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segunda-feira, setembro 09, 2024

"Descendiente (de abril)", Luis Leal in “Cuaderno extremeño para el debate y la acción” , nº13, pp.131-134.






 

"Descendente" - Crónica de Luis Leal in “Mais Alentejo”, nº 166, p. 110

"Descendente" - Crónica de Luis Leal in “Mais Alentejo”, nº 166, p. 110.

 

"Descendente" - Crónica de Luis Leal in “Mais Alentejo”, nº 166, p. 110

"Descendente" - Luis Leal

Desde miúdo que sei o que é um “esgazeado”, quero dizer, sei bem o que é ter os olhos abertos de espanto, medo ou estar ofegante e esbaforido, a roçar a loucura. Nascer no Alentejo dotou-me desse vocabulário de forma tão natural que só na vida adulta me apercebi de ser parte da história de tantas famílias à qual a minha não escapou.

Sou descendente de esgazeados, concretamente os meus bisavôs maternos Leopoldo e Umbelino, combatentes da 1ª Guerra Mundial, vítimas das trincheiras e do gás mostarda. O meu bisavô Leopoldo até foi dado como morto no Redondo e ressuscitou de volta a Portugal depois do cativeiro alemão. Pouco mais sei sobre ambos, a miséria do Estado Novo assolou os seus filhos e poucas histórias me ficaram para genealogia.

Os meus avós João e Ventura também andaram pelas lides militares, nos anos 40, mas a “neutralidade” de Salazar apenas os levou a cumprir o serviço militar obrigatório e a única experiência que me legaram foi de humor, com o meu avô João a guardar, toda a noite, no Forte da Graça de Elvas um morto qualquer. Isso e irem e voltarem, a pé ou de bicicleta, nas licenças, da raia para a zona de Évora. Gente rija, mas, dessa época, também foram parcos em informação, sendo o meu tio António quem, por profissão (carpinteiro) e posição social (presidente da junta), mais me ilustrou como se vivia nessa época, relatando negócios ao longo das vias do comboio (arrancadas na minha juventude) e passagens de espanhóis em direção ao Atlântico. Hoje, mais ou menos com uma experiência e cronologia de vida semelhante, sinto-me muito identificado com esta geração, enquadrada numa transição que nasceu de uma guerra, viveu revoluções políticas, crises económicas e, dada a turbulência dos tempos, aplaude enquanto nos tiram a Liberdade.

E chegámos à geração dos meus pais e dos meus tios. Esses jovens, entre 1961 e 1974, educados num colonialismo de metrópole longínqua a quem a instituição militar portuguesa abriu os quadros de sargentos e oficiais devido ao esforço de guerra em África (em proporção, sete vezes superior ao do Vietnam) e não por democratização de castas. É óbvio que não se obrigaria os descendentes de alta patente a irem para o mato de G3, camuflado básico, boné abas de grilo em vez de um capacete, ainda por cima com um macuto cheio de fome. Haveria cunhas no regime para ficar livre ou, no pior dos casos, atrás de uma secretária, em mangas de alpaca. A brigada do reumático recrutou na casa de quem menos tinha e, por si só, já sobrevivia. Gente como o meu tio Manuel, o meu pai e os seus camaradas, que foram parar com os costados ao Ultramar devido à sede de poder e recursos que a história nos acostumou.

Aqui entro eu, duas décadas depois, livre da tropa (mas com cédula militar e inspeção testicular na Calçada da Ajuda), filho da madrugada de Abril, nascido nos hospitais do SNS, formado pelo ensino público português, a fazer a mala para rumar onde quer fosse (quis a vida que fosse Espanha), num dos momentos mais marcantes da minha existência a falar com o meu pai. Durante anos queremos afastar-nos da sua personalidade, crescer, ser e ter a nossa individualidade. Sou e quero ser diferente do meu pai (apesar de emular com os meus filhos, as velhas fotografias às suas cavalitas). Ele não foi criado como eu, às mãos do afecto, e a reserva, a timidez, levaram as suas emoções a não aflorar a cores e, muitas vezes, continuam no preto e branco da RTP dos anos 70. Porém, como descendente, jamais esquecerei esse dia em que o meu desânimo e imaturidade me faziam crer estar na pior situação do mundo. O meu pai, pouco dado às palavras e aos meus dilemas, disse-me: “Luis, eu, com a tua idade, estava no Ultramar e nem pensava se ia ter trabalho ou não, nem sequer sabia se ia voltar vivo…”. É possível que o meu olhar regressasse ao esgazeado dos meus bisavós e os meus testículos tenham reagido de forma mais natural do que ao toque do médico militar, mas sei que esse dia o meu pai fez de mim um homem.

