quinta-feira, dezembro 31, 2015

"Oração" - Héroes Del Silencio

Termino 2015 com uma oração dos “Héroes del Silencio” que sente estes 365 dias que me envelheceram mas também me responsabilizam, porque os anos que passam têm de trazer algo mais que dores nas articulações...

Oração – Héroes del Silencio

Perco tempo a pensar no essencial
que às vezes deixo passar.
Quantas vezes ignorei já
capazes de me terem mudado!

E não há oração
capaz de decidir por mim.
Ó, senhor!, não resta outra opção
e jamais me voltarei a arrepender.

Sempre há uma disjuntiva
ante a qual sempre há que eleger,
não resta outra alternativa
rapidamente há que decidir.

E não há oração
capaz de decidir por mim.
Ó, senhor!, não resta outra opção
e jamais me voltarei a arrepender.

[Trad. Luis Leal]

quarta-feira, dezembro 30, 2015

Morte ao meio-dia (Ruy Belo)





MORTE AO MEIO-DIA

No meus país não acontece nada
à terra vai-se pela estrada em frente
Novembro é quanta cor o sol consente
às casas com que o frio abre a praça

Dezembro vibra vidros brande as folhas
a brisa sopra e corre e varre o adro menos mal
que o mais zeloso varredor municipal
Mas que fazer de toda esta cor azul

que cobre os campos neste meu país do sul?
A gente é previdente tem saúde e assistência cala-se e mais nada
A boca é pra comer e pra trazer fechada
o único caminho é direito ao sol

No meus país não acontece nada
o corpo curva ao peso de uma alma que não sente
Todos temos janela para o mar voltada
o fisco vela e a palavra era para toda a gente

E juntam-se na casa portuguesa
a saudade e o transístor sob o céu azul
A indústria prospera e fazem-se ao abrigo
da velha lei mental pastilhas de mentol

O português paga calado cada prestação
Para banhos de sol nem casa se precisa
E cai-nos sobre os ombros quer a arma quer a sisa
e o colégio do ódio é a patriótica organização

Morre-se a ocidente como o sol à tarde
Cai a sirene sob o sol a pino
Da inspecção do rosto o próprio olhar nos arde
Nesta orla costeira qual de nós foi um dia menino?

Há neste mundo seres para quem
a vida não contém contentamento
E a nação faz um apelo à mãe
atenta a gravidade do momento

O meu país é o que o mar não quer
é o pescador cuspido à praia à luz do dia
pois a areia cresceu e o povo em vão requer
curvado o que de fronte erguida já lhe pertencia

A minha terra é uma grande estrada
que põe a pedra entre o homem e a mulher
O homem vende a vida e verga sob a enxada
O meu país é o que o mar não quer.

Ruy Belo


Boca Bilingue (1966)





terça-feira, dezembro 29, 2015

Portraits of Daily Life (Mr. Pizza)

Momento (Jorge Barbosa)





MOMENTO

Quem aqui não sentiu
esta nossa
fininha melancolia?

Não a do tédio
desesperante e doentia,
Não a nostálgica
nem a cismadora.

Esta nossa
fininha melancolia
que vem não sei de onde.
Um pouco talvez
das horas solitárias
passando sobre a ilha
ou da música
do mar defronte
entoando
uma canção rumorosa
musicada com os ecos do mundo.

Quem aqui não sentiu
esta nossa
fininha melancolia?
a que suspende inesperadamente
um riso começado
e deixa um travor de repente
no meio da nossa alegria
dentro do nosso coração,
a que traz à nossa conversa
qualquer palavra triste sem motivo?

Melancolia que não existe quase
porque é um instante apenas
um momento qualquer.

Jorge Barbosa 



Jorge Barbosa (Praia/Cabo Verde, 1902 - Cova da Piedade/Almada, 1971) foi um escritor cabo–verdiano.


Mais poemas e dados sobre o autor em Lusofonia.







segunda-feira, dezembro 28, 2015

Envidia 4

"Castiga a los que tienen envidia haciéndoles bien." Proverbio Árabe

Envidia 3

"La envidia es mil veces más terrible que el hambre, porque es hambre espiritual." Miguel de Unamuno

Envidia 2

"¡Oh envidia, raíz de infinitos males y carcoma de las virtudes!" Miguel de Cervantes

Envidia 1

"El tema de la envidia es muy español. Los españoles siempre están pensando en la envidia. Para decir que algo es bueno dicen: "Es envidiable". Jorge Luis Borges

domingo, dezembro 27, 2015

Apontamentos soltos.

