade de genuflexão mas deixando como herança o brio e o hábito do esfregão e do sabão azul.
Hoje escorreguei na brancura do mármore desta lembrança da Rua da Cal Branca. Escorregámos. Nunca subi essa escada sozinho porque lá em cima alguém me esperava sem necessidade de avisar.
A senhora já me conhecia, o plátano lá fora também. Fazia questão de me receber com o acto cerimonioso de interromper o seu labor para que passasse e não escorregasse na humildade da sua existência. Creio que assim o pensava.
Eu não. A gratidão que tenho pelo seu gesto é presente como tento pisar com cuidado e reconhecimento o trabalho prévio dos outros. O sorriso é o do jovem apaixonado já então lhe reconhecia o mesmo azul dos olhos e longo cabelo da sua princesa.
Hoje as escadas da Rua da Cal Branca voltaram a ser subidas a vários anos e quilómetros de distância. Lá estava a senhora de joelhos a lavar com sabão azul o mármore dos nossos passos.
Cumprimentámo-la e fomos cumprimentados como se ontem por lá tivéssemos passado. Ela olhou-nos e soube que a sua dignidade ia ali connosco. A da sua mãe também. No nosso caminhar há a brancura do seu esforço, agora o nosso esforço.

Escrever tem-se convertido na necessidade de libertar o que penso ao mesmo tempo que tenho assumido que isso de pouco vale.

"Dormir es la mejor manera de meditar" - Dalai Lama

terça-feira, agosto 16, 2016

Pode uma palavra inspirada salvar a humanidade? Pode. Salvar um ser humano é amparar o colectivo, mesmo que não não nos apercebamos ou reconheçamos isso.

Aos que cá estão e aos que não

Em criança, se queria chorar, bastava-me pensar na morte dos meus avós. Não era que o pensamento do fim dos meus progenitores não me afetasse, sempre me deram a ilusória segurança que ali estariam, essa ideia de perenidade desactivava o melodrama. Também era criança e era bem enganado, algo que a cronologia da idade dos meus avós não me permitia estar tão seguro da igual condição mais jovem dos meus pais.
Mas o peso da ideia de fim não abandonou essa criança. No quarto ao lado dormem outras duas às quais sou incapaz de prometer céus e outros mundos. Não lhe mostro que também eu tenho as mesmas dúvidas e medos multiplicados pelo anos que vou vivendo e pelas filosofias que vou descartando.
Ganhar só existe porque se contrapõe ao perder, sabemo-lo demasiado bem. Ganhei mais um dia, mais uma entrada neste diário sem leitores, a memória dos meus avós não me faz chorar, todo o contrário, lembra-me de cuidar, estar lá, para os que de mim dependem. Ser ainda esse menino, assumir o seu medo, é a maior prova de amor que lhes posso dar. Aos que cá estão e aos que não.

quinta-feira, agosto 11, 2016

"Não insulte jamais um crocodilo antes de ter atravessado o rio" - Provérbio Africano

Árvore da infância

A casa da nossa infância constrói-se com restos de memória, ergue-se com o concreto disponível à nossa imaginação e, desde o alto, melhor do que vislumbrar futuros é descer à terra e brincar com o que se tem à mão.

La casa de nuestra infancia se construye con restos de memoria, se levanta con el concreto disponible a nuestra imaginación y, desde lo alto, mejor que vislumbrar futuros es bajar a la tierra y jugar con lo que se tiene a mano. 

quarta-feira, agosto 10, 2016

Cantares que fazem pontes - Luis Leal (in revista "Mais Alentejo" nº134)


Cantares que fazem pontes – Luis Leal (Revista "Mais Alentejo" nº134)

Se em Portugal se cita constantemente Fernando Pessoa, Camões ou, como parece que é típico dos discursos de investidura dos Presidentes da República, Miguel Torga, em Espanha, Antonio Machado vê frequentemente os seus versos por conta de outrem. Os mais usados, em todo o tipo de situações, desde as protocolares às mais mundanas, talvez sejam estes que aqui traduzo de forma recordá-los ao meu estimado leitor: “Tudo passa e tudo permanece,/mas para nós é passar,/passar a fazer caminho,/ caminho sobre o mar. (…) Caminhante, são tuas pegadas/ o caminho e nada mais;/ Caminhante, não há caminho,/ faz-se o caminho a andar.”

