segunda-feira, fevereiro 25, 2019

Sê vertical (24/II/2019)

Sê vertical e
verás o que realça
a tua sombra.

Haiku dominical a passear iluminado pela excelência do «Terras Sem Sombra».
Foto de Luis Leal em Cromeleque de Xerez

quarta-feira, fevereiro 20, 2019

Sabores de precariedade, mas com tanto amor...

Abro o paposseco, barro-o com manteiga, e levo o meu paladar ao passado familiar, dentro de um saquinho de plástico transparente, acompanhado por um leite com chocolate.
Fi-lo hoje à tarde e as minhas papilas gustativas levaram-me para esses meses recém-licenciado, em que lanchava dentro do carro, nos intervalos de um curso de formação profissional de webdesign.
Foram uns quantos meses que nos meteram num centro de formação, inprovisado para o efeito, um outsourcing para o IEFP, ali nas para as bandas da zona industrial. Éramos uns quantos, boa gente, na maioria. A Sara, o José, o Rick Paredes (onde andará?), a Andrea, a Marta, o Luís... eu a sonhar com uma reflex para dedicar-me ao hobbie da fotografia. Todos licenciados, alguns com mestrado, apesar de nessa época todos sermos pré-Bolonha e os mestrados não se venderem como a pizza bolonhesa. Fordesk, assim se chamava o curso, ou o projecto de formação. A verdade é que com todo conhecimento útil ou inútil daqueles dias, vi como um grupo de jovens se fez adultos em plena pré-crise de 2008 e sem redes de grande sociabilidade. Tínhamos HI5, quanto muito.
Fomos tratados com desprezo, sentimos o estigma de sermos putos sem trabalho, falaram-nos como merda, mas o que não esperavam é que nós nos levantássemos e os olhássemos cara a cara. Ninguém gosta de ter merda atrevida em frente do nariz, tratam-na com mais cuidado e sabem se a pisarem terão uma chata consequência agarrada à sola do sapato. Tudo passou, dali saímos ainda mais precários e passámos a figurar nas listas oficiais do desemprego.
Contudo, o que guardo destes tempos difíceis nada tem a ver com computadores ou páginas web que não sei desenhar. Guardo os almoços diários com os meus avós, do outro lado da variante, mas perto da zona industrial. Guardo o sabor do paposseco diário, trazido para casa quando passava a carrinha do padeiro de manhã pelo meu avô, e barrado com becel pela minha avó. Eles que, na sua vida infinitamente mais precária que a minha, me acarinhavam com certezas de não desanimar. «Alguma coisa há de aparecer neto», diziam. E apareceram, verdade, mas por dentro continuo a saber que deveria ter saboriado com mais alegria aquele pão simples e aqueles pacotes de leite diários. Mas era gaiato. Pensava que trabalhar na área em que tinha formação era a minha obrigação e o meu objectivo. Consegui-o porque estava bem alimentado. Sei que valeu a pena por eles, por ainda me terem visto com trabalho digno e com direitos. Porém, hoje, não sei se os sonhos de então, as ilusões da vocação, me consolam. Não há desilusão, não pensem. Há uma pessoa que cada vez se contenta mais com menos, mas, paradoxalmente, tem mais ambições de infinito. E tudo isto porque pude nutrir-me com papossecos durante os lanches da minha precariedade. Estou satisfeito, grato. Mas falta-me algo. O quê? Penso que o sei bem. Se me enganar, pouco ou nada me vai mudar...

O Geraldes Lino deixou-nos


Acabo de saber que o Geraldes Lino morreu. Fico com pena. Tive o prazer, junto com o Pedro, de desfrutar da sua companhia há uns anos, aquando de umas jornadas da APPEX. Não conheci ninguém que soubesse mais de banda desenhada do que ele, com a sua mala cheia de acetatos para nos mostrar.
Parece que o estou a ver, à nossa espera, na estação de autocarros de Badajoz.
Perdemos o contacto porque deixei de ler e escrever tanto sobre BD, mas, de vez em quando, ainda me assomava ao seu magnífico blog (Divulgando Banda Desenhada), um espólio digital que espero ser mantido pela bedeteca de Lisboa.
Vá para onde for, acredito que continuará a divulgar BD...



Decir que Ángel Campos tenía un alma portuguesa no me parece honesto de mi parte.

