sábado, julho 30, 2016

Feeling blue in so much green... (Brinnington, 2016)

Se é caso disso, levem-me lá para trás e...

Posso ver com os meus olhos realidades que nunca imaginei ver. Tenho trabalho. Tenho saúde. Tenho mulher e filhos comigo igualmente bem de saúde. Alguma família e amigos fundamentais. Tenho uma almofada que dorme tranquila e que está à minha espera.
Por tudo isto, se alguém me ouve a queixar-me, por favor, levem-me lá para trás e espetem-me um tiro nos cornos...

quarta-feira, julho 27, 2016

Alguma vez seremos melhor do que isto?

Hoje estive no "Imperial War Museum" de Manchester. Ontem, e nos dias e semanas anteriores, falaram-nos de guerras religiosas, mata-se em prol do Islão, e não só, portanto o terror faz parte do discurso dominante. O Papa Francisco não cai nesse argumento simplista e já veio dizer que não há nenhuma guerra de religiões mas sim de interesses, poder e de recursos. Gosto deste gajo. Depois de tanto tempo, já não desconfio da sua figura apesar de continuar a criticar parte da instituição que representa.
Do outro lado do Atlântico, o Trump está à frente da Hillary nas sondagens e o Obama diz que a Rússia tem muito a ganhar com um idiota assim na Casa Branca. Reminiscências da guerra fria?
Neste museu não senti apologias bélicas ou pacifistas. Há uma cobertura única sobre o conflicto, desde a Primeira Guerra Mundial até ao presente, um estudo e entendimento da história da guerra moderna e do que é vivê-la como soldado, vítima, refugiado, dano colateral ou viver o pós-guerra. Trouxe um postal que quero pôr bem visível em casa. Lembrei-me de Sun Tsu. "Em tempo de paz não esqueças a guerra, em tempo de guerra não esqueças a paz". Não tenho boa memória para os "ipsis verbis" porém essa é a ideia.
No centro daquele edifício moderno, com o meu filho mais novo a berrar de teimosia, de birra de saturação de carrinho e de horas de autocarro, algo tão diferente do choro sincronizado com o zumbido e explosão posterior de bombas, tentei acalmá-lo consolando-o no meu colo. Sei que esta paz é ilusória. Temo por eles, por o mundo que se consome a si mesmo e temo que sejamos tão estúpidos para entregarmos os "Red Bottons" a quem nem sequer deveria de ter acesso a uma pistola de água.
Cresci filho duma guerra sem razão onde ia morrer obrigado o povo humilde, manipulado e sem recursos, português. Não conheço a guerra como vítima ou combatente, mas conheço bem o conceito e a história detrás desse conceito.
Sem ilusões mas sem duvidar de existir esperança, pergunto-me:
- "Alguma vez seremos melhor do que isto?"

