domingo, abril 30, 2017

MEMÓRIA DE PLASENCIA - ÁLVARO VALVERDE

O dia começou com a amável notícia que um grande poeta, pela mão dum grande mestre e amigo, percorreu as ruas onde habitam restos da minha infância e juventude. 
“Um homem é, de facto, uma cidade, e para o poeta não existem ideias a não ser nas coisas” disse um nobre nativo de Paterson, já eu que resido em pretéritos, em circunstâncias que não analiso, volto à cidade constantemente tendo noutra o meu corpo. 
Obrigado Álvaro. Partilhamos cartas para cada uma das nossas cidades. 
Plasencia e Évora.


MEMÓRIA DE PLASENCIA (ÁLVARO VALVERDE)

Habito uma cidade de memória.
Obriga-me a isso
a pobre realidade que determina
a imagem que reflete.
Não me motiva o anelo
proclive à nostalgia.
Reduz-se a minha ânsia a contemplá-la
no raro desvio dos sonhos.
Caminho pelas suas ruas
a sentir-me um estranho que regressa.
Alguns edifícios recordam-me
que aquilo sucedeu.
As ruínas de outros antes erguidos
confirmam a existência do achado.
Passeio e para lá dos muros late o canto
de um tempo enclausurado.
Descubro nos jardins as palmeiras
que dentro convidam à visita,
e posso fazê-lo só porque são
apenas um solar à intempérie.
No seu lugar haverão de construir-se
casas já sem memória.
Nos arredores,
uma ilha recortada dá ao esquecimento
as doces alamedas da infância.
Não podem os nossos corpos alagar-se
nas suas tíbias margens lamacentas,
as noites de Verão.
As suas ribeiras dão forma a umas memórias
seguramente falsas.
Os pavilhões vermelhos derruídos
foram um dia
o limite do mundo.


Trad. Luis Leal

sábado, abril 29, 2017

Calos de escrita

Estava a cortar as unhas do meu filho mais velho quando reparei que os seus seis anos de vida, e primeiro ano de escola, já têm um calo de escrita no dedo médio da mão direita. Lembrei-me das mãos do meu avô João, artroses cheias de calos de trabalho duro, mas sem um único calo de escrita porque nunca puderam aprender a segurar na caneta.

As unhas iam caindo para o chão desde uns pequenitos dedos que tocam a terra sem medo. São herdeiros dessa terra que não soube de livros, mas soube de gente e cuidou dos seus. Que calos terá no futuro? Tentarei que honre os calos do passado, por mais descabidas que palavras como honra, trabalho duro e calos pareçam a este presente. As nossas mãos não esquecerão. As nossas mãos não se podem dar ao luxo de esquecer...

sexta-feira, abril 28, 2017

Para contradizer as minhas últimas notas neste «sendero»...

«Mijar e não se peidar é como ir à praia e não ver o mar». Pierre-Thomas-Nicolas Hurtaut

“A música, a poesia e a arte podem ser alternativas à energia negativa do mundo”




“A música, a poesia e a arte podem ser alternativas à energia negativa do mundo”

Os Sonic Youth, a espiritualidade, Trump, o papel da arte nestes estranhos tempos e o prazer da meia-idade. Aos 58 anos, Thurston Moore parece mais consciente de si e do que o rodeia do que nunca. No novo álbum experimenta novas estruturas para o formato canção e diz que é tempo de nos organizarmos.

Vítor Belanciano

28 de Abril de 2017

Diz que nunca se sentiu tão bem e quem somos nós para o contradizer? Os que continuam a associar a cultura rock aos ideais da juventude poderão estranhar. Quem cresceu a ouvir Sonic Youth poderá não perceber. E quem olha para o seu divórcio de Kim Gordon com azedume, seja porque romantizava essa relação ou porque ficou zangado por ter originado o fim dos Sonic Youth, poderá não perdoar-lhe. Mas ele não está nem aí.

Thurston Moore, 58 anos, músico, poeta, editor, improvisador, herói do rock alternativo, criador de tangentes entre cultura popular e radicalismo artístico, diz-nos que está num bom momento. “Vivi coisas fantásticas quando tinha 20 ou 30 anos e estou agradecido por isso, mas sinto que, enquanto artista e pessoa, encontrei nos últimos anos um ponto de equilíbrio mais satisfatório, sem que isso signifique menos inquietação pelo que me rodeia. Continuo a fazer o que mais gosto, com a paixão de sempre e segundo as regras que vou ditando a mim próprio.”

No seu novo álbum, Rock N’ Roll Consciousness, dir-se-ia que tudo isso está presente. Nota-se o despreendimento de alguém que já não tem nada a provar. E também está lá a passagem do tempo sem angústias. Mas isso não significa menos desejo de se pôr em causa. No total são apenas cinco longas canções (o single Cease fire surge como faixa escondida) que possuem a dose certa de exploração sónica e envolvimento melódico, com doses de dissonância e crescendos rítmicos, mas também de quietude, essencialmente transportada pelas letras e pela vocalização. É um disco focado na espiritualidade, como contraponto à desordem do mundo, e na ideia de ensaiar novas estruturas para o formato canção.