Decir que Ángel Campos tenía un alma portuguesa no me parece honesto de mi parte. No creo en nacionalismos, ni siquiera en poesía. Sin embargo, comprendo que su lírica era única, con substancia propia, y, por eso, hoy es patrimonio intangible (e indiscutible) de Extremadura, de la lengua española y encuentra en la cultura portuguesa (que tanto difundió) un “palmo de tierra” al que, ambos, también podemos llamar patria.
Traducir sus versos fue un privilegio, como fue un privilegio, ayer, encontrarme rodeado de noble gente que homenajeó su memoria y su legado, ese que, “mientras se pueda pensar, no encontrará olvido”…

(Fotos de Jose Manuel Corbacho y Esperanza Rayo)







Bater palmas...

Bater palmas faz
falta em arte, tanto 
como discrição. 

segunda-feira, fevereiro 18, 2019

Encuentro-Homenaje a Ángel Campos Pámpano




(...)
mas tu eras a sabedoria

e o teu segredo
uma efémera calma
sobre a toalha de linho

oferecias-me café e eu continuava
a conversar em silêncio com os teus olhos
procurava uma resposta que demorava a chegar

tenta ser feliz com o que fizeres
(...)

Excerto de "O Teu Segredo" 
(in "A Semente na Neve" 
de Ángel Campos Pámpano,
 ERE, pp.43 e 45, trad. Luis Leal)

Encuentro-Homenaje a Ángel Campos Pámpano, 19/II/2019



sexta-feira, fevereiro 15, 2019

quinta-feira, fevereiro 14, 2019

Sonho

É raro lembrar-me dos sonhos, mas hoje era impossível não o fazer. Nos confins do meu cérebro, a noite que passou, sonhei com uma personagem do mundo da sétima arte. Uma figura paternal, idosa, então, melhor, uma espécie de avô do celulóide.

Não recordo ao pormenor do que falávamos, sei que falávamos, sentados em duas cadeiras simples, duras, mas daquelas que te fazem sentar bem para evitar lombalgias. Não havia ninguém mais na sala. Agora, vendo bem, não sei se era uma sala, talvez um espaço quase vazio onde poderíamos montar o cenário que quiséssemos. 

Falei, falei. Era eu e não me ocultava atrás de qualquer tipo de conversa de circunstância. Talvez falasse de como, de vez em quando, tenho medo, de como com frequência me engano ou de como me emocionei, ainda ontem, a olhar para as flores das nossas amendoeiras.  Falei e falei, essa foi a única certeza, feita sensação.

Ironicamente, talvez a rotina do corpo tivesse a enviar sinais ao cérebro, quando nos levantámos e nos despedimos com um abraço, honesto, frágil, despido de egos, o telemóvel activou o despertador e o Jack Johnson lá me trouxe para o mundo empírico.

Mesmo sendo onírica, soube-me bem, soube-me a pouco. Sonharei com ele outra vez?

quarta-feira, fevereiro 13, 2019

Crónica: "O Processo" de Luis Leal (in "Mais Alentejo" nº147, p.48)

O mundo está repleto de coisas que só se podem demonstrar com o tempo. Tem o seu lado de consolo, mas também de dureza. “O Processo” vivido por José P., publicado na última “Mais Alentejo” de 2018, parece kafkiano, não há dúvida. Porém, sublinha que, quando uma pessoa faz o que deve, não há nada a temer. O resto é melhor deixá-lo nas mãos do tempo...

El mundo está repleto de cosas que solo se pueden demonstrar con el tiempo. Tiene su lado de consuelo, pero también de dureza. “O Processo” vivido por José P., publicado en la última “Mais Alentejo” de 2018, parece kafkiano, no hay dudas. Sin embargo, subraya que, cuando uno hace lo que debe, no hay nada que temer. Lo demás es mejor dejarlo en manos del tiempo…
Crónica: "O Processo" de Luis Leal (in "Mais Alentejo" nº147, p.48)

Crónica: "O Processo" de Luis Leal (in "Mais Alentejo" nº147, p.48)



Imagem da banda desenhada de "O Processo" de Franz Kafka
José P. era um funcionário público com a mania de transcrever citações no seu bloco de notas. A última, de Onésimo Teotónio de Almeida, assim a trasladou: “Para nos apercebermos mais nitidamente das mudanças lexicais e das alterações culturais (...), seria importante verificar a diminuição de termos como dever, honra, respeito, humildade, modéstia, honestidade, virtude, autenticidade, genuíno, compromisso, consciência, lealdade, coragem (...)”. Apesar da intenção de o fazer, José P. não dispôs de tempo para encontrar alguma “app”, ou “googlar”, a fim de saber a frequência com que se usam algumas destas palavras e quais seriam as mais usadas actualmente na sua língua.