Ora choro, ora canto. Diz-me Afonso Lopes Vieira cuja alma é de Deus mas o corpo, como o meu, deseja o mar.
Um indivíduo só no rebentar das ondas que lhe prendem o olhar de apontamentos soltos, liberdades toráxicas de verdades tóxicas, e, no mar, a esperança que se diluam.
Saber ser. Consciente de ter apenas uma vida, pergunto a uma árvore como é que ela é.
O vento encarrega-se de lhe tirar a palavra dos ramos.
- Então és tão cego que não vês que ela se adapta à disposição de onde venho e de como sopro?
Pus-me a seu lado e também o meu tronco se adaptou à solidão do vento que me falara.
Entendemo-nos bem.

Onde sempre seremos o mar... Um do outro (para a Elsa)

Morreu Fernando Pessoa. (Diário de Miguel Torga)

"Vila Nova, 3 de Dezembro de 1935 - Morreu Fernando Pessoa. Mal acabei de ler a notícia no jornal, fechei a porta do consultório e meti-me pelos montes a cabo. Fui chorar com os pinheiros e com as fragas a morte do nosso maior poeta de hoje, que Portugal viu passar num caixão para a eternidade sem ao menos perguntar quem era." Miguel Torga

sábado, dezembro 26, 2015

Mi ciudad... (unknown artist)

Huyo para escapar de lo que debo

Huyo para escapar de lo que debo
A la vida que no fue ni acaso importa
Que merezca la pena. Me moría.
La emoción del paisaje me la llevo
Y al hombre que me implanta y me soporta
Y al milagro de huir donde volvía.

"Huir", de Jesús Delgado Valhondo. Libro póstumo. 16 poemas breves.

quinta-feira, dezembro 24, 2015

No Natal odiava receber pijamas, cuecas e meias.

No Natal odiava receber pijamas, cuecas e meias.
Quem me dava roupa de cama e roupa interior já previa
que um dia dormiria nu por opção.
Ainda assim ensinou-me a utilidade.
O infantil materialismo, ingrato de falta de tacto que só os anos trazem, esquece extremidades frias porque dorme aconchegado
no amor de quem dá mais do que pode sem que se note.
A criança que era gelou na circulação periférica do passado.
Na ausência de pijamas, cuecas e meias,
ficou no sangue e na memória a generosidade.
Esta noite já não tenho quem me dê
pijamas,
cuecas
e meias.
Agradeço tão tarde ter tido
pijamas,
cuecas
e meias…
Cabe-me a mim oferecer pijamas, cuecas e meias.
Não passaremos frio
e o Natal continuará a ter alguma utilidade.

quarta-feira, dezembro 23, 2015

La libertad, Sancho...

Diários: Grande parte do que escrevo não dorme

Grande parte do que escrevo não dorme. Levanta-se da cama, de chinelos silenciosos, para um papel de insónia que acaba por deitar-se antes em lençóis de recordações, alguns bem amarrotados e de uma cama mal feita. Sinto falta de dormir em lençóis passados a ferro e lisos de odores de recém-feito.

Não durmo. Num berço um filho aprende a rotina nocturna. De momento, mal. Acorda, em oito meses, várias vezes por noite e eu, peito paterno, não o acalmo. Exige-se o amor de mãe em cansaço. E como é grande... O meu, esse, pura empatia ou pura inutilidade. Talvez se a necessidade a isso obrigasse, noites de pai e filho, adaptar-se-iam uma à outra, noites toscas e indiferentes ao choro mas presentes na segurança do que zela aquele que cresce.

Não durmo. Tenho dificuldade em dormir e escrevo mal para quem tem dezenas de apontamentos por concluir, por trabalhar, e que os tem aí, como este bebé, a acordar quase de hora a hora para mamar e sentir-se insatisfeito.

Não durmo. Mas escrevo. Um diário acordado. Realista de que a insónia é uma guerra perdida na almofada. Esvaem-se os pensamentos como plumas ao vento e, para quem se atreve a contemplá-los, é uma pena… Tento agarrá-los. Alguns ficam outros não. Lêem-se outros até que te acusam de iluminar a cama com o frontal da literatura nos dois dedos de testa em que se apoiam. Este pensamento está a abrir a boca. Será que escrevo para dormir? Ou não durmo para escrever?

Os defensores de que a morte é o eterno sono e derradeiro desterro, do qual não nos levantaremos para escrever, têm um argumento de peso. Até os entendo. Talvez o génio seja imune a isso. O meu génio trabalha com isenção de horário e fica rabugento, com mau génio. Vale-lhe o café, apolíneo prazer, de quem tem olheiras góticas, odeia o romantismo e sente que a cabeça pede coisas ao corpo enquanto sabe que este lhas pode dar.