Anos mais tarde, Joan Manuel Serrat musicou-os e gravou uma canção que considero das mais bonitas da música popular espanhola. Este grande músico, catalão por nascimento, cuja pena é tão doce quanto a voz, é um símbolo desta ibéria submersa numa diversidade que não se esgota em questões de nacionalidade no espaço peninsular. Sabemos que estão na ordem do dia e, para os olhares atentos, é fácil identificar a primazia da economia e da política por cima duma maioria orgulhosa da sua cultura e nação, sem pretensão a mais fragmentação do que aquela já existente.

A região que me adoptou é um claro exemplo disso. “Castúa” e castiça, a Extremadura orgulha-se de ser um território caracterizado por possuir as melhores pontes do mundo ocidental, com destaque para a jóia romana de Alcântara e a renascentista de Almaraz, ambas erguidas sobre o rio Tejo. Mais a sul, o Guadiana tem também a sorte de partilhar, em ambas as margens, os destroços visíveis de uma ponte-fortaleza, a última do seu género na Europa, cuja grande abóbada central se antecipou, quase um século, à mundialmente famosa de Rialto, na elegante Veneza. Há mais de três séculos, em 1709, o marquês de Bay destruiu esta ponte, elevando-a assim à categoria de ruína. Até que ponto a vida não é isso, necessidade de construir pontes ou derrubá-las em escombros para manter a integridade do nosso espaço vital?

Roberto Juarroz acreditava que “pensar em alguém é parecido a salvá-lo”. Vejo esta crença como uma espécie de salva-vidas de lembrança que nos permite resgatar ou fazer pontes com os outros. 

Na margem espanhola da Ponte Ajuda encontramos Olivença, neta de Portugal e filha de Espanha, e o melhor exemplo do que é ser-se português do outro lado da fronteira, apenas há que parar e prestar atenção.

E foi o que fiz. Há quase uma década, parei, olhei e ouvi. Em Olivença descobri um dos melhores projectos de “folk music” que conheço, os Acetre. Com 40 anos de actividade, impuseram-se como o grande referente “extremeño” de “world music” à qual a sua condição fronteiriça foi fundamental.

Quis o acaso que viver entre duas terras se convertesse em ajuda, em ponte, entre este grupo musical oliventino e as minhas raízes de cante aprendido daqueles que mo ensinaram. Quis também o acaso que não pudesse assistir ao vivo, nem em Badajoz, nem em Cáceres, aos Acetre a cantarem com o Mestre Joaquim Soares e o Grupo de Cantares de Évora.

Ao contrário do silêncio desta tarde quente de modorra em que escrevo, dessas em que ninguém pode acusar a sesta de costume de preguiça, destes cantares sinto uma ressonância afinada, uma arquitectura raiana de sons a edificarem-se numa ponte comum a dois povos. Ao ouvir esta melodia, um pouco como o poeta argentino, por momentos, acredito nessa salvação maior do que qualquer pensamento.

Leiria. Vida comercial. Shopping Center.

Já por lá andava há algum tempo, a meteorologia lá fora tinha mais influência desértica que atlântica, quando me deu vontade de ir à casa de banho. Muitos dos que por lá andavam faziam o mesmo que eu, fugir à hora do calor, mas a maioria sentia como o fim-de-semana se consumia neste templo de consumo. Vive-se assim, eu não sou excepção, nem tenho moral para divagar sobre o que cada um pode (ou deve) relacionar-se com o comércio e as suas necessidades materiais. 

Mas de caminho para um chichi (ou será "xixi" com x?) deparo-me com com senhor, talvez com uns 45 anos, de bermudas e chinelo no dedo, como convida a época estival, com uma espécie de um "certo" grande tatuado na coxa direita à descoberta do calção. Estou tão habituado a corrigir exercícios, a pôr "certos" com prazer, que sei que essa não é uma marca de reforço pedagógico ou reconhecimento de bom trabalho. É uma marca, sem dúvida, cuja única nascença foi ter sido registada e patenteada numa conservatória dos EUA. 
Tem por detrás a protecção da mitologia da deusa grega da vitória que, no século XX, se revisitou para umas sapatilhas desportivas e a partir de então foi um sem parar de facturar. Apenas o fez. Gosto de tatuagens, tenho algumas que são as minhas marcas registadas de símbolos pessoais, bem lamechas, como só na minha pele podem ser, mas pergunto-me o que é que terá levado este gajo, companheiro de urina no mesmo shopping do que eu, a tatuar a mais valiosa marca desportiva do mundo na sua pele. Não acredito que tenham sido milhões de dólares, mas imagino milhões de motivos, confesso que nenhum me faz pensar na deusa da vitória, mas muitos fazem-me rir de desconcerto, tipo aquelas imagens de humor em que um crocodilo se veste com pólos da Lacoste, não necessitamos muita imaginação.
"Nos dias de hoje,  quando todos sentimos a obrigação, sob pena de nos vermos condenados in absentia pelo delito de lesa-respeitabilidade, de laborar em alguma atividade lucrativa com um zelo próximo do entusiasmo, qualquer clamor da fação oposta, dos que se contentam com o suficiente e preferem ficar à parte a observar, terá sempre o seu quê de fanfarronice." Robert Louis Stevenson