terça-feira, julho 26, 2016

Notas processadas

Escrevo estas notas feitas diário quase sempre antes de me deitar. Fecho o dia com o inventário do que vivi e como o senti.
Estou em Inglaterra há uns dias, em Stockport, mais precisamente em Brinnington, uma das localidades periféricas mais pobres da grande Manchester. Estamos em casa da nossa "família africana", como já aqui escrevi numa entrada anterior, aquela que ganhei graças à minha mulher. Estou grato por isso.
Todos os dias nos deslocamos nos transportes públicos, de autocarro suburbano, para os passeios que damos por esta região que foi o berço da revolução industrial. Fazemos esse turismo ao lado de quem trabalha, sem pretensões de grandes atrações, mas com a certeza que sabemos e valorizamos o seu dia-a-dia que lhes põe pão na mesa.
Inglaterra é uma realidade social tão diferente da peninsular, apesar de todos os templos do consumo nos remeterem para a igualdade do ser em massas, global e tendencialmente acrítica, que não me atrevo a analizá-la. Escrevo aqui o que vi. Enumero sem nenhum rigor na ordem.
1- Há uma maioria de ingleses amparados pelo estado social. Dão nas vistas tal como alguns emigrantes que entendem e usufruem do sistema.
2- Os emigrantes são o motor da economia com trabalhos precários, ausentes de contratos laborais, mas no activo como população.
3- O poder político está totalmente afastado de aglomerados de prédios, periferias convertidas em burgos para dormidas de quem trabalha na grande cidade ou parasita porque lhes é permitido por esse poder para que se possa perpetuar ao comando do país.
4- Há videovigilância por todo o lado. O Orwell já o vaticinara na história da literatura deste país mas como um "big brother" totalitário. Aqui há totalitarismo misturado com paternalismo estatal. Atira-lhe umas migalhas que o povo abdica de tudo, da sua educação, da sua liberdade, da sua dignidade.
5- Nunca vi em tão pouco tempo e espaço tanta obesidade. Cresci a associar a gordura a quem tudo come e nada deixa para os outros. O menino rico com acesso aos chocolates e guloseimas lá do bairro há 30 anos atrás vai ao ginásio, come produtos naturais e tem nutricionista. O pobre apodrece no excesso fácil da nutrição rápida, processada para massas e aumenta o lastro que lhe solda as articulações e nunca conseguirá subir os degraus sociais.
5- Escrevo em Inglaterra, estou aqui por casualidade e atrevo-me a tirar conclusões que tiraria no bairro mais pobre da cidade onde vivo, mas o impacto visual influencia o que aqui redijo.
Há perversão nestes guetos. Do ser humano. Não há só oprimidos ou opressores. Há miséria de espírito e há muitos anos sei que este tipo de miséria não tem classe social. Uno-me a essa miséria, não a desprezo, rezo apenas para que estas palavras rápidas nutram alguém a ter consciência do que se é, do que se pode ser e do que o colectivo quer que sejamos. Sem moral processada como a comida que trago na mochila.

sexta-feira, julho 22, 2016

Poder fazer parte do dia-a-dia de quem emigra para ganhar o pão, nem que seja por uma semana, noutro país que não seja Espanha, é um privilégio do qual me sinto profundamente merecedor.
Em 24 horas pisei três países diferentes e falei três línguas diferentes. É inevitável fazer comparações, mas também é inevitável saber que fazer comparações quase sempre é perder tempo. Prefiro observar.
Espanha, Portugal e Inglaterra. Essa tríade com vértices em afectos como os que temos pela Deu e pelo Márcio, a nossa família africana, aquela que a minha mulher ganhou e nos deu para a vida.
Adormeço em Manchester, mais precisamente nos arredores de Rockport, e sei que estar aqui é algo tão necessário como o facto de gravar em palavras o que sinto.
Neste presente em que o Reino Unido se separa mais que geograficamente da Europa, em que há tantos movimentos extremistas baseados em ódios a movimentos migratórios, a credos, ao que quer que seja diferente, uno-me à coragem desta família para, através do trabalho duro (e que muitos ingleses não querem fazer), sentir que os lugares também se controem desde fora, mesmo que alguns pensem que os alicerces duma nação são uma base de cimento e areia puros... Uma casa não pode existir sendo só alicerces, essa verdade é tão importante como qualquer projeto de estabilidade que nos queiram vender.

terça-feira, julho 19, 2016

Com os termómetros a rondarem os 40º...

Com os termómetros a rondarem os 40º, a malta do bairro refrescava-se de mangueira e de alguidar… Já lá vão uns anitos, a mangueira e o alguidar eram da D. Adelaide Rosmaninho no seu quintal em Mira… Este “tesouro deprimente” (encontrado no baú do mestre Jorge Rosmaninho Neto) refresca-me a memória e ainda a pele cheira ao sabão azul com que me lavava no quintal dos meus avós…


Con los termómetros rondando los 40º, la pandilla del barrio se refrescaba de manguera y barreño… Ya pasaron unos añitos, la manguera y el barreño eran de D. Adelaide Rosmaninho en su jardín en Mira… Este “tesoro deprimente” (encontrado en el baúl del maestro Jorge Rosmaninho Neto) me refresca la memoria y todavía mi piel huele a jabón lagarto con el cual me lavaba en el jardín de mis abuelos…

segunda-feira, julho 18, 2016

“Não há nada…” (Jorge de Sena)




“Não há nada…”

Não há nada que canse estas crianças.
Pulam e gritam, de regresso a casa,
após longo passeio, como se
fosse apenas um caso de memória
o cansaço que traziam nas pernas e na noite.