Escrevo esta crónica no 50º aniversário do 25 de Abril, e, com toda a incerteza do presente, há algo que quero reivindicar para sempre: o legado de uma geração que, com todas as suas conquistas e fracassos, teve tomates para lutar pela democracia. Eu não sei se os teria…

Foto de Mário Ventura (1974)



domingo, junho 30, 2024

Domingo de televisão matutina em Portugal

30/VI/2024 - Domingo de televisão matutina em Portugal: Vejo uma reportagem ("Linha da Frente") sobre a falta de professores na escola pública portuguesa (incluindo relatórios para o mundo feitos pela UNESCO) e, para além da indisponibilidade de várias direções e do silêncio ministerial, choca-me saber que vários pais e encarregados de educação, contactados para participarem na mesma, renunciaram com medo de os seus filhos sofrerem represálias. "Ipsis verbis": "represálias" pelo direito à educação. Se pararmos para pensar (em plena liberdade neuronal) tudo tem correlação...
Domingo de televisión matutina en Portugal: Veo un reportaje ("Linha da Frente") sobre la falta de profesores en la escuela pública portuguesa (incluyendo informes para el mundo hechos por la UNESCO) y, además de la indisponibilidad de varias direcciones y del silencio ministerial, me impacta saber que varios padres y tutores legales, contactados para participar en el mismo, renunciaron por miedo a que sus hijos sufran represalias. "Ipsis verbis": "represalias" por el derecho a la educación. Si nos detenemos a pensar (en plena libertad neuronal) todo tiene correlación...

terça-feira, março 19, 2024

"A Senhora Condescendência" - Crónica de Luis Leal in “Mais Alentejo”, nº 165, p. 68


Ia a caminho de um almoço familiar e tinha acabado de passar a fronteira quando a rádio me deu a notícia do falecimento do Comendador Rui Nabeiro. À cabeça veio-me “hoje não vou ver a minha irmã e é bem possível que no céu já se possa tomar um bom café".

    Apesar da relação laboral privilegiada da minha irmã no trato diário com o Sr. Rui e da estima e da saudade que lhe deixou, nunca tive a oportunidade de o conhecer. Porém, sou ciente do seu legado na região, no país, na minha Espanha adoptiva e, para além da fortuna e do património, não abdicou de ser um homem bom, cuja essência não se viu corrompida pelo deus pecunio. A sua biografia é notável, quer seja vista através da comparativa de escalar um Everest empresarial com o alpinista João Garcia, através de grandes entrevistadores como a Anabela Mota Ribeiro ou o Luís Osório, através dum “Almoço de Domingo” ficcional do José Luís Peixoto, ou, simplesmente, através de quem com ele lidou durante os seus quase 92 anos a provarem que no capitalismo cabe o altruísmo. Em suma, como dizia alguém e subscrevo, “mais Srs. Rui e menos Musks!”. 

    Nove décadas de vida e não acredito que, na sua senectude, alguém no seu perfeito juízo se tenha dirigido ao “Sr. Rui” (como sempre fez questão de ser tratado) com qualquer tipo de condescendência como algumas pessoas se dirigirem a outros nonagenários. Tristemente, o dinheiro, o estatuto, traz algumas garantias de como a sociedade nos vai tratar se tivermos a ventura (ou desventura) de chegarmos a esta idade. Vejam-se as claras diferenças no uso lexical de “cota”, “idoso”, "ancião" e “velho” e o “peso da idade” (vulgo PDI) mais do que evidentes em sociedades sensíveis à moda da denúncia de todo o tipo de pretensas injustiças, contudo, a necessitarem prestar mais atenção ao “idadismo”.

    Confesso, caro leitor, há muito tempo que não pensava nisto. Cresci entre pessoas de idade no seio da minha família e no entorno laboral da minha mãe (que dedicou mais de duas décadas da sua vida a um Centro de Dia) e, de maneira quase intuitiva, aprendi a respeitar todo tipo de rugas e cabelos grisalhos. Creio que vi um pouco de tudo, desde o queixume do reumático, a viuvezes traumáticas e libertadoras, a demência progressiva, a solidão, o mau caráter (quanto mais velho pior!), a miséria de corpo e de espírito, até ao júbilo de um ser de ter vivido uma vida que mereceu ser vivida, à sabedoria, ao humor geriátrico, e à contemplação tantas vezes condenada à apatia da televisão.

