quarta-feira, outubro 29, 2014

O calão das trincheiras


Por estes e outros motivos é que sou um defensor acérrimo do calão e do seu estudo histórico e linguístico (e o vou dizendo quer para manter a sua história ou libertar a frustração do meu espírito). 
Eu, cuja pinta de “bife” não delata as minhas origens, finalmente entendo de onde vem este termo (nada a ver com o mundo dos talhos e magarefes) e outros que são uma constante no léxico português e com os quais podemos honrar os nossos avós (os meus bisavôs Leopoldo e Umbelino) que combateram na 1ª Guerra Mundial. Recordemos também que os que de lá vieram, meio loucos, “esgazeados” como ficaram baptizados, vítimas de gazes (como o mostarda), com a sua miséria pessoal enriqueceram o vocabulário e o imaginário cultural do povo português.
No centenário da 1ª Guerra Mundial, “Guerra de França” como dizia a sabedoria empírica, alheia a terminologias históricas, da minha avó Helena, continuar a entender o seu calão é uma boa homenagem aos que por lá andaram, “tugas”, “camones” ou “boches”. 
Vale a pena ler este trabalho da “Visão História”.

segunda-feira, outubro 27, 2014

De pé, amparado pela parede do tempo (Diário)

De pé, amparado pela parede do tempo, contemplo uma nova vida se forma no ventre da Elsa, da minha mulher. De pé, fascinado pela magia dum monitor.
Já criámos vida ao aceitarmo-nos como homem e mulher, reafirmámos a vida com o nascimento do Santiago e hoje contempla-se, nesta janela, não sei se de sistema operativo Windows, uma nova existência, de género provável masculino, de traço recente, a lápis, pouco apertado, provisório, no bloco de notas das nossas vidas.
Se se afirmar, contornar a caneta, a tinta permanente, chamar-se-á Xavier e não sabemos se chegará ao extremo oriente mas já atracou e evangelizou os nossos corações.
A escravidão do tempo revela-se na matéria perene dos nossos corpos. De isso não tenho dúvidas. Liberta apenas está, dos grilhões, quando explode com energia infantil, na recusa, não dominada pela gramática adulta, desarrumada, despenteada, mesmo com bronquite e a antibiótico, como as gracinhas do meu filho, alheio a tudo o que escrevo.
Pode ser que herde da infância a ternura e de poeta alguma loucura, que seja a sua carta de alforria à escravidão da matéria e do tempo. Que leia, talvez isto, que a alma pode ser tão perene quanto o corpo se não a cuidamos.
Este é o nosso tempo. Este é o nosso momento, esteja eu aqui a escrever, tu na cama a saltares, ou a mamã a carregar no ventre o que se vê numa janelinha dum monitor, que já é, mas ninguém sabe o que será.

"A Mística do Momento" num café.

O João Afonso, na letra do seu "Cheiro a café", canta "o sentido que eu tive da vida num café", o que poder-se-ia perfeitamente adaptar a esta "Mística do Momento" que tive numa bica, na companhia de José Tolentino Mendonça. "Não desistas da luz" e "agradece a dança luminosa do mundo ao teu redor" foram doces saquinhos de verdade para os meus sentidos, tal como a obra, neles citada, que agora dorme na minha cabeceira à espera de, logo à noite, ser acordada.

"Todo o silêncio" - José Luís Peixoto


domingo, outubro 26, 2014

Para o Pessoa

«Quando contemplo o firmamento, obra das tuas mãos, a lua e as estrelas que fixaste lá, que é o homem – pergunto – para que dele Te lembres? Que é o filho do homem, para que Te ocupes dele?»
(Sl. 8, 4-5)

Para o Pessoa
Poeta versava com peta.
Misturou sinto com absinto
A estalar corações de vidro pintados,
Embriagado de si mesmo, como uma pedra, livre do monte,
No pára-brisas de um Chevrolet pela serra de volta à aldeia urbanizada pela sua infância.

Escreve de pé a razão que não sei
Que não soube e não souberam.
Digna do desassossego
Ao qual não me nego
Quer na estante, quer no instante.
Como Pessoa.

Mas não sou Pessoa
De encostar-se, de pé, à cómoda insónia.
Tenho o medo sonâmbulo de desfalecer no peso apoiado,
Que caia no chão, nas balelas,
E se abram as gavetas para as quais escrevo.

Soa-me a Pessoa
(a Fernando,
Pelo ir pela vida rimando,
Postando
Moderna filosofia de rede social).

Citando se vai andando
Pela literatura da amargura,
De avatares heterónimos,
Imbróglios
Dessa treta que é
Caso particular de binómio de

Pessoa humana.  

sábado, outubro 04, 2014

A minha manhã mais matinal (António Lobo Antunes)

"Assim a minha mãe: morreu à clara luz do dia e foi sepultada à clara luz do dia. Afastei-me um pouco porque sentia a terra das pás a cair-me no corpo". 
António Lobo Antunes in "Visão" (2/10/2014)