Gritam, pulam, brigam,
já esquecidos de que estavam cansados.

É horrorosa esta energia indomável,
sem graça e sem encanto, que deleita e baba
os que fazem mentalmente os filhos que não querem ter
ou que não podem ter, ou que perderam.

Porque é gratuita, é inhumana, é
dissipação de um passado selvagem
que a cada hora espreita nos tranquilos gestos.

Eu sei que é a vida – a vida, oh sim, a vida –
manifestando-se nesses uivos, neste gosto
da grosseria, da brutalidade, e de andar sujo,
despenteado e descalço, o gosto
fascinante e medonho da degradação.

Não há nada que canse estes animais
que amamos com tédio, e pelos quais tememos
o futuro e a morte, ou mesmo os olhos deles.

Hão-de crescer cansados e viver cansados
da humanidade delicada e terna
que apenas um ou outro, menos bruto,
descobrirá por conta própria apenas.

Belas as crianças? Se o forem.
E porque o hão-de ser por serem minhas?
E porque hei-de fingir que os amo como gente,
se ninguém pensou nelas para serem feitas?
E porque hei-de aceitar que seja amor
este teimoso orgulho de ter crias?

Não há nada que canse estas crianças,
nem mesmo o desespero de que o sejam.

17/10/1965

Jorge de Sena

Visão Perpétua (1982)


"Visão Perpétua: A Poesia Oculta de Jorge de Sena.". Recensão de José Rodrigues de Paiva em Ler Jorge de Sena



terça-feira, julho 12, 2016

A caminho de Madrid

Viajar ou deslocarmo-nos em transportes públicos nunca nos deixa afastarmo-nos da realidade que o carro próprio cria. O ter de partilhar um espaço no destino de cada viajante é algo que tanto tem de castigo como de interessante. Quem sabe quem é que se vai sentar ao teu lado? 
De momento vou sozinho. O verão e o suor não convidam a grandes conversas. O destino sim. Aqueles que viajam por necessidade não acreditarão no mesmo do que os que viajam por obrigação. 
Já os turistas, como eu, não perdem tempo a pensar se é por necessidade ou obrigação. Acreditam que há uma agência de viagens de oportunidade. Aproveitam enquanto podem.

segunda-feira, julho 11, 2016

Portugal, campeão da Europa

Foi uma pena os meus avós não terem presenciado este momento. Só um país como Portugal poderia ter conquistado este troféu assim, a sofrer até ao final, com o capitão do navio fora da embarcação, a dar nas vistas pelas lágrimas com traças à mistura, a bater sem querer no treinador e nos colegas, mas, principalmente, sem o devido respeito pelo país anfitrião e adversário na final. Ganhou Portugal porque teve que ser, pela sorte que protege os trabalhadores, até mesmo os que costumam ter pouca. Ganhou a juventude.  Ganhou o jogador da liga menor e quase desconhecido.
Mas a verdade é que eu já não estou em Portugal, a minha avó morreu e o meu avô já nem sem apercebe se a sua seleção ganha em 1960 ou em 2016. 
Hoje deito-me a sentir-me emigrante, apesar das dezenas de quilómetros que me afastam do berço. Hoje deito-me com os gritos do vizinho Soares, na casa em frente no pátio, imaginados na memória.
Amanhã tudo isto será história. Portugal voltará a pagar as suas dívidas à Europa, mas neste 10 de Julho foi enorme! 

domingo, julho 10, 2016

sábado, julho 09, 2016

Um português sem medo de existir.