Fábula (Bertolt Brecht)




FÁBULA

O lobo foi ter
com a galinha
e disse-lhe:

«Devíamos conhecer-nos
melhor para vivermos
com amor e confiança»

A galinha achou bem
e foi com o lobo.

Foi por isso que as suas
penas ficaram espalhadas
por todo o lado.

Bertolt Brecht 





segunda-feira, dezembro 21, 2015

Eres mi hermano, amigo, eres mi hermano... (foto de Adolfo Rodriguez)

Tenho 35 anos e aprendi hoje a lançar o pião

Nunca tive um pião tradicional quando era miúdo. Não sei porquê. Talvez já não estivesse na moda, fosse coisa de pobre (por isso já não se viam tantos), algo reaccionário para a pobreza dos oitenta que se vivia com a esperança trazida com a primavera de Abril. É que não sei.
Sempre brinquei muito. No bairro, em casa, no quintal, na quinta dos meus tios, na casa e no pátio dos meus avós... Jamais soube lançar um pião.
Hoje a ser pai fui criança nos exemplos dos meus filhos. Aprendi a enrolar a guita e a rodopiar, sem pensar, largado da mão...
Felizmente não é preciso ter "muita guita" para ter um objecto de madeira destes. Custou-me 0'90€ viajar à minha infância e corrigir esta lacuna que aí estava, escondida, de tão envergonhada de não saber como rodopiar...

domingo, dezembro 20, 2015

Día 19/XII/2015 Presentación en mi pueblo... Valencia de Alcántara

En tierras de Valencia de Alcántara nació, y se presentó ayer, mi [33], en un día de sol del Jiniebro, como este… Gracias a todos los presentes (en especial a la enorme familia Carnerero un ejemplo de humanismo "rayano" que tanta falta nos hace)… "Obrigado"… (fotos de mi amigo Adolfo Rodriguez Fernandez)








[33] na "Campiña" (foto de Adolfo Rodriguez)

sábado, dezembro 19, 2015

Não acredito no destino, mas sou um devoto da casualidade

33 chega em papel à "campiña" que o concebeu em Valencia de Alcántara

Sentado ao lado de uma alma irmã, com vistas para o campo "extremeño", um "33", assumidamente caducado abriu-se aos amigos que o quiseram conhecer.
Agora, sentado na comodidade dum teclado, guardo em diário este dia em que a poesia esteve a ser partilhada enquanto o futuro se nos impunha ao momento através das vozes inquietas de crianças. Obrigado amigos. Obrigado José Antonio, obrigado Jorge, David y Johnny, obrigado Jaime... Obrigado crianças por me mostrarem, nos vossos rostos felizes, a face que me mantém a acreditar em Deus...
Vou deitar-me com o peito cheio de mar. Sinto-o a querer escorrer-me pela cara feliz à procura de enrolar-se na areia silenciosa da minha almofada... Espero adormecer a agradecer esta tempestade que o boletim metereológico já estava à prever.

"Deixem-me ir à larga, tenho muito tempo para estar apertado..."

sexta-feira, dezembro 18, 2015

Uma citação de Agostinho da Silva



“Se te não decidires a resolver tudo acabarás por não resolver nada”

Agostinho da Silva (1906-1994)
 
 
 
 
(Fonte)




quinta-feira, dezembro 17, 2015

A criança que já não sou – Gabriel Celaya

Consegui o uso da razão.
Perdi o uso do mistério.
Desde então, a evidência
sempre rara, dá-me medo.

Dá-me medo quando ladra
no canil o meu cão.
Talvez me esteja a cumprimentar.
Mas não o entendo. Não entendo.

A criança que fui lembra-se.
Afunda-se em mim como um abismo.
A criança que fui chama-me
a gritar com o silêncio.

Vi-me nos meus retratos,
de marinheiro, a rir
com caracóis loiros e um ar
espevitado e impertinente.

Quem eras tu? O que sabias?
Agora só sinto sono.
Aturde-me o teu desafio
e o teu riso dá-me medo.

Já não posso, sem parti-los,
atravessar os espelhos.
O meu sistema não funciona
como antes. Desculpa.

Se funcionasse, talvez
não escreveria estes versos.
Choraria de outro modo.
Diria tudo em língua canina.

Mas acho que sou
algo mais que uma criança morta,
e como estou meio careca
faço caracóis com os meus versos.


