quinta-feira, agosto 30, 2018

Centaura (José Paulo Paes)

Fotografia de Annette Konnings



CENTAURA

A moça de bicicleta
parece estar correndo
sobre um chão de nuvens.

A mecânica ardilosa
dos pedais multiplica
suas pernas de bronze.

O guidão lhe reúne
num só gesto redondo
quatro braços.

O selim trava com ela
um íntimo diálogo
de côncavos e convexos.

Em revide aos dois seios
em riste, o vento desfaz
os cabelos da moça

numa esteira de barco
– um barco chamado
Desejo onde, passageiros

de impossível viagem,
vão todos os olhos
das ruas por que passa.

José Paulo Paes

(Taquaritinga, São Paulo, 1926 – São Paulo, 1998)




segunda-feira, agosto 27, 2018

Tempo de semáforo

Fomos ao supermercado a pé, como gostaríamos de fazer mais vezes. De casa até lá não é longe e é bom esticar as pernas à sombra dos loendros.
A caminho temos de atravessar uma estrada que leva a uma localidade conhecida e contam-se três passadeiras até à superfície comercial. É normal esperarmos pelo verde para atravessarmos tranquilamente (falho muito, atravesso por vezes com o vermelho, assumo o erro, mas tento dar o exemplo correcto aos meus filhos).
Os sete anos do mais velho levam-no a observar e a questionar tudo. É um puto curioso e isso faz de mim um pai orgulhoso. Pergunta-me então por que motivo o semáforo verde para os peões dura muitíssimo menos tempo do que o verde para a rodovia.
Fui rápido e honesto na minha resposta. Não pensei que o garoto tivesse apenas na segunda classe e que talvez não tivesse experiência de vida a ampará-lo. Disse-lhe que vivemos numa sociedade que privilegia o carro, e o espaço que o mesmo ocupa, ao invés de privilegiar o ser humano que vai pagar cada vez mais caro a sua taxa de ocupação no planeta Terra. A pé, com o saco das compras dentro do bolso lateral dos calções, tenho a certeza que me entendeu...

quinta-feira, agosto 23, 2018

Dois poemas de Manuel Bandeira



Dois poemas do livro Libertinagem (1930), de Manuel Bandeira.


PNEUMOTÓRAX

Febre, hemoptise, dispnéia e suores noturnos.
A vida inteira que podia ter sido e que não foi.
Tosse, tosse, tosse.

Mandou chamar o médico:
- Diga trinta e três.
- Trinta e três… trinta e três… trinta e três…
- Respire.

- O senhor tem uma escavação no pulmão esquerdo e o pulmão direito infiltrado.
- Então, doutor, não é possível tentar o pneumotórax?
- Não. A única coisa a fazer é tocar um tango argentino.

Manuel Bandeira
(Recife, 19 de abril de 1886 — Rio de Janeiro, 13 de outubro de 1968)



POÉTICA

Estou farto do lirismo comedido
Do lirismo bem comportado
Do lirismo funcionário público com livro de ponto expediente
protocolo e manifestações de apreço ao sr. diretor

Estou farto do lirismo que pára e vai averiguar no dicionário
o cunho vernáculo de um vocábulo

Abaixo os puristas
Todas as palavras sobretudo os barbarismos universais
Todas as construções sobretudo as sintaxes de exceção
Todos os ritmos sobretudo os inumeráveis

Estou farto do lirismo namorador
Político
Raquítico
Sifilítico
De todo lirismo que capitula ao que quer que seja fora de si mesmo.

De resto nã é lirismo
Será contabilidade tabela de co-senos secretário do amante exemplar
com cem modelos de cartas e as diferentes maneiras de
agradar às mulheres, etc.

Quero antes o lirismo dos loucos
O lirismo dos bêbados
O lirismo difícil e pungente dos bêbados
O lirismo dos clowns de Shakespeare

- Não quero mais saber do lirismo que não é libertação.






domingo, agosto 19, 2018

Pascoaes - "O que tenho escrito em verso (mocidade)..."


O que tenho escrito em verso (mocidade), e em prosa (velhice) representa pouco, bem o sei, neste meio tão exigente e português! Um grilo que tem fome de elefante!