O Cristiano Ronaldo fascina-me. Sociologicamente, o estereótipo do português mudou bastante graças a ele.
O pobrezinho, humilde e honrado trabalhador que o salazarismo exportou, por exemplo, para a França desta final, nada tem a ver com este perfil aguerrido, seguro de si mesmo (arrogante, é verdade) e de superação neste mundo mediático e global, no qual Portugal, por vezes, tem medo de existir.
Exceto na ética de trabalho, herdada de séculos de emigração lusa. Essa dedicação e profissionalismo que lhe permitiu sair dum pobre bairro madeirense e ascender no mercantil mundo do futebol.
Ganhe ou não ganhe amanhã, eu guardo a imagem dum homem comum cujo maior talento foi superar-se naquilo que foram as suas circunstâncias. Um português sem medo de existir.

Cristiano Ronaldo me fascina. Sociológicamente, el estereotipo del portugués cambió bastante gracias a él.
El pobre, humilde y honrado trabajador que el salazarismo exportó, por ejemplo, a la Francia de esta final, nada tiene que ver con este perfil aguerrido, seguro de sí mismo (arrogante, é verdad) y de superación en este mundo mediático y global, en el cual Portugal, por veces, tiene miedo de existir.
Excepto en la ética de trabajo, herencia de siglos de emigración lusa. Esa dedicación y profesionalidad que le permitió salir de un pobre barrio de Madeira y ascender en el mercantil mundo del futbol.
Gane o no gane mañana, yo guardo la imagen de un hombre común cuyo mayor talento fue superarse en aquello que fueron sus circunstancias. Un portugués sin miedo de existir.  


(Excerto do poema “Ronaldo, o Estrangeirado” de 2014)


A propósito dum post dum reconhecido escritor português

Acabo de ler, escrito por um reconhecido autor português, que "ninguém, salvo raras excepções, antes dos cinquenta é um escritor sério", ou "a sério", não sei precisar e não me apetece reler o post.
Desconheço as suas excepções, mas imagino que pensará o mesmo para outras manifestações artísticas ou, até mesmo, para actividades profissionais.
Os anos vão passando e sinto que a idade não é um posto. Mesmo para as raras excepções.
Reconheço-lhe razão na necessidade de ter "biografia", até mesmo tempo (o Umberto Eco afirmava que só se dedicou mais à escrita quando os seus filhos já não lhe exigiam tanta atenção), anos de leitura, mas reconheço-lhe no tom, espero enganar-me, uma arrogância com a qual não me quero reconhecer. Ser escritor e ter espírito de crítico literário deve ser uma tarefa árdua,  fodido mesmo. Quando é que se é qual? 
Há beleza na ingenuidade. Há arte ingénua, "naif" não é? Há uma esperança na juventude que ainda não escreveu o suficiente para ter estilo ou, quando se escreve muito, para se copiar a ela própria.
Vou-me deitar a sentir-me mais velho e a deleitar-me com a escrita da juventude. Séria ou pouco séria, o que é que seria do futuro sem maçaricos ridículos a darem os primeiros passos e das mentes geriátricas que não se apercebem que estão a cair no ridículo?

quarta-feira, julho 06, 2016

Zamora, "Todos llevamos una ciudad dentro"