(Trad. Luis Leal)


"Cuéntame cómo vives, cómo vas muriendo" - Gabriel Celaya



Cuéntame cómo vives;
dime sencillamente cómo pasan tus días,
tus lentísimos odios, tus pólvoras alegres
y las confusas olas que te llevan perdido
en la cambiante espuma de un blancor imprevisto.

Cuéntame cómo vives;
ven a mí, cara a cara;
dime tus mentiras (las mías son peores),
tus resentimientos (yo también los padezco),
y ese estúpido orgullo (puedo comprenderte).

Cuéntame cómo mueres;
nada tuyo es secreto:
la náusea del vacío (o el placer, es lo mismo);
la locura imprevista de algún instante vivo;
la esperanza que ahonda tercamente el vacío.

Cuéntame cómo mueres;
cómo renuncias -sabio-,
cómo -frívolo- brillas de puro fugitivo,
cómo acabas en nada
y me enseñas, es claro, a quedarme tranquilo.

Gabriel Celaya



quarta-feira, dezembro 16, 2015

Zeitgeist (Fernando Pinto do Amaral)



Zeitgeist

Os meus contemporâneos falam muito
e dizem: «Então é assim»,
com o ar desenvolto de quem se alimenta
do som da própria voz, quando começam
a explicar longamente as actuais tendências
das artes ou das letras ou das sociedades
a pouco e pouco iguais umas às outras
neste primeiro mundo em que nascemos,
agora que o segundo deixou de existir
e que o terceiro, mais guerra, menos fome,
continua abstracto, em folclore distante.

Parece que está morta a metafísica
e que a verdade adormeceu, sonâmbula,
nos corredores vazios onde, às escuras,
se vão cruzando alguns milhões de frases
dos meus contemporâneos. Todavia,
falam de tudo com o entusiasmo
de quem lança «propostas» decisivas
e percorre as «vertentes» de novos caminhos
para a humanidade, enquanto saboreiam
a cerveja sem álcool, o café
sem cafeína e sobretudo
o amor sem amor, para conservarem
o equilíbrio físico e mental.

Os meus contemporâneos dizem quase sempre
que não são moralistas, e é por isso
que forçam toda a gente, mesmo quem não quer,
a ser livre, saudável e feliz:
proíbem o tabaco e o açúcar
e se por vezes sofrem, tomam comprimidos
porque a alegria é uma questão de química
e convém tê-la a horas certas, como
o prazer vigiado por preservativos
e outros sempre obrigatórios cintos
de segurança, pra que um dia possam
sentir que morrem cheios de saúde.

Quando contemplo os meus contemporâneos
entre as conversas trendy e os lugares da moda,
«tropeço de ternura», queria ser
plo menos tão ingénuo como eles,
partilhar cada frémito dos lábios,
a labareda vã das gargalhadas
pla madrugada fora. No entanto,
assedia-me a acedia de ficar
assim, mais preguiçoso do que um Oblomov
à escala portuguesa — ó doce anestesia
a invadir-me o corpo, a libertar-me
desse feitiço a que se chama o «espírito
do tempo» em que vivemos, sob escombros
de um céu desmoronado em mil pequenos cacos
ainda luminosos, virtuais
estrelas que se apagam e acendem
à flor de todos os écrans
que os meus contemporâneos ligam e desligam
cada dia que passa, nunca se esquecendo
de carregar nas teclas necessárias
para a operação save
e assim alcançarem a eternidade.


Fernando Pinto do Amaral

leyapoemas, jl 2009


(canal de poesia)


terça-feira, dezembro 15, 2015

"Crónica, saudade da literatura" de Manuel António Pina

Já há muito tempo que um livro me terminava com ele. A última página, a última crónica, encerra a vida de um dos poetas que mais me fizeram acreditar que a poesia é dos dias e não exclusiva da literatura.

As crónicas são efémeras filhas de Cronos, dizia o Manuel António, estou de acordo, mas esta caducidade não se aplica às suas páginas partilhadas na imprensa portuguesa...

Se eu, simples leitor, sinto a sua falta, imagino o peso da sua ausência junto dos que com ele privaram ou se eram do seu círculo de afectos.

Acredito que enquanto te podermos dizer, aqui estará a tua enorme e humilde obra. Nós rodear-te-emos, aconchegar-nos-emos, como os teus gatos, para quem escrevias por amor e para dar de comer...