Teixeira de Pascoaes


Aforismos (Teixeira de Pascoaes). Selecção e organização de Mário Cesariny. Assírio & Alvim, 1998.





terça-feira, agosto 14, 2018

Da Foz a Samora uma hora e 120€

Resumo: da Foz do Arelho a Samora Correia uma hora e 120€ de multa. Para além do título/resumo desta entrada de diário poderia ser o titular jornalístico do meu dia. Como vários periódicos folheiam-se, lê-se algumas letras gordas e pára a atenção nuns quantos artigos. Assim foi o meu dia.
Ontem chegámos à Foz, à varanda para o Atlântico que a amizade do Jorge nos tem possibilitado contemplar nos últimos Agostos. Aqui tenho descansado, respirado a um ritmo desacelerado, lido, pensado e escrito. Aqui terminei o meu segundo livro, alinhavei o primeiro e concebemos uma vida. Chegar à Foz é chegar ao Verão de me assumir como quem vai criando palavras e filhos com o carro carregado de um ano de bagagens desarrumadas, mas com o essencial para deixar para trás casa e trabalho.
Porém, hoje a neblina matinal fez-nos planear o resto do dia afastados da costa, numa breve incursão à lezíria em busca de soluções de abrigo (para «aCourela», esse sonho de amendoeiras floridas, no nosso Alentejo encostado a Espanha) em Samora Correia.
A caminho, com a atenção redobrada pelo desconhecimento das estradas nacionais, a par das cantorias e discussões infantis do banco traseiro (prévias à sesta de «cu tremido»), uma recta solitária, visível e aparentemente afastada do movimento do trânsito local, convidou-me a manter a velocidade do odómetro próxima do límite permitido por lei a 83km/h. À frente, de bota alta como a antiga cavalaria e colete fluorescente, um militar da GNR ordena-me parar à sua esquerda, à sombra, num acesso secundário, de árvores cuja espécie não pude reparar.
Os documentos foram solicitados, condutor e viatura identificados, residência fiscal confirmada, tudo em ordem no veículo, no porta-luvas e na consciência de quem ia ao volante, quando o agente da brigada de trânsito, educadíssimo com a sua pêra que não escondia a cicatriz sobre o lábio, pergunta:
- O Sr. Luis sabe porque é que o mandámos parar?
Por momentos, pensei em algum inquérito, estatística ou acção de prevenção, mas respondi negativamente.
- O Sr. não reparou mas passou dentro de uma localidade onde, como a placa, que não deve ter reparado, indica deve circular a 50km/h e o nosso radar detectou-o a circular a 83km/h, o que corresponde a uma coima de 120euros.
Continuou indicando-me a forma de pagamento «in loco», graças a terminal de multibanco, ou a apreensão da carta de condução até tal valor ser abonado, etc, etc.
Saí da viatura e enfatizei a alegria da surpresa. Paguei a coima sem problemas com o «tpa sem contrato» habitual, nota-se que a GNR está acostumada a Mastercards, Visas e American Express estrangeiros, e dirigi-me ao outro agente, o qual me redigiu em triplicado o auto de contraordenação, dizendo-lhe que estava bastante surpreendido  pois não tenho o pé pesado e me preocupo com a segurança de quem levo dentro e com quem anda fora do meu carro. O homem, antes de me desejar, dentro do que esta desagradável surpresa me afectou negativamente a conta bancária, um resto de bom dia, confessou-me que o Comando os punha ali, de vez em quando, para satisfazer as queixas da população de excesso de velocidade, deixando assim cair uma ideia de caça à multa e não prevenção ou presença dissuasória de infrações.
Nos cincos minutos que ali estive a ser multado, vi pouco trânsito mas assisti a outra contraordenação e à paragem de uma senhora, de cinquenta ou sessenta anos, ao volante de um pequeno WV Up branco, aos mesmos 83km/h fatídicos que este delinquente rodoviário agora a redimir-se no papel.
Voltei para o carro e arranquei com a indignação da Elsa e com o silêncio da sesta dos meus filhos. Estava fodido, mas resignado em estupefação. Tínhamos menos 120€ e tínhamos optado pelas estradas nacionais para pouparmos em portagens. Pensei em como conduzo. Pensei na minha bicicleta. Pensei na arbitrariedade daquela operação. Pensei no destino daquela curta deslocação e no destino do qual desconfio. Pensei que era injusto. Pensei em argumentos. E pensei que o melhor era continuar, lembrar-me de que há sanções das quais nada se aprende para além disso mesmo.
Numa recta e em cinco minutos, as arcas públicas portuguesas amealharam 240€. Possivelmente para pagar gastos prioritários, como o do combustível do carro da brigada, parado ao relantim e com o A/C ligado. Eu e os meus seguimos viagem. Vimos e sonhámos com uma futura construção no nosso terreno, com uma varanda para a planície para podermos partilhar com o Jorge e os seus em agradecimento por este horizonte azul agora a assomar-se aos meus ouvidos.
Voltámos já ao final do dia e preferimos pagar portagens: 2'80€. Jamais a agulha ultrapassou os 120, mas vá-se lá saber onde estará o próximo radar a apanhar-me... espero que não seja tão depressa. É possível começar a gostar desta sensação de proscrito e abraçar o outro lado da lei. Justiça far-se-ia, de certeza, os meus diários seriam mais emocionantes do que estes que para aqui vou amontoando.

