sábado, novembro 30, 2013

Do blogue 'Bianda'


Ó Luís, de um blogue feito em Cabo Verde: se calhar dá para acrescentares a esse teu trabalho dos palavrões, esse work in progress:


Filhos Radicais (Pais segurando firme)

Naia: Pai, hoje começamos a aprender os ordinais: sexagésimo, septuagésimo, octogésimo..
Eu: Uau, consegues até dizer essas palavras todas de enfiada!...
Naia: É, a professora disse que são palavrões, mas palavrões que podemos dizer - tratou de pontuar.
Eu (com súbito interesse): Ah é? E que palavrões que não podem dizer?
Naia: Mas não posso dizer!!..Mas tu dizes, papá, quando estás chateado..Dizes muito um que começa com P e termina com A.
Eu: Ah é, digo tanto assim? Hmm...E que outros conheces?
Naia (com um sorrisão): conheço um que está em "computador"
AHAHAHAHAHAH (Saiu-me uma gargalhada dessas do fundo do poço!)
Eu (com acrescentado interesse): Que mais?
Naia: Tem um que começa com M e termina com A
Eu (apavorado com a direção da conversa / mantendo a pose de cool)
Naia:...Acho que só conheço esses 3... (ela deve ter lido uma prisão de ventre repentina na minha cara e saiu com esse tranquilizante)
Eu (fingindo autoridade): Mas diz-me, onde se aprende isso tudo?
Naia: Ora, os meus colegas dizem palavrões a toda hora!..(a safadinha se safou)


Blogue Bianda (pub. 13.11.13)




sexta-feira, novembro 22, 2013

O rapaz da camisola verde (Pedro Homem de Mello)



 Poema de Pedro Homem de Mello cantado por Sérgio Godinho.


O rapaz da camisola verde

De mãos nos bolso e de olhar distante,
Jeito de marinheiro ou de soldado,
Era um rapaz de camisola verde,
Negra madeixa ao vento,
Boina maruja ao lado.

Perguntei-lhe quem era e ele me disse
“Sou do monte, Senhor, e um seu criado”.
Pobre rapaz de camisola verde,
Negra madeixa ao vento,
Boina maruja ao lado.

Porque me assaltam turvos pensamentos?
Na minha frente estava um condenado.
Vai-te, rapaz da camisola verde,
Negra madeixa ao vento,
Boina maruja ao lado.

Ouvindo-me, quedou-se o bravo moço,
Indiferente à raiva do meu brado,
E ali ficou de camisola verde,
Negra madeixa ao vento,
Boina maruja ao lado.

Soube depois ali que se perdera
Esse que só eu pudera ter salvado.
Ai do rapaz da camisola verde,
Negra madeixa ao vento,
Boina maruja ao lado.

Ai do rapaz da camisola verde,
Negra madeixa ao vento,
Boina maruja ao lado.
Negra madeixa ao vento,
Boina maruja ao lado.


Pedro Homem de Melo



(Mais dados em Santa Nostalgia)





segunda-feira, novembro 18, 2013

Auto-retrato (Alexandre O'Neill)



Depois de reler mais uma vez o auto-retrato do grande Bocage, venha cá o auto-retrato do grande Alexandre O'Neill:


AUTO-RETRATO

"O'Neill (Alexandre), moreno português,
cabelo asa de corvo; da angustia da cara,
nariguete que sobrepuja de través
a ferida desdenhosa e não cicatrizada.
Se a visagem de tal sujeito é o que vês
(omite-se o olho triste e a testa iluminada)
o retrato moral também tem os seus quês
(aqui, uma pequena frase censurada …)
No amor? No amor crê (ou não fosse ele O'Neill)
e tem a veleidade de o saber fazer
(pois amor não há feito) das maneiras mil
que são a semovente estátua do prazer.
Mas sofre de ternura, bebe de mais e ri-se
do que neste soneto sobre si mesmo disse ..."




quarta-feira, novembro 13, 2013

Segundo balcão dos bombeiros (Fernando Assis Pacheco)


SEGUNDO BALCÃO DOS BOMBEIROS

Nesse tempo eu já lera as Brontë mas
como era um adolescente retardado
passava a noite em atrozes dilemas
que mais vale: amar, ser doutrem amado?

ainda não descobrira o simples disto
nem o essencial disto que é tão claro
se tudo no amor vem do imprevisto
deitar regras ao jogo pode sair caro

por isso eu amo e sou ou não benquisto
depende do instante bem ou mal azado
amor tem alegria, tem enfaro
o happy end é coisa dos cinemas

Fernando Assis Pacheco

(Em Arlindo Correia)


domingo, novembro 10, 2013

Ofício de amar (Al Berto)



OFÍCIO DE AMAR

já não necessito de ti
tenho a companhia nocturna dos animais e a peste
tenho o grão doente das cidades erguidas no princípio
de outras galáxias, e o remorso

um dia pressenti a música estelar das pedras
abandonei-me ao silencio.....
é lentíssimo este amor progredindo com o bater do coração
não, não preciso mais de mim
possuo a doença dos espaços incomensuráveis
e os secretos poços dos nómadas

ascendo ao conhecimento pleno do meu deserto
deixei de estar disponível, perdoa-me
se cultivo regularmente a saudade do meu próprio corpo

Al Berto





quarta-feira, novembro 06, 2013

LISBOA-1971 (Jorge de Sena)













LISBOA-1971


O chofer de taxi queixava-se da vida.
Ganha 400$00 por semana, o patrão conta
que ele se arranje do a mais com as gorjetas.
Os meus amigos morrem de cancro,
de tédio, de páginas literárias,
vi um rapaz sem as duas mãos que perdeu
na guerra (e o ortopedista ria-se de que ele
só queria por enquanto «calçar» uma das
que, artificiais, lhe preparou tão róseas).
As pessoas esperam com raiva surda e muita paciência
o autocarro, aumento de ordenado, a chegada
do Paracleto, bolsas de sopa do convento.
Mas o chófer de taxi contou-me que
discutira com um asno e lhe dissera:
«...V. que nesse tempo andava a fugir
de colhão para colhão de seu pai
para ver se escapava a ser filho da puta...»
E é isto: andam de colhão para colhão
a ver se escapam – e muitos não escapam.
E os outros não escapam aos que não escaparam.