Ardem as perdas (in "Mais Alentejo" nº129)

Ardem as perdas

Chaque jour nous laissons une partie de nous-mêmes en chemin. AMIEL

Como é que uma criança, órfã de pai, pôde aprender a ler com um único livro existente num lar devastado por uma guerra civil? Um único livro, de poesia, o único publicado em vida pelo seu pai.
Como é que do ardor da ausência, do peso da morte, pôde nascer uma relação, tão real e profunda entre um pai e um filho, como esta que o poeta Antonio Gamoneda atribui à sua infância?

Todos temos os nossos mortos. Cabe ao tempo dar-lhe um rosto, um fim biológico, um rigor mortis e uma estatística etária, que não revela o mistério para além das pálpebras encerradas de vez. Este determinismo, associado ao passar da palma da mão numa face que se fecha ao mundo, é tão certo como a cor da dor, do luto, o negro que resulta do fogo que queima parte da madeira de que somos feitos e do mobiliário que levamos dentro.

Há 15 anos, em Maio, esse mês tão propenso a iniciar como a terminar ciclos, um jovem alentejano, preparava-se para ir a uma gráfica buscar uma edição de autor que intitulou Morreste-me. Duas manifestações de coragem num só acto: a valentia duma edição de autor e o atrevimento íntimo, elegíaco e biográfico, de encarar o incêndio que em si deflagrava.

O presente fez do jovem homem, o incêndio foi controlado, no entanto, tal como o fogo do Chiado marcou para sempre Lisboa, esta perda do José Luís Peixoto marcou indelevelmente a literatura portuguesa, tal como a vida de muitos que tocaram as suas palavras com algo mais que o olhar.

Haviam passado vários anos, quando me cruzei com esta perda. Já admirava o escritor, era como se crescera lá no bairro comigo, supunha até que entendia o que sentia só ao ler a contracapa. Engane-se quem pensa que conhece a dor do outro, mesmo depois de uma partilha na primeira pessoa.

Além de ingenuidade minha, medo. Medo de assumir os meus mortos, de aceitar o rosto que o tempo lhe deu e lhe dará.

Morreste-me golpeou-me o estômago numa tarde de pesquisa na biblioteca de Portalegre. Interceptou-me com a força escondida que têm os pequenos livros, ocultos, quase sempre, pela imponente lomba do livro do lado com quem se comparte a existência numa qualquer estante.

Naquele instante, era minha a finitude do progenitor, a infância a desmoronar-se, não num quintal onde um pai não chegara a velho, mas sim num pátio onde já ninguém brincava comigo, nem se sentavam no portado ao fresco dum verão alentejano de final de tarde. Naquelas ausências, as minhas ruínas e o temor que bloqueia o consolo e a beleza que só a memória futura parece ver e atribuir a destroços pretéritos.

Este livro dói. Apercebo-me da sua presença, mesmo que em silêncio, no meu circulo de afectos. Admiti-lo dá-me um certo orgulho vulnerável, diferente de outros orgulhos que espelham o meu ego sorridente e a assobiar sem que ninguém note.

Em Espanha, a desolação que trouxe a ausência do pai Peixoto, traduziu-se Te me moriste. Coube, cinco anos depois da 1ª edição, ao Antonio Sáez fazer o seu próprio luto paterno vertendo para espanhol a incandescência das palavras do José Luís. Esta tradução, publicada pela Editora Regional de Extremadura, infelizmente está esgotada. Cada vez é mais difícil entender o “eu” derrotado, ardido, em cinzas, e Te me moriste não vende optimismo, nem tem a eloquência duma psicologia necessitada de se adjectivar, a ela mesma, positiva.

Te me moriste é essa parte de nós mesmos que vamos deixando no caminho, essa que arde tanto, com rosto e reflexo próprio, o nosso, o meu, a passo, atrás do óbito declarado pela carrinha da agência funerária. Morreste-me é essa dor morta-viva, ao bom estilo zombie agora na moda. Ergue-se do peito e lembra-nos que a morte nunca está oculta se se está atento à vida.  

Ardem as perdas (in "Mais Alentejo" nº130)


segunda-feira, dezembro 14, 2015

El niño que ya no soy - Gabriel Celaya

El niño que ya no soy


Logré el uso de razón.
Perdí el uso del misterio.
Desde entonces, la evidencia,
siempre rara, me da miedo.

Me da miedo cuando ladra
en la perrera mi perro.
Quizá me esté saludando.
Mas no lo entiendo. No entiendo.

El niño que fui recuerda.
Me trabaja como un hueco.
El niño que fui me llama
a gritos con su silencio.

Me he mirado en mis retratos,
de marinera, riendo
con rizos rubios y un aire
impertinente y despierto.

¿Quién eras tú? ¿Qué sabías?
Ahora sólo siento sueño.
Me aturde tu desafío
y tu risa me da miedo.