«Shalako» - Brigitte Bardot

domingo, agosto 12, 2018

«O passado não vem como um todo. Vem sempre em partes.» - Sam Shepard (in "Espião na Primeira Pessoa")

Hoje faria 111 anos...

Os mestres Jorge Neto e João Reis celebram a sua vida no mesmo dia que o mestre Miguel Torga. Hoje faria 111 anos. Continua connosco.
Eu celebro este dia com a estima da amizade e da admiração.

Birds Guesthouse...

«a musa habituada à rotina do poeta, afasta-o do fogo da paixão, mas fá-lo encontrar versos no avental e na comida que não pode deixar queimar no fogão»

En el día que empecé a escribir en español...

En el día que empecé a escribir en español dejé de tener una única patria. Mis idiomas se fundieron en una península, cuyo amor por el inglés la agarraba al resto del mundo.

sábado, agosto 11, 2018

«O poeta» por José Sesinando

«O poeta é um rabujador
Que pega o touro pelos cornos»

José Sesinando

Crónica: "O Bom Rebelde" de Luis Leal (in "Mais Alentejo" nº144, p.64)

Caríssimo leitor, permita-me engatá-lo à maneira desse engate da 7ª arte, que, afinal, revelou ser mais que galanteio interpretado por Ben Affleck e Matt Damon, então jovens guionistas e protagonistas desconhecidos desse Good Will Hunting. Estes dois, apesar de reconhecidos em Hollywood, conhecem bem a arrogância do meio, tal como a crítica incapaz de conceber palminhos de cara alojarem belos cérebros ou ser-se loiro ou moreno nada tem a ver com burrice. Enfim, escreve-o um tipo de cabelo castanho claro, portanto vale o que vale.

Resumindo, a cena decorre num bar repleto de estudantes de Harvard e do MIT, no qual um grupo de jovens intrusos, oriundos duma zona pobre de Boston, decide ir para os copos e cortejar as universitárias da área. A personagem de Affleck, para meter conversa com uma moça atractiva ao balcão, diz-lhe que ambos vão à mesma aula de história. Quase em simultâneo, outro jovem, claramente o protótipo estudante de classe média/alta, intromete-se na conversa ao perguntar que aula de história frequenta. Pergunta-lhe ainda, para desmascarar esse pseudo-estudante, de fato de treino fatela, qual a sua opinião sobre a evolução do mercado nas economias das colónias do Sul no século XVIII. Em KO intelectual, Affleck é socorrido pelo amigo de sempre, o indomável Will Hunting (interpretado pelo amigo de sempre na vida real, Matt Dammon). Will, de t-shirt rota e sobrolho aberto numa briga cenas antes, enuncia teorias económicas e cita autores, sem esquecer a referência bibliográfica, número de página e tudo, para evitar plágios. Termina com um argumento tipo uppercut dum Mike Tyson em início de carreira, levando ao tapete o seu contrincante:

Tens ideias próprias ou isto é só para impressionar uma rapariga e humilhar o meu amigo? Triste é, um gajo como tu, daqui a 50 anos, começar a pensar com a própria cabeça e ter apenas duas certezas: primeira, isto não se faz e, segunda, gastaste 150.000 dólares numa merda de educação que poderias ter adquirido por 1’50 dólares na biblioteca pública.