Lisboa, 5 Agosto 1971

segunda-feira, novembro 04, 2013

quinta-feira, outubro 31, 2013

no dia de todos os mortos

(por quem não me esqueci)

inteiriço e frio nasce o sol no dia de todos os mortos.
com um caminhar apagado
passo.
o vendedor arruma consolador
cada flor na bancada
(ordenada pelas mais tristes sortes)
margaridas, crisântemos, cravos, lírios
plantas canónicas sem santa sé.
umas outras tantas, pagãs, que não perecem.
plástico que impede o pranto das velas
e o solidificar das lágrimas,
como as salientes veias das mãos de quem as acende.
passo
à frente de gente que vela finados
e a porta do cemitério (sempre aberta) fechada a cadeados.
Eu passo.
(horário das oito às dezasseis, exceto feriados).
o olhar do vendedor e o meu cumprimentam-se num atalho
(conhecemo-nos e os nossos olhares também)
nunca lhe comprei nenhuma flor,
(para a dor tenho um jardim secreto)
e eu passo comigo oculto em reminiscências.
minhas.
dos meus.
dos que não me serão omitidos.
(já eu não sei se terei flores de época ou de molde perene de poliuretano
- hoje por hoje não quero- amanhã quem sabe?)
afasto-me, mas passo.
deixo os primeiros bafos a cristalizarem o ar
na breve chegada de mais um inverno.
passo e aparto-me do constrangimento da memória
aproveito a porta aberta aos cadeados do corpo
e a entreaberta janela curiosa do espírito.
vou fugindo enquanto posso.


MMXIII

segunda-feira, outubro 28, 2013

Maria dos mil sorrisos (Vitorino)



Havia muitos anos que não escutava esta beleza do amigo Vitorino. Dei por acaso com ela e que saudades, meu amigo!


MARIA DOS MIL SORRISOS

Maria dos mil sorrisos
Alma ao largo sem avisos
Coração a dar a dar

Lua nova em céu mortiço
te proteja do enguiço
e das fúrias d´além mar

Na rua onde tu passas
Mandei embora as desgraças
Num copinho de licor

No mistério da tua porta
encontrei morada certa
P´ra dar de beber à dor

Se me deres o teu retrato
Dou-te o meu lenço bordado
Com a flor do laranjal

Anda agora muito em moda
Trança negra rubra rosa
Rebuçados no amar

Maria não vás ao beco
Está cheio de figas e medos
Vê lá bem os meus cuidados

Dos teus olhos estou lembrado
Num dia no Bairro Alto
Seus amores tão delicados



domingo, outubro 27, 2013

.o voraz mercado

o voraz mercado
é um substantivo, insubstancial e selvagem,
pelos mortais concebido
a quem muita gente não lhe interessa que seja domado.

não é um cataclismo natural,
nem divina vontade.
é apenas plutocracia circunstancial,
capitalismo anti-social
sem senso comum,
apenas ânimo de numérico resultado,
para tragédia do necessitado
e abundância na algibeira que enche
de gente inconsciente que
num mundo onde não caiam umas migalhas para o pobre,
não há condomínio fechado que os aliene do cheiro a podre.

o metano é um gás que não tem nada a perder.
da imoral flatulência e verborreia a que se está habituado
brota a violência e o caos indiscriminado.
por isso, desacautelado mercado,

cuidado.

à parede encostada a puta segura um intervalo

à parede encostada a puta segura um intervalo, contado em milésimos de fios de tabaco consumido enrolado em anéis queimados de papel a cada cilíndrica passa.

entre lábios secos de amor o cigarro esvai-se em ofegar cansado lunar  e em saliva de ladrilho com restos de esperma sem nome.

antevê-se de perfil a lingerie de uma lua solitária que apenas o deixa de ser quando alguém que passa,
paga. 


Lienzo de Isabel Diaz Gómez - “naipe o mujer fumando” -1975

quinta-feira, outubro 24, 2013

My first umbrella...


A verdadeira justiça, divina ou cega, segue o imprimir linear do extrato bancário, logo não se pesa na balança.

Para ti Wang Wei


Apresentação da Noite - Al Berto

Deixei o MEDO para o dia e apresentaste-me a noite. Falamos com a ponta dos dedos. Não sei se sou teu. Não o seberás tu?


O que descobri aos 33? O meu complemento circunstancial de estupidez.

Mata-me

Mata-me com o teu sorriso,
certo e luzidio.
Mata-me com o teu olhar,
terno e profundo.
Mata-me com o teu perfume,
doce e mordaz.
Mata-me com o teu amor
que me põe louco
e pouco a pouco
meto a tua corda
em volta do meu pescoço.