A entrevista completa em Cultura Ípsilon - Público 

Perder a ironia

Estou a perder a ironia. Escrevo uma etapa cuja ironia está repleta de tantos estímulos que a emoção, a beleza, o sentido, ou a sua ausência, simplesmente me deixam perplexo. Sinto isso, mais do que nunca, e a comédia desta etapa deixa-me mais de boca aberta do que a sorrir. Estou a perder a ironia, mas há ironia nisso. Estou a tentar rir-me disso. Hei-de voltar a recuperar esse formato, juro-o pela saúde de D. Ramón Gómez de la Serna!

Marylin Monroe de 80 anos e de muletas...

Acabo de cruzar-me com um ícone. Marilyn Monroe a sair dum táxi, com um loiro octogenário, e o vento a levantar-lhe a saia ondulante num ápice. Ela viu que eu vi e riu-se despida de tantos anos para mim. A muleta voltou a pôr tudo no sítio. Os sorrisos não têm idade e as pequenas emoções também não.

terça-feira, abril 25, 2017

«Papá, ¿Por qué motivo admiras tanto a este militar?»

«Papá, ¿Por qué motivo admiras tanto a este militar?»
(Pensé: «Hijo, hay hombres, como el Capitán Salgueiro Maia, que no se pueden morir de un cualquier cáncer, pero sí de pie, fulminados por un rayo.»).
Le dije: «Porque es puro.».
Y él: «¿Puro? ¿Qué es eso?».
«Es ser leal a las raíces. Las suyas son como las tuyas. Están en la frontera.».
Riéndose: «No te entiendo, papá. ¿Él es como el Capitán América?».
«¡Más fuerte y no llevaba escudo!».

Lembranças de Abril...

Eu cá não sou muito nostalgico, pouco saudosista, mas hoje estou a lembrar-me demasiado do 25 de Abril, da sua celebração na minha cidade, da Praça do Giraldo a cantar a «Grândola». Deve ser porque estou quase a ir para uma comissão pedagógica, uma comissão onde há o fascismo sistemático que me impede votar. Farei uma revolução? Desobedecerei à legislação?
Não me parece. Não tenho coragem de capitão.

domingo, abril 23, 2017

O Afinador de Memórias

Têm sido vários quilómetros nos últimos dias. Trabalho principalmente. Hoje foram quilómetros para a família, para casa dos meus pais, para Évora, onde fazemos questão de celebrar o nascimento dos nossos filhos pacenses. 
O almoço juntos ao som do Zeca, o café e o bolo com os primos e madrinhas, o estarmos juntos a celebrar a vida do meu filho mais novo (com dois anos cheios de alergia e ranho) e a, quem sabe, criar as memórias de uma infância vista desde o futuro.
Fui também, sozinho, ver o meu avô. Reconheceu-me e reconheceu-se a morrer. Perguntou-me pelo meu pai e pela minha mãe e eu respondi-lhe o que a minha memória sentida me ditou: «estão em casa a cuidar dos netos, a cuidar dos meus filhos, como tu cuidaste de mim».
O oxigénio saído da máquina para as suas narinas ajudavam-no a respirar mas os brônquios ouviam-se na respiração desanimada. Só fui capaz de encostar a minha testa à dele, respirar com ele e mergulhar a tristeza do ver assim na memória de tudo o que foi (e é) para mim. Tanto sofrimento físico não é uma recompensa para o bem que nos fez. Não questiono designios mas também não os aceito como divinos. Ele não merece que se sofra, mesmo que seja vontade dum Ele.
Saí pouco tempo depois. Todos os dias ele definha ali, bem assistido, cuidado, mas a morrer e a sofrer há seis anos. Recuso que o meu avô João morra desta maneira em mim. Herdei o seu apelido e a vida impôs-mo como primeiro. Leal ao seu gosto por caminhar ao ar livre ou pela cidade, tal qual um belo pardal, de árvore em árvore, telhado em telhado, dirigi-me para o Largo da Sé onde se celebrava uma simpática Feira do Livro. Bem escondido, lá estava o meu «33» no stand da autarquia. Fiquei feliz só do ver, orgulhoso da paternidade e tímido pelo passado que sinto caducado. Lembrei-me que me disseram existir um conceituado, mas já finado, poeta do Porto que quando encontrava um livro seu numa livraria puxava-o para o protagonismos da primeira fila. Não creio ser capaz e, ao lado do poeta em questão, não tenho a mais mínima comparação. Tomara eu que o que verto em palavras se assemelhe ao caudal do que foi a sua obra.
Mas a memória deste dia do livro em forma de filho, acabou com dois dedos de conversa com o Jorge Serafim, verdadeiro contador de histórias, alentejano de gema, não um alentejano caramelizado como eu, que me dedicou o seu «O Afinador de Memórias» para os meus filhos. O dia acabou com ele e afinou-nos a memória.