Ya no puedo, sin romperlos,
atravesar los espejos.
Mi sistema no funciona
como solía. Lo siento.

Si funcionara, quizá
no escribiría estos versos.
Lloraría de otro modo.
Lo diría todo en perro.

Pero me creo que soy
algo más que un niño muerto,
y como estoy medio calvo
me hago bucles con mis versos.


                  Gabriel Celaya

domingo, dezembro 13, 2015

As ovelhas negras do presépio.../Las ovejas negras del portal de Belén...

Na tradição espanhola (vem da Catalunha), ainda temos o “caganer” (vulgarmente chamado “cagón”) e “meón”. Apesar de parecer ofensivo ou grosseiro, se analizarmos profundamente, estes dois pastores escatológicos, estão a devolver à terra o que de ele procede, adubando a terra do presépio para que seja fecunda para o Natal do ano seguinte. Por isso, por ser considerado um símbolo de saúde e prosperidade (e de humor também!), é que nós os temos a chatear a rena Rudolfo que veio substituir o Pai Natal! 

En la tradición española (viene desde Cataluña), tenemos el “caganer” (vulgarmente llamado “cagón”) y el “meón”. Puede que parezca ofensivo y grosero, pero si lo analizamos a fondo, estos dos pastores escatológicos, están devolviendo a la tierra lo que de ella procede, abonando la tierra del pesebre y haciéndola fecunda para el año siguiente. Por ello, porque es considerado símbolo de salud y prosperidad (y también de humor), los tenemos en nuestro portal molestando al reno Rudolfo que vino a sustituir a Papá Noel...

"Sobre o medo" - Tiago Bettencourt


"Os Ossos do Ofício", Zeca Afonso


Moon River (Audrey Hepburn)






sexta-feira, dezembro 11, 2015

"O Pai Samurai" in Maria Capaz (18/XI/2015)

“O guerreiro leal e o guerreiro justiceiro são fáceis de ser reconhecidos, devido à sua conduta quotidiana, mas podemos dizer que não é fácil encontrar guerreiros valentes em tempos de paz e tranquilidade”.

Daidoji Yuzan


Quando a melena teima em intrometer-se no meu olhar e chatear-me na execução das tarefas domésticas, a melhor e mais rápida solução é agarrar em duas madeixas de cabelo, laterais à minha testa, e agarrá-las com um elástico no cocuruto da cabeça. O carrapito é pequeno, mas a minha visão adquire de novo a nitidez que os meus dias domésticos agradecem.

O meu filho mais velho, em idade de colégio, em idade de descobertas, de imposições de géneros e de fazer todo o tipo de questões que a sua genuína curiosidade lhe demanda, solta um rápido comentário:

– És uma menina!!!

Com os seus quatro anos, sei que nem sequer lhe passa pela cabeça que a adolescência do seu progenitor fora ainda mais gadelhuda, ao ponto do repuxo capilar do presente ser pequeno quando comparado com um rabo-de-cavalo russo, com pretensões de look surfista, mas de praia seca. Enfim, quem cresce com o cabelo comprido numa qualquer cidade do interior português, não fica com o orgulho masculino particularmente ferido por uma observação empírica da primeira infância.

Porém, a este totó ocorreu-lhe uma imagem mais épica para o totó que ostentava na cabeça.

– Menina? Não, não! O que o papá tem é um penteado de samurai!

O seu sorriso trocista surpreende-se com a nova imagem oriental que lhe vinha à cabeça. Seguramente que lhe ecoou, de imediato, os nossos duelos com sabres de plástico do chinês, algum episódio das Tartarugas Ninja, alguma vez que me viu tirar da máquina de lavar e estender um karate-gi, ou algum guião cinematográfico do Kurosawa por mim adaptado para uma bedtime story.

Este episódio paternal, prosaico, nada épico, apesar do palavreado usado na contra-argumentação infantil, proporcionou-me uma divagação, reflexão guardada em nota de memória de telemóvel, que apelidei de Bushido Doméstico. Pareceu-me bem, pelos ecos marciais carregados de filosofia de espanador, mas que poderia ter completado com “do homem do século XXI”.

Traduzido do japonês, samurai significa “aquele que serve”. Que servia o imperador, o shogun ou, se não havia senhor a quem servir, simplesmente, convertia-se em ronin.