1996 
(Para uma aula qualquer em que tive coragem de ler algo adolescente por mim escrito. Se bem me lembro para a aula do meu professor Manuel Piçarra, mas não me lembro em que pensava quando o escrevi… ou em quem pensava. Talvez em ninguém em especial, ou não. A adolescência tem dessas coisas. )

quarta-feira, outubro 23, 2013

Elegía a la fotografía de una muchacha desconocida (José María Valverde)



Elegía a la fotografía de una muchacha desconocida

Tendrías quince años cuando quedaste inmóvil
aquí, en la cartulina de suavísima niebla.

Te vuelves a mirarnos -con unos ojos negros,
dulces, hondos y frescos como grutas-
desde el escorzo grácil de tu cuerpo.
Dime, ¿de dónde viene tu mirada?
Habla de cosas dulces y pequeñas,
de tu vida, tu casa,
tu piso, bosque umbroso de sueños y recuerdos,
-tú eres la cierva blanca en su espesura-,
el balcón donde ves pasar las nubes,
los viejos y borrosos retratos de la sala,
las butacas de verde terciopelo gastado,
el piano, negro, mudo, con ecos, -como un pozo-,
y el bullir y las voces, apagadas
y vagas, de la sombra en los rincones...
(¡Ay tus sueños de niña!
¡Cómo están en el fondo de tus ojos
muriendo dulcemente!
Estrenabas la vida;
aquel día morías y nacías.
Y aquí, en este retrato,
frente al blanco camino,
dejaste tu niñez en la mirada.)
Esa luz que ha quedado contigo prisionera
en tu clara laguna,
es la luz que conservan
las cosas de la abuela puestas en la vitrina.

Ya te habrás olvidado. ¡Qué muerta estás aquí!
¿Dónde estarás ahora?
...Días, calles, olvidos, amores y tristezas,
relojes, calendarios, trajes, cuerpos, ventanas,
tejas, lluvias, tarjetas, zapatos ya gastados,
tranvías, ruedas, nubes, sueños, tardes, mañanas,
inviernos y veranos, rosas secas, revistas,
muertos, libros, silencios, músicas, risas, llantos,
arroyos y caminos, montañas, bosques, mares,
y un montón de minutos iguales como arenas
me separan de ti.
Pero en mi orilla queda tu retrato olvidado.

...Tendrías quince años. Yo, entonces, estaría
paseando mis sueños de niño no sé dónde.
¿Dónde estarás ahora?
Oh muchahca lejana que quizá hubiera amado
de no ser por el tiempo, el tiempo... siempre el tiempo...

José María Valverde

Publicada por primera vez en «Entregas de Poesía» n° 14, 1945

Más poemas de Valverde.

segunda-feira, outubro 21, 2013

ORACIÓN POR NOSOTROS LOS POETAS - José Maria Valverde

Poeta y traductor extremeño José María Valverde (1926-1996), destaca en su obra su profundo humanismo de raíz cristiana y el rigor de su lenguaje poético, para mí de incomparable belleza con ecos de clasicismo poco ortodoxo. 
Un buen hallazgo en las ironías de la vida y en los fondos de la biblioteca de mi centro. Su oración hace parte del catecismo de mi religión. 
ORACIÓN POR NOSOTROS LOS POETAS
Señor, ¿qué nos darás en premio a los poetas?
Mira, nada tenemos, ni aun nuestra propia vida;
somos los mensajeros de algo que no entendemos.
Nuestro cuerpo lo quema una llama celeste;
si miramos, es sólo para verterlo en voz.
No podemos coger ni la flor de un vallado
para que sea nuestra y nada más que nuestra,
ni tendernos tranquilos en medio de las cosas,
sin pensar, a gozarlas en su presencia sólo.
Nunca sabremos cómo son de verdad las tardes,
libre de nuestra angustia su desnuda belleza;
jamás conoceremos lo que es una mujer
en sus profundos bosques donde hay que entrar callado.
Tú no nos das el mundo para que lo gocemos,
Tú nos lo entregas para que lo hagamos palabra.
Y después que la tierra tiene voz por nosotros
nos quedamos sin ella, con sólo el alma grande…
Ya ves que por nosotros es sonora la vida,
igual que por las piedras lo es el cristal del río.
Tú no has hecho tu obra para hundirla en silencio,
en el silencio huyente de la gente afanosa;
para vivirla sólo, sin pararse a mirarla…
Por eso nos has puesto a un lado del camino
con el único oficio de gritar asombrados.
En nosotros descansa la prisa de los hombres.
Porque, si no existiéramos, ¿para qué tantas cosas
inútiles y bellas como Dios ha creado,
tantos ocasos rojos, y tanto árbol sin fruta,
y tanta flor, y tanto pájaro vagabundo?
Solamente nosotros sentimos tu regalo
y te lo agradecemos en éxtasis de gritos.
Tú sonríes, Señor, sintiéndote pagado
con nuestro aplastamiento de asombro y maravilla.
Esto que nos exalta sólo puede ser tuyo.
Sólo quien nos ha hecho puede así destruirnos
en brazos de una llama tan cruel y magnífica.
… Tú que cuidas los pájaros que dicen tu mensaje,
guarda en la muerte nuestros cansados corazones;
dales paz, esa paz que en vida les negaste,
bórrales el doliente pensamiento sin tregua.
Tú nos darás en Ti el Todo que buscamos;
nos darás a nosotros mismos, pues te tendremos
para nosotros solos, y no para cantarte.
Hombre de Dios, 1945.

domingo, outubro 20, 2013

De repente acordas

De repente acordas
E um filho salta-te para a cama.

De repente assentes
O absurdo nascer do dia a galgar
Entre lençóis, sonhos e despertares recentes.