A alegria de acordar a teu lado, sempre será maior que o cansanço

sábado, abril 22, 2017

Pedros (Coria, 22/IV/2017)

Duvidámos muito se havíamos de chamar Pedro ao nosso segundo filho. Não o chamámos, mas fizemos questão que tivesse o seu padrinho civil, como dizemos a brincar, e fosse um exemplo basilar como é o nosso Pedro Cuadrado.
A verdadeira riqueza não é pecuniária para mim e tem-se apresentado em forma de pedras neste sendeiro. Ao assumir a existência de pedras no caminho o melhor que fiz, até hoje, foi aprender com os japoneses o seu «suiseki» - já não me lembro se se escreve assim, mas está pelos «senderos» apontado - a apreciar a beleza da rocha, a sua forma, a sua textura, o seu passado geológico em camadas sedimentares de experiência e sabedoria.
Pedro deriva etimologicamente de pedra. E, realmente, tenho tido o privilégio de poder apoiar-me em rochas duma firmeza inabalável. Quem lê este blog, sabe que o Pedro L. Cuadrado é um alicerce. A sua amizade faz de mim melhor e, escrevo-o, pule e lima as arestas descabeladas do meu espírito impetuoso.
O Pedro Martín é outra pedra. Essa doma o duro e o suave passo com que assevero o meu ritmo. Ensinou-me a condição do «Do» que salvaguarda o meu passado e a constância de artista no homem comum.
E Pedro Gundí, velho amigo de Coria, reformado do mundo docente por idade mas um dos meus maiores mestres. O Pedro Gundín conhece-me há quase uma década, aceitou ser aluno dum gaiato cuja atenção e respeito ajudaram a formar o profissional e o dependente da palavra que por aqui se escreve.
Várias vezes me lembrava dele. Sou um herege de devoção ao ar livre de Miguel Delibes graças a ele e, hoje, depois de cinco anos sem saber notícias suas, veio ter connosco ao CPR só para me dar um abraço.
Já tem e-mail e isso ajuda numa época em que a tradicional epístola perde carácter práctico mas não a beleza.
Há abraços que sabem a tanto... 
O meu «Suiseki» faz com que estes Pedros sejam estimados como essas pequenas pedrinhas, seixos do rios que a infância guarda nos bolsos e são contemplados com o afecto da palma da mão...

Breakfast by the river (Coria)

quinta-feira, abril 20, 2017

“¡Hola!”

É verdade, não costumo escrever muito sobre o meu filho mais novo. Os segundos têm a sorte (ou não) de terem as portas escancaradas ao mundo pelos irmãos mais velhos e os pais já não são tão maçaricos como na primeira vez.

Há alguma diferença de idade entre eles, quatro anos, exactamente os mesmos anos que me distam da minha irmã mais velha.

Porém, foi ele quem hoje, desde a sua inocência quase a fazer dois anos, me fez pensar como por aqui andamos, como vivemos, como somos uns para os outros.

Todos os dias vou buscá-lo ao colégio de bicicleta. Ele herdou a cadeirinha do irmão e lá vem, tipo lord num riquexó, com o seu capacete azul a saudar toda a gente tipo papa ou rei. É um puto simpático, digo-o com todas as suspeitas que podem cair num pai.

E lá vem ele a dizer adeus a toda a gente e a dizer “¡Hola!” tão feliz do seu protagonismo infantil que lá se vai safando e recolhendo frutos como se de um monarca querido pelo povo se tratasse. E com apenas dois anos é melhor que a maioria dos adultos com quem se cruza.

Já o disse mais que uma vez, neste mundo, em que se perverte o nome “mãe” com uma bomba lançada pelos EUA, a amabilidade está em vias de extinção. É quase considerada uma fraqueza, uma debilidade de ser. Voltemo-nos para dentro, para o tão útil, mas tão frio smartphone, para a tão acessível e desconectada da realidade Internet, para o mutismo da voz e para a paralisia facial a apagar sorrisos.

O puto não sabe nada da vida e sabe que com sorrisos cativa a gente, que engata gajas (para brincar claro) no parque, que sempre será acarinhado por um idoso. E, sabe bem, se chorar mama, mas se for simpático é feliz lá à maneira dele.

Tudo isto porque também eu acredito que tenho de tentar sorrir a maior parte do meu dia e tenho prazer em tentar viver com amabilidade. É fácil com ele enquanto é bebé, mas nem sempre será assim. Vai crescer. Vai ver que não podemos estar para aí a oferecer sorrisos a torto e a direito, que muitas vezes te estás a rir, mas estás a mostrar ao outro que não és estúpido e que não lhe permites a sua toxicidade. Em resumo, é fácil enquanto eles são pequenos. Depois vem a maioria hormonal descontrolada que corrompe a alegria da infância e, desculpem-me o termo, estão mais parvos que uma porta. E as portas só servem para abrir e fechar e salvaguardar/ocultar qualquer coisa. Pena que não ocultam a estupidez. E lá vão eles a subir escada a cima e a cruzarem-se contigo. Dizes-lhes “olá, bom dia” e nem à merda te mandam. Deixo-os ir como deixo ir os meus dejectos sanita a baixo.

Preocupante é ver os modelos adultos que têm. Criticam a sua conduta, opinam o mesmo que eu opino em linhas diarísticas com valor de exorcismo, mas não dão o exemplo. Não lhes ensinam a sorrir, a cumprimentar, a serem corteses.