A vida de samurai era uma vida de dedicação, frugal, de constante aperfeiçoamento do corpo e do espírito de guerreiro em prol do seu senhor e do seu clã. O Bushido é isso mesmo, um código de conduta, um caminho segundo o qual o samurai vivia e morria. Na actualidade, e para este ocidente, estes paradigmas são tão compreensivelmente estranhos que há que sofrer de alguma “orientofilia” (reconheço-me contagiado!) para aprofundar conceitos abstractos de tratados ancestrais como o Hagakure ou o Livros dos 5 Anéis.

Recorrer à imagem do samurai para reflectir sobre o papel do homem na actualidade é um risco por mim assumido. É mais que sabido que esta casta de guerreiros eram tudo menos bons exemplos no que diz respeito à igualdade de género e à forma como as mulheres eram vistas e tratadas na sociedade nipónica de então. A imagem da espada e da bainha, transversal de oriente a ocidente, é uma redundância etimológica tão forte que impede que se veja o ser humano como algo mais que pura biologia. Fiquemo-nos apenas pelo lado lírico desta referência marcial.

Estou convencido que o homem moderno, desta segunda década do século XXI, honesto e justo com o que o rodeia, também tem algo do compromisso e do código de conduta destes guerreiros icónicos da cultura popular. O homem moderno tem o carácter forjado como o metal equilibrado da lâmina da katana. Assume o seu papel igualitário no quotidiano e serve. Deve servir com o exemplo, não desde o servilismo a que nos pode remeter este verbo, em vida, mas em comunhão com os seus afectos, completando-se, reciprocamente, com uma mulher moderna.

Quando olho para alguns casais, muitos dos quais tenho como referentes, vejo esse espírito do Bushido. Trabalham até largas horas, levam os filhos à escola, cozinham, lavam, limpam, tratam dos seus (e às vezes de outros). Com a dignidade caída sobre os ombros assumem-se sonhadores. Sem queixas (apesar de terem moral para no queixume caírem). Dormem pouco, acertam em cheio, enganam-se rotundamente, riem-se de si mesmos, amam, sofrem, têm a felicidade das pequenas coisas e têm epifanias em que se lhes compensam todas as azias… Guerreiros do dia-a-dia, que caminham lado-a-lado, para quem desistir não é opção.

O aspirador continua nos seus afazeres e o meu pequeno ninja salta para o sofá, assustando, felino, uma das gatas. Há pedaços de bolacha no chão. Odeio esse vilão que o meu filho leva dentro a quem chamamos Sr. Migalha.

Respiro fundo, talvez porque aprendi, ainda em casa dos meus pais, que se há a inevitabilidade da limpeza, porque não aproveitar para meditar? Surgiu-me então um haiku:



            O pó do móvel não

            o impede de contemplar

            a novidade que nele pousa.



Abre-se a porta do quarto. Pára a limpeza e corta-se a divagação zen caseira. Aqueles olhos azuis sempre me levarão a onde quer que eu queira ir. Lembro-me de Wagner. Traz-me nos braços quatro meses ensonados e com vontade de mamar. Uma reacção cavalheiresca seria prostrar-me ante tão bela Valquíria, mas ela não me deixa, nunca me deixará. Agarra-me o olhar de frente.

De aspirador na mão, beijo o meu bebé e junto a minha testa aos cabelos soltos da minha mulher.

Por mais que alguns apenas queiram ver um totó, o espírito de samurai está aí meus amigos e de essa glória, da glória do ele não se distinguir do ela, ninguém me vai impedir de tentar alcançar!

Rosita Sánchez


La miliciana Rosita Sánchez, el 26 de agosto de 1936, en el frente de Extremadura. Una de tantas mujeres valientes y luchadoras en armas. En defensa de la la República, de sus esperanzas y de sus sueños… Hoy son memoria y ejemplo para todos los que creen en la igualdad de género (y no solo).

quinta-feira, dezembro 10, 2015

Diário: "Declaração Universal dos Direitos Humanos" e "Que o meu pai encontre um trabalho digno"

Não fazia a mínima ideia que hoje se celebra o 67º aniversário da “Declaração Universal dos Direitos Humanos”. Sei-o graças a essa enciclopédia de informações úteis (mais vezes inúteis e com gatinhos fofinhos à mistura), que são as publicações nas redes sociais, de tantos como eu. Se fosse um humano já tinha uma idade bem respeitável, como não o é nem se respeita muito a cronologia dos anos e muito menos o que se declara neste documento.

Acabei de almoçar sozinho em casa. A família está noutros afazeres. Dói-me o estômago nesta solidão de comer sem companhia e também devido ao desejo de Natal que uma aluna hoje partilhou comigo e, com tanta coragem, com toda a escola: “Que o meu pai encontre um trabalho digno”. Enquanto a ajudava a transcrever a sua intenção para o A3 dos cartazes apenas fui capaz de esconder-me na minha tristeza camuflada por palavras de optimismo.