Zamora. Passeio à chuva de Julho

Chego a Zamora, revejo a papelada para amanhã, e ponho-me a caminhar pelas ruas paralelas e perpendiculares ao local onde estou instalado. Gosto de andar assim, sozinho no meio do dia-a-dia de gente alheia ao meu quotidiano, a olhar para os recantos tão iguais e ao mesmo tempo tão diferentes da cidade onde vivo. O céu não enganava ninguém. Anunciava chuva e trovoada desde o início da tarde. Apanhou-me próximo dum edificio público à espera de ser inaugurado na companhia de duas simpáticas senhoras idosas que partilhavam um chapéu de chuva transparente. Ali nos abrigámos os três enquanto esperávamos que escampasse. É tão fácil meter conversa, ainda mais se o tempo está a jeito disso, e estas duas senhoras, uma aqui de Zamora, a outra saudosa da cidade condal, lembraram-me como "isto está difícil para os da minha geração e para os que aí vêm". Lembraram-me isto, com um estoicismo como que os seus anos vindouros não interessassem, não fossem importantes para este país, ainda por cima uma delas com um filho adulto a cargo e um neto menor.
Deixou de chover tão intensamente e despediram-se de mim com uma cordialidade castelhana diferente da do sul à que estou habituado. Uma delas disse-me: "Tenho de ir para casa porque deixei uma janela aberta!".
E lá foram, juntas, passos em comum, o mais digno deste país que vive dos seus votos mas que as esquece mal estes saem das urnas.
Decidi pôr-me à chuva de Julho para lavar-me do calor extremo do meu sul. Caminhei bastante em direção ao Douro e olhei-o de olhos encandeados a correr para Portugal. Na rádio, e nos ecrãs futebolísticos das esplanadas zamoranas, a seleção das quinas chega à final do europeu de futebol com um percurso repleto de mau futebol mas cheio de sorte pouco habitual, o que me faz pensar que sorte não protege só os audazes.
Um pouco antes da meia-noite, volto ao hotel, de onde vejo um parque infantil pouco apelativo à primeira infância, e deito-me com Claudio Rodríguez e a sua cidade na cabeceira.
Uma das senhoras disse-me que Zamora tem pouco para oferecer aos seus e aos de fora. Não quero acreditar. Espero que não tenha razão. Por ela e por este dia que finaliza aqui, única e simplesmente, porque Zamora existe.

terça-feira, julho 05, 2016

Vivendas de luxo

Nunca imaginei ver uma crise económica como a que se arrasta desde 2008 até hoje. É verdade. Apesar de ter conhecido a precariedade, paliada pelo apoio paternal, nunca imaginei que a sociedade que me educou nos valores de casa, carro e electrodomésticos vários num trabalho efectivo fosse tudo menos estável. Via a maioria assim, também eu queria ser maioria numa época em que a minha vida profissional não me permitia sequer alugar casa para viver independente. 
Quando comecei a trabalhar com um vínculo mais estável, esse que negam aos milhões (e a alguns dos melhores)  por este mundo fora, também persegui a casa, um carrito melhor que o Clio a zumbir o alternador, e electrodomésticos vários. O primeiro foi uma máquina fotográfica.
Podia ser aceite pela maioria, essa classe média de centro-direita, quando tem boa memória pisca o olho à esquerda, e pagar ao banco todos os meses esse estatuto. Assim foi e assim é.
Fiz tudo para entrar neste clube. Fiz empréstimos (talvez algum dia precise outro), comprei casa e electrodomésticos. Mas nunca deixei de ser medroso. Sentia uma espécie de casamento, como o que fiz com a minha mulher, mas sem amor. Estava em núpcias e não sentia o afecto do banco que me exige seriedade ao fim do mês, rígido se há um imprevisto, a casa é tudo menos minha, quanto muito sou eu propriedade da minha casa que me escraviza com manutenção, limpezas semanais, mensais, para não escrever diárias, com o reforço de umas cartitas simpáticas com a boa nova dos impostos. É assim e já está, sem nenhum tipo de remorço ou hipocrísia deste escriba.  Ainda bem que posso e aguento o que os economistas denominam taxa de esforço.
O que acontece é que já entrei muito tarde neste clube. Não sou um puro sangue de classe média. Trabalhei demasiado para ver que o médio ilude bem o operário, legitima o político, assegura as finanças do rico e é indiferente à miséria do pobre. O médio consome e é combustível da democracia. Há um equilibrio imperfeito mas, como tantas vezes o ouvi dizer a sábios do bairro, as coisas vão indo.
O problema reside na mochila que trago às costas, na insatisfação material que me contagia, no andar a pé e de bicicleta junto à realidade construída à base de hipoteca, com mais estradas que passeio, onde importa mais o veículo do que o peão.
Não tenho moral para opinar ou criticar a forma consumista como o meu semelhante privilegiado, sem guerras, exílios, ditadura, Daesh, Estado Islâmico ou outro qualquer credo inimigo dos direitos humanos, vive, porque eu vivo assim e reconheço-me tristemente insatisfeito nessa condição.
Hoje ia com os meus filhos pela rua e outro pai tentou-me vender qualquer coisa, tipo lenços de papel ou pensos rápidos, para sobreviver. A minha forma de sobreviver foi desconfiar, apesar de nestas palavras desconfiar de mim mesmo como exemplo de desumanidade.
E do outro lado da avenida, enormes catterpilars alisam o chão para, como diz o enorme outdoor, "Vivendas de luxo, compre já a sua!". Será que alguém nos pode vender uma consciência de que há algo aqui que não encaixa? Agradecia. Distraido, ponho-me a ver se na urbanização há uma gelataria, com o calor agradece-se e aqui não há risco de atentados suicidas.