O meu filho sente-se um rei de riquexó, mas não tem o rei na barriga. Que curta enquanto pode. O seu riso é o melhor. Quando o abandonar pode ser que se volte a rir da estupidez de o ter abandonado. 

quarta-feira, abril 19, 2017

Nós e o Charlie…

A primeira vez que demos uma aula juntos, ele tinha 11 meses. Eu a explicar verbos irregulares, tempos e modos, e ele a quebrar a regra do meu profissionalismo e a saltar-me para o colo. Foi em Monfortinho, num curso daqueles que temos a esperança de voltar a repetir.

Cinco anos depois, fui com ele ler o conto do “Charlie e a Fábrica de Chocolate” ao seu colegas de turma na biblioteca da sua escola. O convite foi do Ismael, o seu professor, e nós fizemos uma tradução da sua versão para português. Lado a lado, sentados no chão, falámos do nosso segredo, das nossas duas vozes, uma que é capaz de dizer “hola” e outra, enraizada, que diz “olá”. 

Enquanto eu lia as aventuras dos bilhetes dourados do Charlie e companhia, ele mostrava as imagens do seu livro “popup”. Os seus olhos brilhavam de orgulho. Eu estava presente. 

Acabei a leitura e ele distribuiu aos colegas a nossa primeira tradução a duas mãos.

Despedi-me de todos e dele com um recordatório:

- Daqui a pouco o papá vem cá te buscar.

Voltou em fila para a sua sala de aula. Despedi-me do Ismael e falámos um pouco do que para nós é profissionalismo e vocação, como andam de mãos dadas.

Desci as escadas da escola primária e só uma voz falou dentro de mim. Aquela onde sempre regresso e que não teve pais na escola porque eram outros tempos. 

Já na esquina da vedação da escola, parei e senti como os meus olhos se humedeciam. O meu filho esteve feliz e orgulhoso de ter o pai em frente de todos os seus colegas. Dias chegarão em que terá vergonha de mim, de certeza. Pode ser que ele se recorde do Charlie e da sua família… e volte rapidamente para casa para contar-nos que nós somos o seu “bilhete dourado”.



Reflexão do Dia Internacional da Bicicleta (a partir das palavras de Jim McGurn)

Jim McGurn, me llevó a esta reflexión personal sobre la bicicleta y el poeta:


"El ciclista, como el poeta, genera movimiento con base en casi nada. Ambos tienen la angustiosa capacidad de desafiar todos los valores de esta sociedad de rápido y voraz consumo. Fácilmente mueren atropellados". 

"O ciclista, tal como o poeta, gera movimento com base em quase nada. Ambos têm a angustiosa capacidade de desafiar todos os valores desta sociedade de rápido e voraz consumo. Facilmente morrem atropelados".

Bicicleta de Poeta


A bicicleta de poeta
pedala deserta
de vazio
e com ideia de chegar
a nenhum sítio.

Carregada de mudanças
não usa nenhuma.
Sabe que lá as tem
caso lhe fraquejem as canetas.

O único símbolo que permite
é um capacete.
Exemplo de proteger o exemplo
do que foi e não quer
ser
«Faz o que te digo e não o que eu faço».

Roda devagar.
Tem furos cientes de não chegar
ao destino.
(Isso é para outros veículos.
O motor de explosão
não se vê afectado pelo ácido
láctico, porém
também não conhece 
a força daquele que decide…) 
Pedalar

"A SECÇÃO ÁUREA" - Manuel Rivas

A SECÇÃO ÁUREA

Foi no enterro da tia Anuncia, em Riocobo,
naquele dia de sol em que entrava muito frio pelos pés.
O Pepe, o de Teté, que é filho de carpinteiro,
falou-me da Secção Áurea,
o número secreto que guarda a proporção
entre os segmentos.
O berço,
os primeiros tamancos
o balde e o pote,
o espigueiro,
o carro de bois,
o pão caseiro de centeio,
a carta da América,
o fole da gaita,
o bordado de linho,
o leito de amor
a colher de pau,
a virgem das Dores,
a chama da candeia,
as contas do rosário,
têm essa álgebra que só se contagia
com a luz do pão
no olhar da mão.
A Secção Áurea.
A medida também de um sepulcro honorável.

O ESCRITOR, O LAVRADOR E O CARPINTEIRO

O escritor é escritor enquanto escrever. Se não escreve não é um escritor. Um lavrador é um lavrador enquanto cultivar a terra. O escritor, como o lavrador, é um sobrevivente. O escritor e o lavrador partilham uns quantos segredos. Um mundo divide-se entre os que plantam o milho e os que o pisam. O silêncio da terra, o papel em branco, põe à prova que é que vale e quem não. O escritor e o lavrador sabem que no paraíso terão de trabalhar. Para o escritor e o lavrador, no fim e à posteriori, a vida consiste em ter um pedaço de terra onde poder cavar pelo menos dois metros de melancolia. Há outra coisa que assemelha o escritor ao lavrador. Os dois são amigos do carpinteiro. E o carpinteiro conhece o segredo da Secção Áurea. A proporção entre segmentos.


Manuel Rivas (trad. Luis Leal)

Do tom proverbial ao maternal...