Saí do sítio onde, felizmente, ou melhor, ainda, tenho dignidade no meu trabalho e recebo no telemóvel a notícia de que, no país onde nasci, o ordenado mínimo sobe para 530€ mensais. Claro que a este valor há que descontar a sustentabilidade obrigatória da segurança social, o que perfaz a módica quantia de 466€, mais cêntimo menos cêntimo. Ainda há que ter em conta, mesmo com tão modestos valores, o efeito de erosão salarial pelos elementos da inflação prevista para o próximo ano. Parece que são 20€ o que o rico trabalhador, nos mínimos salariais, lucrará.

Volto à intenção da minha aluna, à sua coragem que me diminui e humilda, e formulo o meu desejo, de quem acredita e vai escrever ao Pai Natal, para que todos os mandadores da despiedada finança, magnatas de condomínio fechado à realidade, políticos carreiristas e moralistas que predicam só com o exemplo de bater com a mão no peito, tenham a sorte única desde aumento e que, durante um ano, vivam dignamente com 466€ mensais.

Para que este meu desejo seja ouvido, se é que o meu comportamento é digno de ser recompensado desde a Lapónia, onde se encontra a sede da Coca-Cola, vou ainda escrever uma carta ao Menino Jesus e deixo um bilhetinho aos Reis Magos.

quarta-feira, dezembro 09, 2015

Nasceu-me um filho há cinco anos...

Há cinco anos fui pai pela primeira vez. Socorro-me das palavras de Jorge de Sena e da imagem do meu próprio pai a quem pude dar dois netos...

Nasceu-te um Filho

Nasceu-te um filho. Não conhecerás, 
jamais, a extrema solidão da vida. 
Se a não chegaste a conhecer, se a vida 
ta não mostrou - já não conhecerás

a dor terrível de a saber escondida
até no puro amor. E esquecerás,
se alguma vez adivinhaste a paz
traiçoeira de estar só, a pressentida,

leve e distante imagem que ilumina
uma paisagem mais distante ainda.
Já nenhum astro te será fatal.

E quando a Sorte julgue que domina,
ou mesmo a Morte, se a alegria finda
- ri-te de ambas, que um filho é imortal.
Jorge de Sena, in 'Visão Perpétua' 


O caminho para Ítaca (Konstantinos Kavafis)


O grego Konstantinos Kavafis (Κωνσταντίνος Π. Καβάφης) nasceu e morreu em Alexandria no mesmo dia 29 de Abril (1863 –1933). Foi jornalista e funcionário público. Publicou apenas 154 poemas, mas não precisa de mais obra para que o seu nome fique gravado para sempre na história da poesia. Um clássico impõe-se pela qualidade, não pela quantidade. (v. Delito de opinião)

O caminho para Ítaca

Se partires um dia rumo a Ítaca
Faz votos de que o caminho seja longo
repleto de aventuras, repleto de saber.
Nem lestrigões, nem ciclopes,
nem o colérico Posídon te intimidem!
No teu caminho jamais os encontrarás
Se altivo for teu pensamento
Se subtil emoção o teu corpo e o teu espírito tocar
Nem lestrigões, nem ciclopes
Nem o bravio Posídon hás-de ver
Se tu mesmo não os levares dentro da alma
Se tua alma não os puser dentro de ti.

Faz votos de que o caminho seja longo.
Numerosas serão as manhãs de verão
Nas quais com que prazer, com que alegria
Tu hás-de entrar pela primeira vez um porto
Para correr as lojas dos fenícios
e belas mercancias adquirir.
Madrepérolas, corais, âmbares, ébanos
E perfumes sensuais de toda espécie
Quanto houver de aromas deleitosos.
A muitas cidades do Egipto peregrinas
Para aprender, para aprender dos doutos.

Tem todo o tempo Ítaca na mente.
Estás predestinado a ali chegar.
Mas, não apresses a viagem nunca.
Melhor será muitos anos levares de jornada
E fundeares na ilha velho enfim.
Rico de quanto ganhaste no caminho
Sem esperar riquezas que Ítaca te desse.

Uma bela viagem deu-te Ítaca.
Sem ela não te punhas a caminho.
Mais do que isso não lhe cumpre dar-te.
Ítaca não te iludiu.

Se a achas pobre
Tu te tornaste sábio, um homem de experiência.
E, agora, sabes o que significam Ítacas.

Konstantinos Kavafis


(Tradução de José Paulo Paes)