Por obrigação (não por vocação), José P. passou os últimos meses, na companhia de outros colegas de profissão, imerso num concurso de acesso à função pública. Assim foi e, consciente da sua imperfeição humana, porém com formação e experiência profissional a habilitarem-no para o desempenho das funções que se lhe exigia, fê-lo da melhor maneira possível e de acordo com a legislação vigente, algo que, apesar da tarefa nada agradável, lhe permitia dormir descansado, sabendo que, graças a este procedimento, não seria atacado pelo “karma”.

Durante o processo, José P. não sublinhou citações. Redigiu e assinou papelada, em especial relatórios de ocorrências (quiçá úteis para guiões de humor, ou de terror, dependendo da sensibilidade do espectador), que agora poderão ser consultados nos arquivos ou “hackeados” da base de dados da administração pública.

Acompanhado pelos restantes membros do júri, José P., ciente da responsabilidade das suas funções, tal como do dever para com os aspirantes, fez tudo o que os seus superiores lhe indicavam, por vezes com certa dificuldade em receber informação de quem lha deveria legalmente transmitir e em condições laborais desapropriadas à obrigação que tinha em mãos. E assim, com um certo estoicismo, tudo se fez.

O acesso aos quadros do Estado decorreu (apesar dos episódios hollywoodescos em acta para a posteridade!) dentro dos prazos e das normas previstas. Como deve ser, todos os candidatos tiveram o direito a serem esclarecidos acerca da sua avaliação (oralmente e por escrito) podendo reclamar tal juízo. O júri estava aí para isso e fê-lo a tempo e horas, debaixo dum olhar (que se espera atento, mas pelo qual não era responsável) dos serviços de inspecção. O certo é que não teve mãos a medir, sendo várias as reclamações às quais esse grupo de profissionais, com José P. à cabeça, respondeu, munido de muitos (muitíssimos) apontamentos, tabelas, grelhas e somatórios de critérios de avaliação.

Fruto, quem sabe, do Verão quente, de movimentos de denúncia necessários, de uma sociedade cada vez mais consciente de direitos, o simples facto de se ser membro dum júri já é motivo de suspeição, quase sinónimo de corrupção. José P. não está livre de defeito, tal como os seus pares avaliadores e tal como qualquer candidato, do mais brilhante ao mais ignóbil.

O dever pesa tanto como o direito. Hoje José P. tem a sensação de só se ter o direito a atirar pedras e esconder a mão. Já que se atira uma pedra, e se pode aleijar o outro, há o dever de mostrar a mão, provar o porquê do apedrejamento.

Numa dessas queixas, alguém afirmou “existirem irregularidades” no processo. O funcionário público, com a mania de transcrever citações, e a sua equipa, respondeu com a justificação imperiosa por lei, solicitando tais irregularidades serem demonstradas. Tão acostumados estamos ao silêncio administrativo, que, desta vez, o silêncio veio de quem reclama.

Cumpridos os princípios éticos e de conduta (regulados pelos artigos 53 e 54), o júri dissolveu-se, voltando ao simples e desacreditado dia-a-dia do funcionalismo público. Os aspirantes ocuparam as vagas por mérito próprio, com tudo de circunstancial que isso implica, e José P. volta ao lápis de sublinhar, desenganado de evolução, respeito pelos direitos e integridade do seu semelhante. Passar do 8 ao 80, é um “processo” mais que kafkiano, é moralizar intrujice com embustice.

“Somos culpados até se provar que somos inocentes ou culpados. Os media e as redes sociais metem-nos no calabouço desde o primeiro momento. O direito ao bom nome e à honra é coisa de séculos passados. Anacronismos...”. Eis uma intromissão de José P. entre as ilustres citações do seu bloco. Enquanto se dilui o processo numa lembrança de ter de ser esquecida, o funcionário pensa “cada vez temos mais medo um dos outros”...