Desde que me proponho fazer um diário, com notas de enorme utilidade para a inutilidade da minha escrita, nem sempre é ao final do dia que o redijo. É quando posso e tenho acesso ao teclado tranquilo do smartphone ou do comutador. Hoje é à noite, com os miúdos recém-deitados e com um livro lido para preparar-lhes a entrada no vale de lençóis. Tem havido de tudo: contos tradicionais, aventuras, rimas, poemas, bandas desenhadas, super-heróis, clássicos de Grimm... 

O retorno à calma hoje foi feito com um livro oferecido pela sua avó, a minha mãe. É um livro ilustrado de provérbios por ordem alfabética e, apesar de não entenderem o seu conteúdo moralizante, houve interesse prosódico nas rimas e o efeito estribilho que os provérbios têm.

Sem sequer ter nisto pensado, o pensamento deste momento leva-me à minha mãe. Existirá um provérbio qualquer que explique porque é que nos centramos, em adultos, nós homens, na figura e personalidade do pai e quase nos esquecemos das mães?

Reconheço o peso que o meu pai teve e tem em mim, como decido ser tão diferente dele porque tenho medo de ser como ele e como decido ser como ele e acabo por ter coragem de ser autêntico. É confuso. Ambos somos confusos. Ele é dono duma complexidade que contrasta com a minha, choca, felizmente cada vez menos. A minha mãe não. A minha mãe, aquela por quem gritaria em qualquer aflição, embalar-me-á no seu líquido amniótico para sempre. Não há desculpas, nem perdões. Dizem: «mãe é mãe». A minha é muito crente, talvez carente de alguma lucidez na sua personalidade. Preocupa-se por agradar. Fá-lo com a boa intenção de samaritana e não lho posso recriminar. Agradar a gregos e a troianos não é para todos e, apesar de me custar ver como, por vezes, se anula perante os outros, cada vez mais, assim é a minha mãe e fora a sua, a minha avó. E eu, com a obsessão de ser homem, pai, filho com a necessidade de aprovação daquele que foi meu progenitor, esqueço-me que foi ela, a minha mãe, quem sempre me moldou livre a ser quem sou. Talvez o verdadeiro amor de mãe seja isso, uma coisa incompreensível que não se edifica em património e vem-se diluindo desde o ventre.

Ao ser pai, apercebo-me que sou mais como a minha mãe. Esta é uma das formas de agradecer-lhe. Ela sabe-o em cada abraço que lhe dou e darei. Abraços finitos e sabedores disso. Este tempo já não me aconchega os lençóis, encontro-me ao relento da imperfeição de ser adulto, porém sei se por aí me cruzar com a morte será sempre pela minha mãe que chamarei.


E ao princípio só tinha pensado no provérbio...

terça-feira, abril 18, 2017

“Budo Humanista e Ilustrado” de Pedro Martín

Es con mucha pena que estaré ausente en la presentación de este excelente libro de mi amigo y maestro (sí, de esos en extinción que dignifican la amistad y la maestría) Pedro Martín. Tuve la suerte de haber leído las primeras versiones y me muero de ganas de tener el ejemplar definitivo en mi biblioteca personal. Además, le acompaña la mirada atenta del discípulo, pero en el arte fotográfico ya un gran maestro (¡y todavía es un jovencito!), Juanma Zarzo. 

Os equivocáis si acotáis las artes marciales en fisicidad y violencia. El “Budo” es filosofía, pedagogía, dedicación y constancia, todo extrapolable a la vida misma. Recuerdo un escritor que decía «el Karate es una manera poética de interpretar la violencia». Desde mi punto de vista, también su visión es redundante. Sin embargo, este libro, que el próximo viernes se presenta en la biblioteca pública Bartolomé J. Gallardo de Badajoz, es una de los mejores que tuve el privilegio de tener en manos. Es autentico y lleva vidas dentro. La técnica sin vida tiene la frialdad de la máquina y este “Budo Humanista e Ilustrado” de Pedro Martín, desde luego, se aleja de esa condición. No se resume a la praxis en el “Dojo”, viaja por el mundo, investiga, reflexiona sobre la condición del ser humano prosaico que, muchas veces, ni se da cuenta de lo comprometido que está con el “camino del guerrero”, ese término japonés, tan famoso, que es el “Bushido”.

En fin, amigos, no hace falta ir al Extremo Oriente buscar lo que desde hace más de 30 años tenemos aquí… Yo no puedo estar, pero vosotros podéis ayudarme en esta laguna de la no ubiquidad. Acercaros a asistir.”.


Teresa Torga (Júlio Pereira e Minela)



Mais a guitarra de Moz Carrapa.






segunda-feira, abril 17, 2017

3000

O número é relativamente redondo. 3000 crianças espanholas exiladas na ex-USSR  durante e após a guerra civil em Espanha. Passou por elas o exílio, o frio, a fome, a  Segunda Guerra Mundial, uma dor de crescer longe e sem saber dos seus.
De todas as crianças exiladas durante o conflito fratricida espanhol, as da União Soviética foram as que puderam regressar a Espanha mais tarde, em 1956. Os relatos da volta a casa são incríveis. Alguns ficaram outros não aguentaram o olhar de desconfiança e voltaram.
Não tenho a certeza, nunca tivera curiosidade até hoje, mas estes números não se estudam nos livros de história do presente.
Há poucos dias foi lançada a "mãe de todas as bombas", os estilhaços destes actos só produzem dor e essa morte de que todos ficamos órfãos.