Espuma (Claudio Rodríguez)

Foto de Fernando Eguia


ESPUMA

Miro la espuma, su delicadeza
que es tan distinta a la de la ceniza.
Como quien mira una sonrisa, aquella
por la que da su vida y le es fatiga
y amparo, miro ahora la modesta
espuma. Es el momento bronco y bello
del uso, el roce, el acto de la entrega
creándola. El dolor encarcelado
del mar, se salva en fibra tan ligera;
bajo la quilla, frente al dique, donde
existe amor surcado, como en tierra
la flor, nace la espuma. Y es en ella
donde rompe la muerte, en su madeja
donde el mar cobra ser, como en la cima
de su pasión el hombre es hombre, fuera
de otros negocios: en su leche viva.
A este pretil, brocal de la materia
que es manantial, no desembocadura,
me asomo ahora, cuando la marea
sube, y allí naufrago, allí me ahogo
muy silenciosamente, con entera
aceptación, ileso, renovado
en las espumas imperecederas.

Claudio Rodríguez




Lisboa, 23/VI/2016

Visita ao zoológico com a família. Não era necessário vir de tão longe para mostrar-lhes como se paga para ver que privamos a natureza de ser livre. Nós que somos natureza.

Vale mais defender uma ideia em alto e bom som ou vivê-la coerente em silêncio?

domingo, julho 03, 2016

9- Penso que neste momento (Roberto Juarroz, 1925-1995)

9

Penso que neste momento
talvez ninguém no universo pense
em mim,
que só eu me penso,
e se agora morresse,
ninguém, nem eu, me pensaria.

E aqui começa o abismo,
como quando adormeço.
Sou o meu próprio apoio e retiro-o.
Contribuo a tapizar a ausência de tudo.

Talvez seja por isto
que pensar num homem
se parece a salvá-lo.


Roberto Juarroz (1925-1995, trad. Luis Leal)


9- Pienso que en este momento (Roberto Juarroz, 1925-1995)


Generosidade sem gratidão é como alguém que alimenta o corpo sem se aperceber do dom do pão que tem na mesa...

sábado, julho 02, 2016

sem nome

nasceu sem nome. a parteira que o ajudou a existir pensou: "ai desgraçado, antes sem mãos do que sem nome". teve uma infância sem diminutivos carinhosos nem aumentativos feitos uma alcunha qualquer. foi biologia de criança até descobrir-se adolescente sem identidade (no grupo só se dilui a individualidade quando ela é perfeitamente identificada num colectivo). passou ao lado da adolescência para chegar a adulto e pugnar pelo seu lugar no mundo de nomeações. se ninguém fora capaz de fazê-lo, o próprio nomear-se-ia pela teimosia da vontade.  
farto de ser ignorado por não ter sido registado com nome numa cédula de nascimento, por não ter nem filiação, santos ou padrinhos, dirigiu-se a uma conservatória do registo civil e, depois de hesitar em tipo de nome se revia, optou por "anónimo".
saiu feliz com a sua própria identidade, aquela que ele mesmo escolheu, fruto do que as circunstâncias haviam semeado.