De repente sentes,
Num qualquer domingo,
Que, no mundo, curiosamente,
Pudeste ter um descendente.

De repente, olha-lo de frente,
Paralelo a ti, no ar esticado dos teus braços os primeiros quilos de sorrisos
A aprenderam sílabas, e depois, palavras que tudo poderão abortar
Se um dia quiserem adivinhar que:
“De repente se acorda e um filho nos salta para a cama”.
20/X/2013

Aprende a não esperar muito por ti, pois nem sempre chegarás a horas.

O Irreal Quotidiano (José Gomes Ferreira)

"Na semana passada, certo inglês, de passagem por Lisboa, quase me implorou, farto do Idêntico em toda a parte:

— Mostre-me qualquer coisa que não exista noutro país. Há?

Meditei meio segundo e respondi, telegráfico:

— Há. «Cabarets».

O senhor estrangeiro encolheu os ombros em trejeito de desdém. Mas eu teimei:

— Sim. «Cabarets» …«Cabarets» estranhos, ao contrário, de pernas para o ar, sem «jazz» nem pretos de dentes brancos a soprarem gargalhadas nos saxofones. «Cabarets» … do avesso em que não se encontram mulheres de riso fatal a dançarem ao som macabro do estalar das rolhas das garrafas de champanhe. Autênticas Casas de Sofrer – onde se servem indigestões de mariscos e bebidas tristíssimas – construídas de propósito para pessoas, com fumos de luto nas mangas, que pretendem chorar em público sem medo do ridículo. «Cabarets» – válvulas-de-escape, em suma…Venha comigo e verá.

Tomámos um táxi, descemos uma viela sonâmbula, abrimos a porta de vidro em frente e pisámos com reverência o veludo do tapete de cascas de tremoços do Salão de Fados em que duas dezenas de seres, palidamente diluídos no rumor das vozes em surdina, se preparavam para sofrer em comum.

Ambiente de bicos de pés. Os criados deslizavam, irreais, com sapatos fantasmas, para não perturbarem a dor dos clientes que, de cabeça pesada entre as mãos, parafusavam neste tema de meditação irresolúvel: «A vida é uma chatice!» (…)

Ia começar a função. No estrado alinhavam-se duas cadeiras à espera do viola e do guitarrista que entraram pouco depois em ritmo de enterro. O cantor também não tardou a surgir no catafalco, mancha negra dos cabelos até aos sapatos, solenidade de telegrama de pêsames, lívido, suado, sinceramente infeliz, cara de serenata à meia-noite a noivas mortas…

Houve um sussurro espectral. Os ouvintes ajeitaram-se o melhor possível nos assentos para sofrerem com comodidade".





domingo, outubro 13, 2013

A ti, José Maria Valverde

Para ti os poetas eram sacerdotes da palavra,
Almas a jeito que Deus as escolhesse a dedo,
Para viverem o purgatório na terra,
O purgatório no purgatório
E o inferno na alma...

Tudo porque, José Maria,
Homem de Deus, da santíssima trindade e da tua e sua mãe,
Existe a beleza e o coração do poeta, ao contráriomdo que canta a canção,
É pequeno e almeja guardar a beleza como outro qualquer coração.

Não existe nada de santo nisso. Apenas falta de espaço.
O poeta tem um mini, um citadino e o homem alheio a verso, rimas e compassos
Tem uma enorme mala que dá perfeitamente para trazer as compras do mês e ainda levar a bicicleta no tejadilho.
Essa, José Maria, da terra nossa comum, é "la enseñanza de la edad".

Passagem por sublinhar, sublimar.

Passei pela vida sem usar bloco de notas.
Nunca tive um instante de instantânea,
Nem obturei momentos kodak, polaroid, agfa ou fugi
De ser emoldurado para a posteridade de parede,
Ou da orgulhosa camilha da avó?

Nunca me enrruguei ou amareleci na estante. Amanheci com o sol
Que talvez pudessem ser amarelo fluorescente para sublinhar, sublimar,
Que a vida, tal como o rei dos astros, também tem nascente e poente.

Nunca me dobrei, a não ser a esquina de página,
Para marcar um encontro com um amigo, com um amor,
Com a dor de costas que teima em encurvar-te...
A desumanizar-te com o afã do sucesso da máquina.

Deixei, ao menos, que me metessem recortes de jornais,
Artigos e matérias inúteis que me engordaram como o arroz doce que nunca é demais...
Não estou riscado, ainda tenho o papel pegado, como todo o bom livro que não foi profanado
Mas anda de lado para lado, a presumir deixar algum legado,
Esse sou eu. Fui eu.
Estou enterrado.
Pouco vivi.
Mas abracei
E fui abraçado.

sábado, outubro 12, 2013

Velho Colono (Rui Knopfli)

Parque dos Namorados, em Maputo
 (Fotografia no blogue cabeça no ar ou ar na cabeça)


Velho Colono

Sentado no banco cinzento
entre as alamedas sombreadas do parque.
Ali sentado só, àquela hora da tardinha,
ele e o tempo. O passado certamente,
que o futuro causa arrepios de inquietação.
Pois se tem o ar de ser já tão curto,
o futuro. Sós, ele e o passado,
os dois ali sentados no banco de cimento.

Há pássaros chilreando no arvoredo,
certamente. E, nas sombras mais densas
e frescas, namorados que se beijam
e se acariciam febrilmente. E crianças
rolando na relva e rindo tontamente.