domingo, abril 16, 2017

«Paterson» ("Se alguma vez me deixares/Chorarei por o meu coração arrancado/E nunca o poderei sarar")

O motorista de autocarro sempre com o dia-a-dia apontado num bloco de notas. Li um breve resumo, li até mesmo uma crítica - coisa que pouco faço e não me fio -, e fiquei com muita vontade de ver o Jarmusch a contar-nos uma história de um poeta com o nome da sua localidade. Paterson. 
O bloco de notas é esse denominador comum em tantas almas que se escrevem. Motorista, garçon, costureira, empregada de comércio, médico, etc. Um professor e escrever, mesmo com o bloco de notas, não é denominador comum. É lugar-comum. 
Durante anos tentei ocultá-lo por me parecer demérito tentar grafar arte quando o meu ganha-pão é ensinar (e, por vezes, a intrusão de analisar) arte e uma língua.
Deixei de analisar-me tanto. O ensino cada vez se resume mais a aprofundar didácticas lúdicas a magote do nosso esforço, da nossa vocação, para professar programas com standars minimíssimos de avaliação. Professo o que posso, verbos, funcionamentos da língua, alguma da sua literatura, cultura geral para que, especificamente, aprendam qualquer coisa. Trago pão e consciência honrada para casa. Aceito o lugar-comum. Sei que não sou só professor. Esse é o meu denominador comum, quem sabe com quem... Mesmo sem ver o "Paterson", não me importaria que fosse com ele.


Nota «nerd» para os meus filhos (se alguma vez lerem este diário) e não :
O Paterson e o Kylo Ren são a mesma pessoa! O poeta e vilão. Ambos necessitam duma coisa - estilo.

Hace mucho tiempo, en una galaxia muy, muy lejana... se celebraba la última cena...

sexta-feira, abril 14, 2017

Medos que inventaram para mim

Ouvi este verso, ontem, na rádio musicado numa bela canção: «medos que inventaram para mim». Ficou-me na cabeça. Hoje, lembrei-me do meu pai, dos seus medos, quais herdei e quais superei. Dei de caras com uma pequena cobra debaixo duma pedra. O medo de percurso medular da infância não me acompanhou, foi substituído pelo fascínio por uma forma de vida que resiste à dureza do solo e rasteja através da sua condição causadora dos males de termos sido expulsos do paraíso.
Olhei-a, quase a agarrei mas não me senti o seguro suficiente para fazê-lo. 
Os meus medos, com a idade que tenho e a vida que tenho podido viver, mesmo que o passado mos tenha inventado, sou eu o responsável por eles. Sou eu quem os alimenta ou faz passar fome. Eu e a cobra. Ambos natureza, ambos com medo. Separa-nos o instinto e une-nos o destino de não acreditarmos em paraísos...

quarta-feira, abril 12, 2017

Fado do Campo Grande (Carlos do Carmo)


Fado do Campo Grande. Puro estado de graça de todo o pessoal... Havia muito tempo que o não ouvia. Hoje calhou assim, e ouvi-o três vezes... Tanta intensidade!


Carlos do Carmo mais todos eles:

Letra: José Carlos Ary dos Santos / Música: António Vitorino D'Almeida

Guitarra Portuguesa: Raúl Nery - António Chaínho; Viola: Martinho D'Assunção; Viola Baixo: José Maria Nóbrega.


(1977)



segunda-feira, abril 10, 2017

Jugador Fantasma...

Le enseñas que los espectros no existen fuera de nuestras cabezas. Pero él, con una imaginación (qué como él mismo me lo recuerda, rima con corazón) ajena a los fantasmas de la infancia paternal, simplemente le hace jaque a su oponente invisible...
Me enseña él tanta cosa, incluso ajedrez, que todavía no sé jugar. El jugador fantasma le da más juego que yo...

«O capitalismo está a coçar o rabo, tentando perceber onde é que poderá cagar a seguir» in "Reino do Amanhã" de J.C. Ballard

domingo, abril 09, 2017

Domingo abandonado (mas com sol)

Dois atentados a igrejas no Egipto. Dezenas de mortes. Um porta-aviões dos EUA nos mares Japão para mostrar uma posição de firmeza após lançamentos de misséis  norte-coreanos. Morte da primeira mulher ministra da defesa espanhola, um dos maiores símbolos da luta pela igualdade que os meus olhos viram até hoje, quando, após jurar o cargo, passou revista às tropas do reino bem grávida da sua condição de mulher lutadora.
Mas o sol brilhou, o rio correu e nós descobrimos novos recantos cheios de luz e pássaros... O mundo não descansa ao domingo. Deveria. Dizem que Deus descansou, no entanto, o seu filho predilecto, num momento de fraqueza, ou lucidez, bradou ao céu indagando:
«Meu Deus, meu Deus, porque me abandonaste?»

Passear o ego é como levar o cão à rua. É de boa educação usar o saquinho para apanhar os dejectos.

Autocaravana a pedais/pedales...(01/IV/2017)

«Every woman every man
Join the caravan of love...»
A nossa autocaravana o motor é a pedais.../Nuestra autocaravana el motor es a pedales...

