quarta-feira, fevereiro 20, 2019

Sabores de precariedade, mas com tanto amor...

Abro o paposseco, barro-o com manteiga, e levo o meu paladar ao passado familiar, dentro de um saquinho de plástico transparente, acompanhado por um leite com chocolate.
Fi-lo hoje à tarde e as minhas papilas gustativas levaram-me para esses meses recém-licenciado, em que lanchava dentro do carro, nos intervalos de um curso de formação profissional de webdesign.
Foram uns quantos meses que nos meteram num centro de formação, inprovisado para o efeito, um outsourcing para o IEFP, ali nas para as bandas da zona industrial. Éramos uns quantos, boa gente, na maioria. A Sara, o José, o Rick Paredes (onde andará?), a Andrea, a Marta, o Luís... eu a sonhar com uma reflex para dedicar-me ao hobbie da fotografia. Todos licenciados, alguns com mestrado, apesar de nessa época todos sermos pré-Bolonha e os mestrados não se venderem como a pizza bolonhesa. Fordesk, assim se chamava o curso, ou o projecto de formação. A verdade é que com todo conhecimento útil ou inútil daqueles dias, vi como um grupo de jovens se fez adultos em plena pré-crise de 2008 e sem redes de grande sociabilidade. Tínhamos HI5, quanto muito.
Fomos tratados com desprezo, sentimos o estigma de sermos putos sem trabalho, falaram-nos como merda, mas o que não esperavam é que nós nos levantássemos e os olhássemos cara a cara. Ninguém gosta de ter merda atrevida em frente do nariz, tratam-na com mais cuidado e sabem se a pisarem terão uma chata consequência agarrada à sola do sapato. Tudo passou, dali saímos ainda mais precários e passámos a figurar nas listas oficiais do desemprego.
Contudo, o que guardo destes tempos difíceis nada tem a ver com computadores ou páginas web que não sei desenhar. Guardo os almoços diários com os meus avós, do outro lado da variante, mas perto da zona industrial. Guardo o sabor do paposseco diário, trazido para casa quando passava a carrinha do padeiro de manhã pelo meu avô, e barrado com becel pela minha avó. Eles que, na sua vida infinitamente mais precária que a minha, me acarinhavam com certezas de não desanimar. «Alguma coisa há de aparecer neto», diziam. E apareceram, verdade, mas por dentro continuo a saber que deveria ter saboriado com mais alegria aquele pão simples e aqueles pacotes de leite diários. Mas era gaiato. Pensava que trabalhar na área em que tinha formação era a minha obrigação e o meu objectivo. Consegui-o porque estava bem alimentado. Sei que valeu a pena por eles, por ainda me terem visto com trabalho digno e com direitos. Porém, hoje, não sei se os sonhos de então, as ilusões da vocação, me consolam. Não há desilusão, não pensem. Há uma pessoa que cada vez se contenta mais com menos, mas, paradoxalmente, tem mais ambições de infinito. E tudo isto porque pude nutrir-me com papossecos durante os lanches da minha precariedade. Estou satisfeito, grato. Mas falta-me algo. O quê? Penso que o sei bem. Se me enganar, pouco ou nada me vai mudar...

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