Em redor há todo o mundo e a vida.
Ali está ele, ele e o passado,
sentados os dois no banco de frio cimento.
Ele a sombra e a névoa do olhar.
Ele, a bronquite e o latejar cansado
das artérias. Em volta os beijos húmidos,
as frescas gargalhadas, tintas de Outono
próximo na folhagem e o tempo.

O tempo que cada qual, a seu modo,
vai aproveitando.

Rui Knopfli 



sexta-feira, setembro 27, 2013

Hay que saber, por veces, no hacer nada. Cómic de Paco Roca

Hay que saber, por veces, no hacer nada. Ahora que termina la época estival mi amigo Pedro Cuadrado me trae este cómic de Paco Roca que refleja bien el stress que conlleva parar en una vida tan ajetreada.

quinta-feira, setembro 26, 2013

segunda-feira, setembro 23, 2013

Nos bailes da vida (Milton Nascimento)



Como é bela esta canção do Milton Nascimento. Pertence a um álbum intitulado Caçador de mim.

NOS BAILES DA VIDA

Foi nos bailes da vida ou num bar
Em troca de pão
Que muita gente boa pôs o pé na profissão
De tocar um instrumento e de cantar
Não importando se quem pagou quis ouvir
Foi assim

Cantar era buscar o caminho
Que vai dar no sol
Tenho comigo as lembranças do que eu era
Para cantar nada era longe tudo tão bom
Até a estrada de terra na boléia de caminhão
Era assim

Com a roupa encharcada e a alma
Repleta de chão
Todo artista tem de ir aonde o povo está
Se for assim, assim será
Cantando me disfarço e não me canso
de viver nem de cantar

sábado, setembro 14, 2013

Friedrich Seidenstücker



Primavera do ano 1948. Algures na Alemanha. Uma fotografia de Friedrich Seidenstücker.



segunda-feira, setembro 09, 2013

Luis Cernuda - Donde habite el olvido




DONDE HABITE EL OLVIDO

Donde habite el olvido,
En los vastos jardines sin aurora;
Donde yo sólo sea
Memoria de una piedra sepultada entre ortigas
Sobre la cual el viento escapa a sus insomnios.

Donde mi nombre deje
Al cuerpo que designa en brazos de los siglos,
Donde el deseo no exista.

En esa gran región donde el amor, ángel terrible,
No esconda como acero
En mi pecho su ala,
Sonriendo lleno de gracia aérea mientras crece el tormento.

Allí donde termine este afán que exige un dueño a imagen suya,
Sometiendo a otra vida su vida,
Sin más horizonte que otros ojos frente a frente.

Donde penas y dichas no sean más que nombres,
Cielo y tierra nativos en torno de un recuerdo;
Donde al fin quede libre sin saberlo yo mismo,
Disuelto en niebla, ausencia,
Ausencia leve como carne de niño.

Allá, allá lejos;
Donde habite el olvido.

Luis Cernuda 


(Los placeres prohibidos, 1931)





sexta-feira, setembro 06, 2013

Lá na arrecadação, bem guardado, estava isto...

Nos últimos meses tenho encontrado, na casa dos meus pais e na minha arrecadação, alguns brinquedos que decidi passar para "as mãos" do meu filho de dois anos.
Eu tinha a sensação de que era proprietário de muitos brinquedos, e na realidade até era (nunca me faltaram brinquedos e como criança até os estimava e usava muito), mas comparando com os exemplos dos últimos anos (principalmente os que precederam esta crise, da qual parece não sairmos) é um bocado ridículo falar em enormes quantidades... Uma pequena caixa de papelão e esta caixa com a qual sonhei e criei sonhos e aventuras: a minha caixa vermelha de LEGO, que os meus pais me deram num Natal dos anos 80.
Estas são as suas etiquetas:


quinta-feira, setembro 05, 2013

"Começar de Novo" - Ivan Lins e Simone



Começar de Novo - Ivan Lins

"Começar de novo e contar comigo
Vai valer a pena ter amanhecido
Ter me rebelado, ter me debatido
Ter me machucado, ter sobrevivido
Ter virado a mesa, ter me conhecido
Ter virado o barco, ter me socorrido

Começar de novo e só contar comigo
Vai valer a pena ter amanhecido
Sem as tuas garras sempre tão seguras
Sem o teu fantasma, sem tua moldura
Sem tuas escoras, sem o teu domínio
Sem tuas esporas, sem o teu fascínio
Começar de novo e só contar comigo
Vai valer a pena já ter te esquecido
Começar de novo..."

terça-feira, setembro 03, 2013

Não me aluguem o fim do mundo

"Não me aluguem o fim do mundo.
O apocalipse não está para arrendar
Nem o procuro na secção de classificados.

Isso querem os arautos, discípulos astutos
Da Fome, da Guerra, da Peste e da Morte.
O que não contam é com a sorte
Que ainda se vai tendo quando alguém é capaz…
De encontrar no dicionário a palavra audaz.

Não me vendam a depressão.
Para ser triste não é preciso pagar,
Basta com ser ou estar,
E o Xanax não sabe bem com pão.

Não me vendam optimismo.
Não me convertam a ismos,
(Apesar de estar de acordo com que se derrube o templo)
Já é tempo de meditar
E optar por não pagar.
Recusar dívidas impostas por quem não eu não conheço.

Não me vendam o meu nariz.
É grande mas não é grande coisa.
Foi-me dado (e também já foi esmurrado)
Mas é meu!

Não me dêem soluções.
Eu não quero o que é melhor para mim.
Eu quero o que vocês não querem para mim.
- Um hambúrguer com batatas fritas
E um refrigerante original com brinde.