    Como numa foto, voltei aos meus verdes anos rodeado de gente já amarelecida por ter em mãos uma tradução duma peça ambientada num Lar de Terceira Idade espanhol e, na hora de adaptar à realidade sociolinguística portuguesa, deparei-me com uma das formas de tratamento que mais abomino com qualquer ser humano, quero dizer, quando nos dirigimos a alguém infantilizando-o. Que fique claro que não outorgo más intenções ou desprezo a quem muitas vezes se dirige assim a um idoso, tratando-o como uma criança, usando um tom condescendente que nem sequer com as verdadeiras crianças me parece pertinente usar em excesso. Não é por uma pessoa ter caído nas garras do Alzheimer, do Parkinson, ou da passagem do tempo, que automaticamente as devemos tutear ou usar um registo infantilóide. O Sr. João lá por não se lembrar do nome dos netos e estar acamado não passa a ser o “Joãozinho”, mesmo que a sua calvície redondinha nos remeta para um bebé fofinho. É preciso ter cuidado, o “carinho”, a meu ver, não deriva por aí. Evoluímos, temos diversos meios e gente consciente que a terceira idade deve ser tratada de maneira diferente da primeira infância pelo simples facto de, por mais que o idoso pareça regredir à infância, há uma diferença significativa entre ambos: ser criança implica ainda não ter passado.

    Se chegar à idade do Sr. Rui, por mais infantil que seja a minha personalidade e fisionomia, não quero ser o “velho Luisinho”, nem que falem comigo como nem sequer falo ao meu filho de 2 anos. Não quero salamaleques, nem títulos. Sentir-me-ei bem se continuar a ser o Luis e, caso mereça ser chamado “Ti Luis”, será porque o Alentejo sempre me fez ver que a sombra dum carrasco jamais se pode comparar à sombra duma azinheira.

Sr. Rui Nabeiro



"A Senhora Condescendência" - Crónica de Luis Leal in “Mais Alentejo”, nº 165, p. 68

Esta crónica já tem uns meses, tal como o Sr. Rui já faleceu há um ano, contudo creio que continua vigente e reitero o que se disse por aí: “Mais Srs. Rui e menos Musks!”. O falecimento deste homem ímpar e um trabalho de tradução literária que tive em mãos também me levaram a refletir se, em pleno século XXI, na era do “omniecrã”, tratamos com o devido respeito e prestamos a devida atenção aos nossos idosos. (in “Mais Alentejo”, nº165, p. 68)

Esta crónica tiene ya unos meses, al igual que el Sr. Rui falleció hace un año, sin embargo, creo que sigue siendo relevante y reitero lo que se ha dicho por ahí: “¡Más Sres. Rui y menos Musks!”. El fallecimiento de este hombre excepcional y un trabajo de traducción literaria que tuve entre manos también me llevaron a reflexionar si, en pleno siglo XXI, en la era de la “omnipantalla”, tratamos con el debido respeto y prestamos la debida atención a nuestros ancianos.






sábado, março 09, 2024

Gramática eleitoral: uma observação sobre o modo imperativo no arco da governação português. Gramática electoral: una observación sobre el modo imperativo en el arco de gobernación portugués.

09/III/2024: Portugal vai a votos no domingo e olho para o espectro político através da língua portuguesa concluindo que a qualidade da democracia reside na pluralidade de siglas, acrónimos e algum substantivo aliado a um adjetivo para designar alguma coligação ou iniciativa ideológica. Contudo, quando o modo imperativo chega ao espaço democrático tem exatamente o mesmo uso que na língua do dia-a-dia, isto é, oferecer poucas sugestões (geralmente simplistas) e sim focar-se a dar instruções e ordens. É curioso, como no trabalho e noutros ambientes, não se costuma gostar de mandões e dessa gente cuja vontade impera porque sim e sem direito ao contraditório. O modo imperativo tem esse uso tanto no funcionamento da língua como no regime político que preconiza ou instaura, é pouco plural e não admite complexidade como, por exemplo, o modo conjuntivo ou até mesmo o infinito que, quando é pessoal, assume uma certa empatia pelo outro. Mas isto são coisas de análise gramatical e de outros tipos de análise que se tem desprestigiado ao longo dos anos. Às vezes basta saber um pouco de gramática para antever programas políticos e o que daí pode advir... 

