domingo, novembro 29, 2020

Os padrinhos morreram todos (Fernando Assis Pacheco )

 

Folar de Vale de Ílhavo, fotografia de Zé Pinho

 

OS PADRINHOS MORRERAM TODOS

Os padrinhos morreram todos
já não tenho folar da Páscoa
estou triste e descoroçoado
como um cachorrinho à chuva

se agora mexesse no meu sótão
era para adoecer ainda mais
do coração vendo os trastes velhos
debruados de pó

querendo alguém ser amável
evite falar-me dessas coisas
que doem muitas vezes
como um último fio de luz
na trama do crepúsculo
breve chispa
                     diluída entre as ondas

Fernando Assis Pacheco


A Profissão Dominante (1982)

Fernando Assis Pacheco (Coimbra, 1 de fevereiro de 1937 — Lisboa, 30 de novembro de 1995)



Instantánea del cerebro de Ramón (Oliverio Girondo)

 

Instantánea del cerebro de Ramón. Dibujo de Oliverio Girondo. Martín Fierro, enero de 1925.

(Aquí)



Auto-retrato em dia de Domingo (Foto de Fernando Figueiredo)

 




segunda-feira, novembro 23, 2020

Manter o fogo aceso... 21/XI/2020

"(O povo português) Quem sabe... talvez não desgoste do bastão?" - Nicolas Barral, "Ao Som do Fado", Lisboa, Levoir, p.120.

"Na cidade de Roma há uma rua..."



Na cidade de Roma há uma rua,
na rua há uma casa,
na casa há uma porta,
na porta há uma escada,
na escada há uma sala,
na  sala há um quarto,
no quarto há uma cama,
na  cama há uma mesa,
na mesa há um pano,
no pano há uma gaiola,
na gaiola há um ninho,
no ninho há um ovo,
no ovo há um pássaro,
no pássaro, um coração:
aqui está o meu amor.

Meu amor está dentro do coração:
o coração está no pássaro,
o pássaro está na gaiola,
a gaiola está no pano,
o pano está na mesa,
a mesa está na cama,
a cama está no quarto,
o quarto está na sala,
a sala está na escada,
a escada está na porta,
a porta está na casa,
a casa está na rua,
a rua está na cidade de Roma
e aqui estão as chaves
da cidade de Roma.




segunda-feira, novembro 16, 2020

Canções da Rua Sésamo

"Vem brincar, traz um amigo teu, e ao chegares tu vais poder também aprender como se vai até à Rua Sésamo...". Eis a velha K7 que o Pedro trouxe para a colecção do Fiat 127 onde ainda pontificam "Os Amigos do Gaspar" e soam  "As Mais Bonitas do Vitorino". 
O S e o X agradecem e eu também que há tanto tempo não lanchava com o Monstro das Bolachas.

domingo, novembro 15, 2020

Aprender um poema de cor...

Nunca fui bom a decorar o que quer que seja. Ainda hoje, com tantos anos de profissão, me resisto a saber a lista de preposições de cor. Para que algo penetre para além da armadura dos dias, da viseira do quotidiano, e chegue ao coração ou à alma, se é que a tenho, tem de me conquistar e isso tanto acontece com as preposições, com as equações de primeiro grau, com as datas, com os ismos, com o que quer que seja. Tenho de compreender porque devo ceder e, muitas vezes, recebo quem conquista a minha atenção (e porque não o coração) com honras dos mais altos dignitários. Assim foi hoje, com um pormenor que decorei e cujo interesse fora de mim seguramente dissipar-se-á nesta nota de Novembro.
Porém, o Pedro (que hoje o Santi relembrou gostar tanto de música...) escreveu por aqui um excerto de uma entrevista de Sophia de Mello Breyner sobre que as crianças deveriam decorar um poema e ser essa tarefa digna de abrir as portas, por exemplo, de uma universidade. Reconheço as boas intenções desta tradição herdada da mais erudita cultura clássica, helénica, como só Sophia nos pôde transmitir. O certo é que eu sou péssimo a decorar poemas e pouco ou nada memorizei que não fossem aliterações  típicas da lírica galaico-portuguesa, das cantigas de amigo e que as albas e os ventos me conquistaram mais depressa do que o próprio texto.
A língua de um povo deve ser cuidada, deve ser polida e não deve ser apanágio de uns quantos privilegiados, a poetisa tem razão, mas eu nunca obrigaria ninguém a decorar poemas, nem a nada que não compreenda. E compreender é sentir por mais antagonismo que os poetas queiram conferir aos verbos. 
Os versos a martelo podem soar bem, podem impressionar auditórios, ser brilharetes e até serem algo lúdicos para miúdos e graúdos, mas são como o vinho feito com a mesma técnica, dá para o gasto, o que não lhe confere exactamente o mesmo estatuto de vinho.
Antes afligia-me um pouco tão pouco saber de cor os grandes vates. Hoje apenas me preocupa continuar disponível para os ler, para os compreender e, se assim for possível, algo sentir... 

