sexta-feira, agosto 19, 2016

Sísifo de rede ovelheira

O trabalho do campo é duro e qualquer pessoa que tenha noção de várias vidas laborais além das que no seu dia-a-dia exerce deve concordar comigo. 
A minha manhã começou bem cedo, ver o sol nascer é sempre uma maravilha, e esperava-me uns metros de cerca ovelheira, arame farpado dissuasório de focinhos intrometidos e bastantes estacas ressequidas no meio do matagal rasteiro do Agosto alentejano. 
Munido de alicate de corte (estúpido deixei o universal em casa que tanta falta me fez), chave de fenda, martelo de orelhas (as quais não resistiram nem a um dia de labuta) e algumas coisas, tipo cordéis e elásticos, para desenrascar, meti mãos à obra. 
Pouco a pouco, fui entrando na rotina de arrancar grampos, cortar arame, enrolar as velhas cercas e reciclar o arame farpado. A tarefa exigia movimento constante numa solidão que nem minimizei com o rádio ou música do telemóvel, uma vez que até tinha posto os auriculares no bolso da camisa. Dei por mim a pensar em coisas estúpidas, incertezas, medos de que o outro, o que está fora da minha cerca, me invadisse com más intenções. Receios que o que tenho recolhido, criado aqui dentro, sem essa barreira fugisse para longe de mim. 
Estava desconfortável, não com o trabalho duro, com as mãos e antebraços picados e arranhados, sim com a solidão dos meus pensamentos. 
Mas, por mais "new age", "couching" ou sabedoria proverbial de livro de auto-ajuda pareça, os pensamentos são as flores do nosso jardim. A nossa tarefa de jardineiros é escolher o tipo de flora que por lá queremos ver a propagar-se. A fotossíntese com a cara ao sol e os sentidos cientes dos elementos, ajuda-me a minimizar o que hoje por lá plantei. 
A rodar pelo terreno acima, lembrei-me do mito de Sísifo e de quando o conheci e entendi o que talvez significasse. Não quero ser arrogante e dizer que o entendo, quando o que sinto é compaixão. Hoje rebolei rede ovelheira, outros dias carrego sacos de compras, móveis, livros, utilidades e inutilidades, etecetera, longe da condição de titã, lá me vou aguentado, duvidando, sendo cada vez mais pragmático num corpo onde sinto marcas de tempo e se veste com roupas totalmente cobertas de pó.
Num ritmo cada vez mais parecido ao do meu avô e do meu pai, trabalhei com as ferramentas quase adequadas, olhei-me no horizonte passado e reconheci mais lentidão, mas com mais segurança e eficácia nos passos. Dorido, ao fim do dia, repenso que todos os trabalhos exigem inteligência, brio e destreza. No meu caso, um cinto de ferramentas ter-me-ia poupado as costas e feito ganhar minutos na execução das tarefas. Tenho sorte. O Sísifo tem sorte. Por mais pensamentos infestantes que tenhamos, amanhã podemos recomeçar.

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