 “Agora, com o seu menu:
«A declaração universal dos direitos humanos»
Escolhe já o teu!”

Não me tragam conforto.
Com taxa de esforço 
Escrito a letras pequenas numa oração a Nossa Senhora da Penhora.
Água? Salgada e privatizada em lágrimas.
E o sol? Desde que nasce é mais para uns do que para outros.

Lucro.
Proveito.
Esse é o vosso jeito,
Nem que levem tudo a eito.

Aqui não me vendem nada.
Em território neurónio  mando eu.
Quero que vocês se fodam.
Eu estou aqui, de tabuleiro na mão,
À espera que me atendam".
Agosto de 2013



Intenta meditar mientras caminas

"Intenta meditar mientras caminas. Limítate a andar mirando al suelo y sin mirar a los lados, y abandónate mientras el suelo desfila a tus pies. Las sendas son así: uno se siente flotar en el paraíso shakespeariano de Arden y cree que va a ver ninfas y pastores tocando el caramillo, cuando de repente se encuentra bajo un sol abrasador en un infierno de polvo y espinos y ortigas..., exactamente igual que la vida".
Jack Kerouak in "Los Vagabundos del Dharma" 
(descripciones que hizo después de una escalada a las montñas Cascadia).

Si vas a intentarlo, ve hasta el final

"Si vas a intentarlo, ve hasta el final. 
No hay sensación parecida
Estarás a solas con los dioses
y las noches arderán en llamas...
Llevarás las riendas de la vida hasta
la risa perfecta, es
la única lucha digna que hay".
Charles Bukowsky

segunda-feira, setembro 02, 2013

Ode ao Sonhador

"Que as rugas do pão
E a curiosidade do gato
Desenhem o sorriso da criança.

Que o nervosismo da primeira vez
Faça propaganda a um eterno
Sentimento de idiotice e alimente paixões.

Que o ébrio racional descubra a
Superfície lunar num foguetão parado
À conversa com a senhora da portagem.

Que o comunista se ofereça para coçar costas
E o fascista lhe pague um copo
No bar de petiscos do papista.

Que o cabide seja qualquer casa
De um chapéu solarengo e dançarino
De tangos do Gardel.

Que as folhas por escrever
Sejam campos abertos ao adubar
Do rasto do P-38 de Saint-Exupéry.

Que Esparta faça amor com Tróia
E Aquiles não tenha calcanhar
No possuir heróico de Heitor.

Que a balsa seja o rio 
E o rio seja bálsamo feliz todo ano
E não só no anual Carnaval.

Que a primitiva seja conjunto
De pessoas reais à raiz quadrada
De uma humanidade exacta.

Que tu, eu, o gato, intrometido 
Malabarista, possamos almejar
O ronronar enroscado a uns pés estafados". 

8/XII/2006
À luz do velho aquecedor de varetas.
Para nunca deixarmos de sonhar.

Ode Triunfal - Álvaro de Campos

À dolorosa luz das grandes lâmpadas eléctricas da fábrica 
Tenho febre e escrevo. 
Escrevo rangendo os dentes, fera para a beleza disto, 
Para a beleza disto totalmente desconhecida dos antigos. 

Ó rodas, ó engrenagens, r-r-r-r-r-r-r eterno! 
Forte espasmo retido dos maquinismos em fúria! 
Em fúria fora e dentro de mim, 
Por todos os meus nervos dissecados fora, 
Por todas as papilas fora de tudo com que eu sinto! 
Tenho os lábios secos, ó grandes ruídos modernos, 
De vos ouvir demasiadamente de perto, 
E arde-me a cabeça de vos querer cantar com um excesso 
De expressão de todas as minhas sensações, 
Com um excesso contemporâneo de vós, ó máquinas! 

Em febre e olhando os motores como a uma Natureza tropical — 
Grandes trópicos humanos de ferro e fogo e força — 
Canto, e canto o presente, e também o passado e o futuro. 
Porque o presente é todo o passado e todo o futuro 
E há Platão e Virgíllo dentro das máquinas e das luzes eléctricas 
Só porque houve outrora e foram humanos Virgílio e Platão, 
E pedaços do Alexandre Magno do século talvez cinqüenta, 
Átomos que hão-de ir ter febre para o cérebro do Ésquilo do século cem, 
Andam por estas correias de transmissão e por estes êmbolos e por estes volantes,
Rugindo, rangendo, ciciando, estrugindo, ferreando, 
Fazendo-me um excesso de carícias ao corpo numa só carícia à alma. 

Ah, poder exprimir-me todo como um motor se exprime! 
Ser completo como uma máquina! 
Poder ir na vida triunfante como um automóvel último-modelo! 
Poder ao menos penetrar-me fisicamente de tudo isto, 
Rasgar-me todo, abrir-me completamente, tornar-me passento 
A todos os perfumes de óleos e calores e carvões 
Desta flora estupenda, negra, artificial e insaciável! 
Fraternidade com todas as dinâmicas! 
Promíscua fúria de ser parte-agente 
Do rodar férreo e cosmopolita 
Dos comboios estrênuos. 
Da faina transportadora-de-cargas dos navios. 
Do giro lúbrico e lento dos guindastes, 
Do tumulto disciplinado das fábricas, 
E do quase-silêncio ciciante e monótono das correias de transmissão! 
Horas européias, produtoras, entaladas 
Entre maquinismos e afazeres úteis! 
Grandes cidades paradas nos cafés, 
Nos cafés — oásis de inutilidades ruidosas 
Onde se cristalizam e se precipitam 
Os rumores e os gestos do Útil 
E as rodas, e as rodas-dentadas e as chumaceiras do Progressivo! 
Nova Minerva sem-alma dos cais e das gares! 
Novos entusiasmos de estatura do Momento! 
Quilhas de chapas de ferro sorrindo encostados às docas, 
Ou a seco, erguidas, nos planos-inclinados dos portos! 
Atividade internacional, transatlântica, Canadian-Pacific! 
Luzes e febris perdas de tempo nos bares, nos hotéis, 
Nos Longchamps e nos Derbies e nos Ascots, 
E Piccadillies e Avenues de l'Opéra que entram 
Pela minh'alma dentro! 