«tokimeku», em japonês, «criar uma centelha de alegria».

«Tenta deixar o mundo um bocadinho melhor do que o encontraste» 08/IV/2017

O trabalho da terra é duro. Dá trabalho. Mas de todos os que tenho feito até hoje é o mais propício à contemplação. 
Fi-lo ao lado de quem me cuida, da minha cúmplice de todas as horas, de quem quase nunca lê o que escrevo a diário, mas está nas entrelinhas. Desde umas entrelinhas de compassos das nossas árvores futuras, adubámos o sonho, à mão, de colheitas sustentáveis de frutos.
O ritmo era o nosso, o de aproveitar ao máximo o momento, ainda por cima com o apoio esporádico dos avós que brincavam e, como nós, espalhavam adubo na infância dos dois netos.
Já tomei banho, já limpei as botas e o pó da roupa da lavoura e o cheiro a adubo continua a sentir-se nos dedos das minhas mãos. Espero que ajude a crescer as boas obras. Reconheço ter primeiro pensado como alguém que necessita mais do que pão para viver. Mas quando o pensamento se materializa com a minha realidade, com a minha possível vaidade, volto ao princípio, aos valores para mim primordiais, a esses de trabalho e de terra. Dos anos significativos em que fui um escuteiro de terceira, ficou essa frase que tanto sentido fez, e ainda faz, para o meu mundo: «tenta deixar o mundo um bocadinho melhor do que o encontraste».
Como não sou megalómano, sei ser capaz desse «bocadinho». Tenho uma cúmplice nessa missão, ela sabe bem disso...

sábado, abril 08, 2017

Marco Pisellonio - Deux ex machina








Despedida dum velho amigo. Apurou-me o sentido de legado e deixou-me a melhor das heranças: autenticidade.
Em arte, como em qualquer domínio deste sendeiro, se me vou perdendo do autêntico eu, leal às raízes, vou-me perdendo de mim e do que as nossas insónias me ensinaram.

sexta-feira, abril 07, 2017

Ideia em movimento: «pedal(e)ar»

O dia em que todos os generais lutarem rasos ao lado dos seus soldados, acabar-se-ão todos os conflitos bélicos.

Processo de Disciplina a um Soldado da Paz

A consciência dum bombeiro impediu-o de velar pela segurança dum carregamento de armas para a Arábia Saudita. A moral do soldado da paz não está ao serviço duma administração pública conivente com a moral da empresa de fabrico bélico. Abre-se um processo de disciplina ao heroísmo do bombeiro, ameaça-se a sua sobrevivência (e dos seus) com quatro anos de suspensão de ganha pão. 

Sabemos que o negócio das armas não tem moral apenas ética de vendas à melhor oferta, mas este estado democrático tem porque zelar pela segurança dum negócio cujo objectivo são as transfusões de dinheiro para as suas contas enquanto derrama o sangue de civis inocentes?

A inocência é mais uma bala perdida a matar cinicamente por  um pequeno orifício, difícil de detectar na autópsia. 

Por aqui não caem bombas, não explodem casas nem carros, mas cai-nos a cara de vergonha. De todos os soldados, este, armado com o valor da vida, dignifica todos os outros enganados, reclamados e amputados pelas razões da guerra. Quem é que o protege da má consciência da indústria do armamento? Quem é que vai de peito descoberto contra quem tem tanto poder de fogo?

O dia em que todos os generais lutarem rasos ao lado dos seus soldados, acabar-se-ão todos os conflitos bélicos.




quinta-feira, abril 06, 2017

Mãos a falarem por nós...

Olhámos para as nossas mãos, como as vemos e como o outro as vê. Só neste acto de contemplação encontramos uma história, imagino só o que poderíamos encontrar, descobrir, se as tocássemos, as decifrássemos em linhas, calos ou suavidades. São as mãos que lançam os dados das nossas vidas, mas também são as mãos as que organizam os dados que contam a sua história...

Já de volta desta viagem pelas nossas mãos, de caminho a casa, quando tropecei não chegaste a tempo. Esfolei a palma das minhas mãos. Eis o destino a influenciar as linhas das nossas vidas...

Escrever para o esquecimento mas para não me esquecer...

De conversa com um amigo, disse-me:
- Há mais de dez anos que escreves naquele blog? Caramba, eu só me aguentei dois ou três anos.
Só fui capaz de lhe responder:
- No blog escrevo para o esquecimento, mas, no fundo, escrevo para não me esquecer...
(Do que escrevo, do que vejo, do que sinto...). 
Antes andava com blocos atrás, lápis do Ikea, papéis soltos que acabavam perdidos ou centrifugados na máquina de lavar. Hoje há a comodidade à mão, mesmo dentro do bolso. Aplico-a com gosto.
Após a conversa, foi impossível não pensar: «quantos anos mais se caminhará por estes "Senderos de Reflexão"?».

quarta-feira, abril 05, 2017

Há os poetas... Filipa Leal (in «Pelos Leitores de Poesia»)

«Há os poetas que não gostam de ninguém, e há os que têm pena de toda a gente. Os primeiros safam-se melhor. Os segundos estão sempre a dar esmolas e a dizer poemas por todo o lado.»