Estudar: um verbo que, para mim, sempre foi sinónimo de consolo...

sábado, novembro 14, 2020

sexta-feira, novembro 13, 2020

Hilda Hilst



Estou doente. Taco, meu médico e amigo prescreveu champanhe gelado. Brut. E gelo nas têmporas. E sabes por que estou doente? Porque pressinto surpresas, notícias inquietantes, vindas não sei de onde, talvez de ti. (E por outra coisa que já te digo.) Sinto também que não devemos continuar com as cartas. Te vejo dissimulada, escondendo algo muito sério. Por que não permites que eu vá até sua casa? O que guardas aí? De alguma maneira me transformaste num escriba ou melhor num escrevinhador, e só de saber que tu me pensas escritor agiganta-me a náusea. Que tipos petulantes! Que nojosos! Esgruvinham as virilhas, o pregueado, escarafuncham os sórdidos corações, as alminhas magras, e daí enchem-se de arrotos quando terminam os textos. Verdade que adoro os livros, mas se pudesse arrancar de mim a visão dos estufados que os escreveram vomitaria menos o mundo e a própria vida. Tínhamos um amigo, o Stamatius (!) (eu só o chamava de Tiu, porque, convenhamos, Stamatius não dá) que perdeu tudo, casa e outros bens, porque tinha mania de ser escritor. Dizem que agora vive catando tudo quanto há, é catador de lixo, percebes? Vive num cubículo sórdido com uma tal de Eulália que deve ter nascido no esgoto. Muitos o procuram para ajudá-lo. Não quer nem saber. O Tiu quer escrever, só pensa nisso, pirou, sai correndo de pânico quando vê alguém que o conheceu. Carrega no peito uma medalha de Santa Apolônia, protetora dos dentes. Ah, não tem mais dentes. Bonito o Stamatius. Elegante, esguio. A última coisa que fez antes de sumir por aí foi torcer as bolotas de um editor, fazê-lo ajoelhar-se até o cara gritar: edito sim! edito o seu livro! com capa dura e papel bíblia! Só então largou as bolotas e balbuciou feroz: vai editar sim, mas a biografia da tua mãe, aquela findinga, aquela léia, aquela moruxaba, aquela rabaceira escrachada que fodeu com o jumento do teu pai - e quebrou-lhe os dentes com a muqueta mais acertada que já vi. Quebrou a mão também. Bem, mas isso não vem ao caso. Ao caso pior: o Kraus morreu. A Cuzinho num acesso de indignação não só a cause do apelido mas desesperada com todas as indignidades vindas do Tom, invadiu a casa do Kraus com o linguão de fora, e alguns dizem que o perseguiu pela casa inteira uma boa meia hora, escobilhando a comprida. Consta que o Kraus tapava o aro morrendo de rir literalmente. E acreditas? Morreu. O Tom quer Casa do Sol  provar homicídio, quer o testemunho de todos os amigos e dos terapeutas também, mas quem é que vai acreditar que um cara morreu de rir só com a ameaça de lhe lamberem o botão? A turma do pólo está estudando um plano, alguma nefanda crueldade para Amanda. Dizem que vão lhe enfiar algumas bolas de pólo polpas e pombinha adentro. Se assim for resolvido manda-me os tocos dos tais ficheiros. Haja bola! Tom foi medicado na hora do enterro de Kraus porque não suportou ver o amigo morto e ainda sorrindo. Estou doente por tudo isso e porque não posso pensar na morte, nem na minha nem na do Kraus nem da barata, tenho medo da pestilenta senhora e imagino-me puxando-lhe o grelo, esticando-lhe os pentelhos até ouvir sons tensos arrepiantes. Hoje gritei demente: vem, Madama, vem, e irado, numa arrancada, soltei da pestilenta grelo e pentelhos e eles esbateram-se frenéticos nos seus baixos meios. Se pudesse seduzir a morte, lamber-lhe as axilas, os pêlos pretos, babar no seu umbigo, enturpir-lhe as narinas de hálitos melosos, e dizer-lhe: sou eu, gança, sou eu, mariposa, sou Karl, esse que há de te chupar eternamente a borboleta se tu lhe permitires longa vida na olorosa quirica do planeta.