Hé-lá as ruas, hé-lá as praças, hé-lá-hô la foule! 
Tudo o que passa, tudo o que pára às montras! 
Comerciantes; vários; escrocs exageradamente bem-vestidos; 
Membros evidentes de clubes aristocráticos; 
Esquálidas figuras dúbias; chefes de família vagamente felizes 
E paternais até na corrente de oiro que atravessa o colete 
De algibeira a algibeira! 
Tudo o que passa, tudo o que passa e nunca passa! 
Presença demasiadamente acentuada das cocotes 
Banalidade interessante (e quem sabe o quê por dentro?) 
Das burguesinhas, mãe e filha geralmente 
Que andam na rua com um fim qualquer; 
A graça feminil e falsa dos pederastas que passam, lentos; 
E toda a gente simplesmente elegante que passeia e se mostra 
E afinal tem alma lá dentro! 

(Ah, como eu desejaria ser o souteneur disto tudo!) 

A maravilhosa beleza das corrupções políticas, 
Deliciosos escândalos financeiros e diplomáticos, 
Agressões políticas nas ruas, 
E de vez em quando o cometa dum regicídio 
Que ilumina de Prodígio e Fanfarra os céus 
Usuais e lúcidos da Civilização quotidiana! 


Notícias desmentidas dos jornais, 
Artigos políticos insinceramente sinceros, 
Notícias passez à-la-caisse, grandes crimes — 
Duas colunas deles passando para a segunda página! 
O cheiro fresco a tinta de tipografia! 
Os cartazes postos há pouco, molhados! 
Vients-de-paraître amarelos como uma cinta branca! 
Como eu vos amo a todos, a todos, a todos, 
Como eu vos amo de todas as maneiras, 
Com os olhos e com os ouvidos e com o olfato 
E com o tacto (o que palpar-vos representa para mim!) 
E com a inteligência como uma antena que fazeis vibrar! 
Ah, como todos os meus sentidos têm cio de vós! 

Adubos, debulhadoras a vapor, progressos da agricultura! 
Química agrícola, e o comércio quase uma ciência! 
Ó mostruários dos caixeiros-viajantes, 
Dos caixeiros-viajantes, cavaleiros-andantes da Indústria, 
Prolongamentos humanos das fábricas e dos calmos escritórios! 

Ó fazendas nas montras! ó manequins! ó últimos figurinos! 
Ó artigos inúteis que toda a gente quer comprar! 
Olá grandes armazéns com várias seções! 
Olá anúncios eléctricos que vêm e estão e desaparecem! 
Olá tudo com que hoje se constrói, com que hoje se é diferente de ontem! 
Eh, cimento armado, beton de cimento, novos processos! 
Progressos dos armamentos gloriosamente mortíferos! 
Couraças, canhões, metralhadoras, submarinos, aeroplanos! 

Amo-vos a todos, a tudo, como uma fera. 
Amo-vos carnivoramente, 
Pervertidamente e enroscando a minha vista 
Em vós, ó coisas grandes, banais, úteis, inúteis, 
Ó coisas todas modernas, 
Ó minhas contemporâneas, forma atual e próxima 
Do sistema imediato do Universo! 
Nova Revelação metálica e dinâmica de Deus! 

Ó fábricas, ó laboratórios, ó music-halls, ó Luna-Parks, 
ó couraçados, ó pontes, ó docas flutuantes — 
Na minha mente turbulenta e encandescida 
Possuo-vos como a uma mulher bela, 
Completamente vos possuo como a uma mulher bela que não se ama, 
Que se encontra casualmente e se acha interessantíssima. 

Eh-lá-hô fachadas das grandes lojas! 
Eh-lá-hô elevadores dos grandes edifícios! 
Eh-lá-hô recomposições ministeriais! 
Parlamentos, políticas, relatores de orçamentos, 
Orçamentos falsificados! 
(Um orçamento é tão natural como uma árvore 
E um parlamento tão belo como uma borboleta.) 

Eh-lá o interesse por tudo na vida, 
Porque tudo é a vida, desde os brilhantes nas montras 
Até à noite ponte misteriosa entre os astros 
E o mar antigo e solene, lavando as costas 
E sendo misericordiosamente o mesmo 
Que era quando Platão era realmente Platão 
Na sua presença real e na sua carne com a alma dentro, 
E falava com Aristóteles, que havia de não ser discípulo dele. 

Eu podia morrer triturado por um motor 
Com o sentimento de deliciosa entrega duma mulher possuída. 
Atirem-me para dentro das fornalhas! 
Metam-me debaixo dos comboios! 
Espanquem-me a bordo de navios! 
Masoquismo através de maquinismos! 
Sadismo de não sei quê moderno e eu e barulho! 

Up-lá hô jockey que ganhaste o Derby, 
Morder entre dentes o teu cap de duas cores! 

(Ser tão alto que não pudesse entrar por nenhuma porta! 
Ah, olhar é em mim uma perversão sexual!) 