Dou por mim a imaginar uma espécie de paraíso dos poetas

Dou por mim a imaginar uma espécie de paraíso dos poetas. Um além lírico no qual só mesmo em sonhos, ou divagações, poderei entrar.
Se a sorte, ou ironia deste fado, enganar o porteiro e lá me infiltrar, com quem é que me poderia dar?
Ponho-me a pensar em português e só acredito que me aturasse um amigo sadino e fiel cliente do Nicola. 
Si pienso en mi lengua de adopción, por suerte no creo que a D. Pablo le importara montar en bicicleta conmigo.
In the case of English that is not so easy... well Chesterton could be a good idea.
Enfim, ainda bem que tal coisa não existe a não ser no ócio da minha imaginação. Mas se existir, fixe, fixe, era poder deitar-me ao sol do Jiniebro, com o José Antonio ao lado e, no horizonte, vislumbrar o meu berço. Haveria poesia de certeza. Os nossos peidos sempre rimaram.

Os mortos não se levantam da campa para urinar

Mais uma noite privado do sono. Ao lado dormem os vértices do meu dia-a-dia. Fico grato pelo seu descanso, pelo seu sono reparador e esperançoso dum crescimento sem tantas noites brancas como as dos meus últimos tempos.
Na mesa de cabeceira, o findar de tantos livros e o ocaso consciente dum poeta octogenário. Procuro-o com a frequência do discípulo, porém, sempre, humildemente, me nega esse privilégio. Confessa-se vítima de tantas noites às voltas com o clarão do nada quanto eu. Tenho medo. Compreendo-o tanto que não quero ter mais dele que a sua companhia. Rejeito este copo cheio de veneno hiperestimulante, cafeína traiçoeira que não tomo à noite, esta luz dentro de mim a encandear-me os sentidos...
Sei que ele não se ri tanto quanto eu. Nem quando partilhávamos a mesma idade. Sei que ele não é meu mestre, apesar da terra plana debaixo das unhas. Somos companheiros de insónia. Um vivo e outro morto. Quem é quem, pergunto-me.
É fácil. Os mortos não se levantam da campa para urinar.
Quando era adolescente, miúdo de poucos livros e apontamentos numa mochila cheia de honestidade, disse-me eu ser um espírito mais velho do que o meu  BI ostentava. Não entendi a observação, não me senti ofendido com uma ideia de decrepitude, nem me senti orgulhoso dum possível elogio vindo duma mãe que bem sabia que as minhas hormonas, essas sim ingénuas, queriam a sua filha.
Lembrei-me dela. Delas agora. Mãe e filha. É o que as insónias fazem. Ocupam tempo e vasculham a memória nos fundos duma noite perdida, ou ganha ao sono profundo da morte.

terça-feira, abril 04, 2017

Devo ser do norte

Devo ser do norte. Beber, pouco. Mulheres, só a minha. Porém, a latitude é tramada para os preconceitos e a estupidez não necessita geolocalização. 

domingo, abril 02, 2017

Buena letra, tareas a tiempo y esfuerzo

Muchas veces te preguntarás si merece la pena. Papá y mamá intentarán ser sinceros diciéndote que sí, pero lo mejor es que te acuerdes de todo lo que hiciste con ilusión de niño. Creemos que la mejor respuesta la tendrás tú. Este es, era, tu trabajo sin que te preguntaras si merece la pena. Simplemente eres, eras, curioso...

O ciclista de Abril (ilustração de Alex Gozblau, in «Romance do 25 de Abril»

A ideia da Primavera trazer a liberdade de Abril em bicicleta para todos nós é o mais reconfortante raio de sol que me entra janela a dentro...

Animals: Chick, Worm and Fish

Colores de abril

Ajoelha-te perante o momento presente

«Ajoelha-te perante momento presente» era a frase principal dum filme que hoje vi e foi arrasado pela crítica. 
É o mesmo que o «Carpe Diem» latino e do «Dead Poets Society», revestido dum tom cavaleiresco em que se presta homenagem ao viver o momento, entendê-lo, senti-lo. 
Longe de ser Quixotesco, acho que entendo esta necessidade de genuflexão, talvez pelos sonhos em que sou um cavaleiro andante à procura do palácio da Ventura. Eu, que não sou deserdado, nem vagabundo, para além dumas portas d`oiro inventadas para que o nada nos possua. Sou teimoso e ajoelho-me só para tocar a terra, mesmo que seja em silêncio e imerso em escuridão. Sou eu o nada, mas a terra ajuda-me a sentir porque o sou.

Amor de cadeado

Quem pensa que o amor se eterniza num cadeado, com a chave atirada ao rio, ainda nunca teve de passar por uma ponte em ruínas. 

sábado, abril 01, 2017

Uma desarrumação no cabelo (Gonçalo M. Tavares)




Uma desarrumação no cabelo

Havia uma desarrumação no cabelo, se tinha
calções eles caíam; puxava-os para cima, não
me penteava.
Se alguma trégua fiz com a infância foi esta:
ainda não uso pente, os calções são calças,
mas continuam a cair. Por delicadeza,
puxo-as para cima.

Gonçalo M. Tavares