Ciao, irmanita.

Hilda Hilst

Trecho de Cartas de um sedutor, SP: Paulicéia, 1991.



O jogo da cabra cega em espanhol, catalão, francês...


O jogo é igual em toda a parte, mas vamos ver como é que se diz jogo da cabra cega noutras línguas?  Em primeiro lugar, de línguas provenientes do latim:

Em espanhol = juego de la gallina ciega (às vezes "gallinita ciega")

Em catalão = joc de la gallineta cega

Em francês = jeu du Colin-Maillard (ver em baixo a curiosa origem do nome deste jogo em francês).

Em italiano = gioco della mosca cieca

O romeno é uma excepção: diz-se Baba oarba, que significa "a velha cega".

E em inglês e em alemão, línguas anglo-saxónicas? O alemão tem animal e o inglês não tem:

Em alemão = Blindekuh (quer dizer, vaca cega)

Em inglês = blind man's buff


Nota. O nome francês deste jogo tem a sua origem num guerreiro do século X, chamado Jean Colin-Maillard, que perdeu os olhos numa batalha, mas continuou a lutar, batendo ao acaso nos inimigos que havia em redor dele.


quarta-feira, novembro 11, 2020

"Se as crianças aprendessem poemas de cor em pequenas..."

Busto de Deméter, deusa grega das colheitas


Se as crianças aprendessem poemas de cor em pequenas, se fosse uma parte integrante do ensino e até, se elas tivessem de dizer um poema de cor para serem admitidas a qualquer universidade, as pessoas passavam a falar melhor. Porque falar é próprio de todas as pessoas, não é só do médico, do engenheiro e onde se aprende a falar realmente é na poesia.

Sophia de Mello Breyner Andresen 

Entrevista ao jornal Contemporâneo em 15 de Março de 1989

 
OS DEUSES

Nasceram, como um fruto, da paisagem.
A brisa dos jardins, a luz do mar,
O branco das espumas e o luar
Extasiados estão na sua imagem.


domingo, novembro 08, 2020

Ler à navalha...

Ler à navalha é das poucas coisas que ainda me fazem sentir pioneiro no campo da literatura. E não só no campo da literatura, é um facto. Porém, são poucos os que ainda se dedicam ou sabem o que é isso da leitura desbravada pela lâmina da faca, do canivete ou desse obsoleto abre-cartas... 
Um livro, como este de Fidelino de Figueiredo, é digno de ser conquistado pelo interesse do leitor a abrir caminho pelas suas páginas com um gume que, apesar de bem afiado, corta mas não deixa cicatriz.

Veja-se Fidelino de Figueiredo [1944], A Luta pela Expressão – Prolegómenos para uma Filosofia da Literatura, Lisboa, Edições Ática, 1960.


segunda-feira, novembro 02, 2020

Naturezas... 31/X/2020

"Amo la naturaleza porque soy un cazador" - Miguel Delibes (foto 1/XI/2020)

"Amo la naturaleza porque soy un cazador. Soy un cazador porque amo la naturaleza. Son las dos cosas. Además, no sólo soy un cazador, soy proteccionista; miro con simpatía todo lo que sea proteger a las especies. Dicen que eso es contradictorio, pero si yo protejo las perdices tendré perdices para cazar en otoño. Si no las protejo me quedaré sin ellas, que es lo que nos está pasando. De manera que no hay ninguna contradicción. Por otra parte, yo no soy ningún cazador ciego, pendiente del morral o de la percha, sino que me gusta disfrutar del campo, ver amanecer, ponerse el sol, ver el rojo en las matas… y si además cazo un par de perdices y me las como al martes siguiente, pues tan contentos. Pero no mido la diversión ni el placer por el número de piezas."

Miguel Delibes: fragmentos de entrevistas, en República de las Letras, núm. 117, junio 2010, p.10.