Eh-lá, eh-lá, eh-lá, catedrais! 
Deixai-me partir a cabeça de encontro às vossas esquinas, 
E ser levado da rua cheio de sangue 
Sem ninguém saber quem eu sou! 

Ó tramways, funiculares, metropolitanos, 
Roçai-vos por mim até o espasmo! 
Hilla! hilla! hilla-hô! 
Dai-me gargalhadas em plena cara, 
Ó automóveis apinhados de pândegos e de putas, 
Ó multidões quotidianas nem alegres nem tristes das ruas, 
Rio multicolor anónimo e onde eu me posso banhar como quereria! 
Ah, que vidas complexas, que coisas lá pelas casas de tudo isto! 
Ah, saber-lhes as vidas a todos, as dificuldades de dinheiro, 
As dissensões domésticas, os deboches que não se suspeitam, 
Os pensamentos que cada um tem a sós consigo no seu quarto 
E os gestos que faz quando ninguém pode ver! 
Não saber tudo isto é ignorar tudo, ó raiva, 
Ó raiva que como uma febre e um cio e uma fome 
Me põe a magro o rosto e me agita às vezes as mãos 
Em crispações absurdas em pleno meio das turbas 
Nas ruas cheias de encontrões! 

Ah, e a gente ordinária e suja, que parece sempre a mesma, 
Que emprega palavrões como palavras usuais, 
Cujos filhos roubam às portas das mercearias 
E cujas filhas aos oito anos - e eu acho isto belo e amo-o! — 
Masturbam homens de aspecto decente nos vãos de escadas. 
A gentalha que anda pelos andaimes e que vai para casa 
Por vielas quase irreais de estreiteza e podridão. 
Maravilhosa gente humana que vive como os cães, 
Que está abaixo de todos os sistemas morais, 
Para quem nenhuma religião foi feita, 
Nenhuma arte criada, 
Nenhuma política destinada para eles! 
Como eu vos amo a todos, porque sois assim, 
Nem imorais de tão baixos que sois, nem bons nem maus, 
Inatingíveis por todos os progressos, 
Fauna maravilhosa do fundo do mar da vida! 

(Na nora do quintal da minha casa 
O burro anda à roda, anda à roda, 
E o mistério do mundo é do tamanho disto. 
Limpa o suor com o braço, trabalhador descontente. 
A luz do sol abafa o silêncio das esferas 
E havemos todos de morrer, ó pinheirais sombrios ao crepúsculo, 
Pinheirais onde a minha infância era outra coisa 
Do que eu sou hoje... ) 

Mas, ah outra vez a raiva mecânica constante! 
Outra vez a obsessão movimentada dos ônibus. 
E outra vez a fúria de estar indo ao mesmo tempo dentro de todos os comboios 
De todas as partes do mundo, 
De estar dizendo adeus de bordo de todos os navios, 
Que a estas horas estão levantando ferro ou afastando-se das docas. 
Ó ferro, ó aço, ó alumínio, ó chapas de ferro ondulado! 
Ó cais, ó portos, ó comboios, ó guindastes, ó rebocadores! 

Eh-lá grandes desastres de comboios! 
Eh-lá desabamentos de galerias de minas! 
Eh-lá naufrágios deliciosos dos grandes transatlânticos! 
Eh-lá-hô revoluções aqui, ali, acolá, 
Alterações de constituições, guerras, tratados, invasões, 
Ruído, injustiças, violências, e talvez para breve o fim, 
A grande invasão dos bárbaros amarelos pela Europa, 
E outro Sol no novo Horizonte! 

Que importa tudo isto, mas que importa tudo isto 
Ao fúlgido e rubro ruído contemporâneo, 
Ao ruído cruel e delicioso da civilização de hoje? 
Tudo isso apaga tudo, salvo o Momento, 
O Momento de tronco nu e quente como um fogueiro, 
O Momento estridentemente ruidoso e mecânico, 
O Momento dinâmico passagem de todas as bacantes 
Do ferro e do bronze e da bebedeira dos metais. 

Eia comboios, eia pontes, eia hotéis à hora do jantar, 
Eia aparelhos de todas as espécies, férreos, brutos, mínimos, 
Instrumentos de precisão, aparelhos de triturar, de cavar, 
Engenhos, brocas, máquinas rotativas! 

Eia! eia! eia! 
Eia electricidade, nervos doentes da Matéria! 
Eia telegrafia-sem-fios, simpatia metálica do Inconsciente! 
Eia túneis, eia canais, Panamá, Kiel, Suez! 
Eia todo o passado dentro do presente! 
Eia todo o futuro já dentro de nós! eia! 
Eia! eia! eia! 
Frutos de ferro e útil da árvore-fábrica cosmopolita! 
Eia! eia! eia! eia-hô-ô-ô! 
Nem sei que existo para dentro. Giro, rodeio, engenho-me. 
Engatam-me em todos os comboios. 
Içam-me em todos os cais. 
Giro dentro das hélices de todos os navios. 
Eia! eia-hô! eia! 
Eia! sou o calor mecânico e a electricidade! 

Eia! e os rails e as casas de máquinas e a Europa! 
Eia e hurrah por mim-tudo e tudo, máquinas a trabalhar, eia! 

Galgar com tudo por cima de tudo! Hup-lá! 

Hup-lá, hup-lá, hup-lá-hô, hup-lá! 
Hé-la! He-hô! Ho-o-o-o-o! 
Z-z-z-z-z-z-z-z-z-z-z-z! 

Ah não ser eu toda a gente e toda a parte!



Álvaro de Campos