Foz do Arelho

Estou cansado mas tenho tanto para aprender que não consigo deixar de querer absorver tudo o que vejo. Os meus filhos fascinam-me, a sua mãe deslumbra-me, e a minha gratidão por os ter em mim é infinita. No entanto, não posso deixar de tentar assimilar outras experiências a somar a este dia-a-dia familiar. Sei que não sou só pai, marido e trabalhador. 
Os poetas falam do absoluto, os místicos do transcendente, os cépticos não sabem do quê... Já eu, neste presente, sei-o bem. Movimento. Acção e contemplação. Desfrutar do movimento e contemplá-lo como uma baliza cronológica... e escrevê-lo aqui, por outra tendência que tenho... esquecer-me.  

Leiria, 6/VIII/2016

Vir a Leiria é sempre assumir a presença desta cidade na minha vida. Vir a Leiria é ser assertivo, não querer julgar o outro e estar decidido a não perder mais tempo. 
Os anos fizeram que esta cidade também fosse da minha família, aquela que vive longe mas que me esforço por visitar. Estou junto ao Lis, sozinho e tranquilo de incertezas. Na mão trago "O Mar de Madrid" porque sei que o mar em mim só se concebe por mero acaso, tal como o poeta que acho que sou, porque assumo as cidades às quais me impingi, como um bom atrevido sem medo de assumir-se.

terça-feira, agosto 02, 2016

Praticar. O verbo consciente.

Praticar. O verbo consciente. Faz-me crer ser forte através da identificação das minhas fraquezas com a franqueza da experiência. 

O verbo consciente, ao qual tenho devoção dada a minha irregularidade no que concerne às musas ou aos mecenas. 
Praticar. Como nas artes marciais com que forjei a lealdade ao punho primeiro que à letra. A ilusória segurança da repetição, do automatismo, do aumento da probabilidade de safar-me, adaptar-me, ao absurdo estatístico chamado mortalidade.

Portado de Verão

O portado é a parte mais importante de uma casa no Alentejo. Depois, imediatamente, vem a fachada caiada a branco e com um rodapé creme ou azul.
É o portado porque, além de apoiar o pé nas boas-vindas caseiras, apoia o traseiro num contemplar de fim de tarde veraneio em que todo o dia nos pediu sombra e fresco.
Se o serão se assume simpático, vai-se lá dentro buscar uma cadeira de praia e fica-se na conversa com as vizinhas da rua. Vêem-se as crianças a brincar aos jogos sem fronteiras, fala-se sobre a última contratação do Benfica, do gazpacho do almoço e dos restos que se aproveitam para a refeição ou dia seguinte.
O Alentejo é o portado de Portugal. Há portados por outras regiões e países fora que, tal como no Alentejo, se estão a perder.
Os portados estão em vias de extinção, morrem de velhos e não se renovam. Fecham-se em casa. O convite ao diálogo, à circunstância passageira ou à autorização de entrar-se no lar de cada um, evoluiu para uma timidez física extrovertida no meio digital. As redes sociais de conversa de cadeira de praia ao serão Alentejano são cada vez mais escassas mas um autêntico prazer quando as encontras.
Ontem lembrei-me como gostava de apanhar fresco na rua, no pátio, nessas esplanadas de vontade de ar menos abafado do que em casa, ao ver os meus filhos brincarem em Vale do Pereiro, na aldeia da minha família.
Ainda se ouvia a música do último dia da festa e comia-se com a porta aberta aos que na rua passavam. Os miúdos tomavam banho no tanque e brincavam a varrer a casa.
Sentei-me no portado a falar com o Jorge. As cadeiras sairam à rua e começaram a falar umas com as outras.
Em amena cavaqueira, tive de as abandonar, sentar-me ao volante dum carro que retirou os meus filhos da brincadeira de rua e voltar para o lado de dentro do portado, onde me escondo. Aqui onde vivo, já não sou o mesmo menino do bairro. Para ser fiel aos meus, tenho de me esconder ou passar a ser o portado.