Neste clímax de justiça quase poética, o outro não se deu por vencido, replicando o que à simples vista poderia parecer um golpe baixo, porém plenamente aceite pelas regras da sociedade:

Mas vou ter um curso (“ser doutor”, à portuguesa) e tu vais servir batatas fritas num restaurante “fast food” aos meus filhos quando formos esquiar.

O bom lutador sabe encaixar todo o tipo de golpe e Will fê-lo com um hipotético talvez, mas pelo menos serei original, encaminhando os pressupostos do debate para fora do bar, onde, cara a cara, não há estudos, nem origem social, que valham a quem resolve andar à porrada.

A cena termina com a cobardia da classe média/alta norte-americana? Não sei, só sei que o poder dominante americano não suja as mãos, paga para lhe fazerem o trabalho sujo. 

Sem dúvida, é um dos meus filmes de eleição. Não por esta cena ou pelas personagens de Matt e de Ben. Sim por um inesquecível Robin Williams, esse Pagliacci que tanto inspirou e fez rir, enquanto, por dentro, lutava contra o veneno da depressão.

Hoje, voltei a esta cena ao olhar para o trajecto de vida de tantos como eu, filhos duma geração que nos possibilitou estudar, e, também, para o provável percurso estudantil dos nossos filhos. Vejo portas fechadas, igualdade de oportunidades manipuladas por oportunismo. Vejo os degraus esfregados pelos mesmos e apenas alguns terem acesso exclusivo à escada. Vejo imobilismo social camuflado numa selva de empreendedorismo multitask.

Will Hunting era um génio matemático nascido numa zona carenciada. A generosidade dos seus pares levou-o do Southie para fora. Não o altruísmo dos académicos, divididos entre a tentação de dissecar ou invejar o jovem prodígio. 

Triste é ver o honesto estudo, esperança dos nossos pais em proporcionar-nos uma vida melhor, em total descrédito. Não chega pagar propinas e ir estudar para a biblioteca. O dinheiro termina licenciaturas ao domingo, faz cadeiras sem pôr o traseiro nas cadeiras da universidade, homologa seminários de 3 ou 4 semanas em pós-graduações de Georgetown ou obtém mestrados invisibilis causa. Mas isso é outra cena, argumento de má qualidade, interpretada por Sócrates, Relvas, Casado e Cifuentes, cujo nome é O Bom Viver de Expediente.   


Crónica: "O Bom Rebelde" de Luis Leal (in "Mais Alentejo" nº144, p.64)

Há quatro anos que o Robin Williams nos deixou. Este ano tem estado muito presente em muito do que tenho feito e escrito...

Crónica: "O Bom Rebelde" de Luis Leal (in "Mais Alentejo" nº144, p.64)



sábado, agosto 04, 2018

As nossas bicicletas alugadas a mais de quarenta graus... (Sevilha, 3/VIII/2018)

Debaixo da bicicleta do meu filho... um «mistério sagrado da existência»...

Hoje, debaixo da bicicleta do meu filho mais velho (alugada na Plaza de Hércules em Sevilha), assistimos a este gesto. Fotografei-o emocionado a lembrar-me do velho Padre Eterno e do «Melro» da sua velhice, lido em voz alta na minha juventude:
"(...) Tudo o que vive ri e canta e chora...
Tudo foi feito com o mesmo lodo,
Purificado com a mesma aurora.
Ó mistério sagrado da existência,
Só hoje te adivinho,
Ao ver que a alma tem a mesma essência
Pela dor, pelo amor, pela inocência,
Quer guarde um berço, quer proteja um ninho!
Só hoje sei que em toda a criatura,
Desde a mais bela até à mais impura,
Ou n'uma pomba ou n'uma fera brava,
Deus habita, Deus sonha, Deus murmura!..."
Guerra Junqueiro