09/III/2024: Portugal va a votar el domingo y observo el espectro político a través de la lengua portuguesa, llegando a la conclusión de que la calidad de la democracia reside en la pluralidad de siglas, acrónimos y algún sustantivo acompañado de un adjetivo para designar coaliciones o iniciativas ideológicas. Cuando el modo imperativo llega al ámbito democrático, tiene exactamente el mismo uso que en el lenguaje cotidiano, es decir, ofrece pocas sugerencias (generalmente simplistas) y se centra en dar instrucciones y órdenes. Es curioso cómo, en el trabajo y otros ámbitos, no se suele gustar de la actitud mandona y de aquellos cuya voluntad prevalece porque sí y sin derecho al contradictorio. El modo imperativo tiene ese uso tanto en el funcionamiento del idioma como en el régimen político que preconiza o instaura; es poco plural y no admite complejidades como, por ejemplo, el modo subjuntivo o incluso el infinitivo, que, cuando es personal, muestra cierta empatía hacia el otro. Pero estas son cuestiones de análisis gramatical y de otros tipos de análisis que se han desprestigiado a lo largo de los años. A veces, simplemente conocer gramática permite antever programas políticos y lo que puede advenir de ellos...


domingo, fevereiro 18, 2024

“O Nosso Capitão” - Luis Leal (versão em português do original “Nuestro Capitán”, publicado em Rayanos Magazine)

“O Nosso Capitão” - Luis Leal (versão em português do original “Nuestro Capitán”, publicado em Rayanos Magazine)

    A madrugada recordava Abril, mas foi no primeiro dia de Julho de 1944, quando a cidade raiana de Castelo de Vide viu nascer o nosso Capitão. Filho de um trabalhador ferroviário, desde sempre soube que a vida dura e difícil percorria, como os comboios, Portugal de norte a sul.
    Conheceu a tristeza demasiado cedo e, apesar dos seus olhos limpos e claros, nunca foi capaz de a esconder totalmente do seu olhar. Talvez tenha sido o destino que o levou a Lisboa para os dois momentos fundamentais da sua vida, sendo o primeiro a morte da sua mãe, atropelada por um autocarro. A partir desse momento, não quis regressar à capital. O sonho de qualquer criança de quatro anos de visitar o Jardim Zoológico tornou-se uma lembrança de lágrimas.
    Cresceu forte e sem gostar de futebol. Gostava de ler e falar sobre coisas de história e guerra, que, num futuro próximo, já como militar, conheceria em primeira mão. Ao contrário das outras crianças, ele, numa idade tão precoce, já sabia o que queria ser quando crescesse e isso refletia-se na forma como usava o cabelo bastante curto, “à escovinha”. De espírito nobre, odiava os rufiões e, com a medalha de ouro do retrato da sua mãe, que nunca tirou do peito, desenvolveu uma coragem admirada pelos outros rapazes, tornando-se um homem de ideias firmes e claras.
    Acreditando na justiça, e numa ideia de pátria aprendida na escola primária, ingressou na academia militar. Nunca esqueceu as suas origens, a ferrovia do seu pai e as serranias da sua terra. Portugal estava em guerra na época. Lutava para manter as riquezas das suas colónias, mas na metrópole havia pobreza disfarçada de honesta escassez.
    O nosso Capitão aprendeu a fazer guerra, porém o seu coração só desejava a paz. Da guerra sabia tudo, ou quase tudo. Certamente, em tempos passados, teria sido um cavaleiro, com o seu corcel. Mas a cavalaria moderna não usa cavalos de carne e osso, usa cavalos de metal, enormes tanques que cospem fogo, arrasando muralhas e castelos. Partiu para África para defender os interesses do seu país na chamada Guerra Colonial Portuguesa. Primeiro em Moçambique e depois na Guiné-Bissau. Cumpriu o seu dever, mas a sua consciência repreendia-o, incitando-o a desobedecer às suas ordens. Não via qualquer justiça em lutar nessa guerra, onde o facto de os seus camaradas matarem ou morrerem não importava aos políticos e generais a viverem numa opulência nada honrosa quando comparada com a escassez no resto do país. O militar, que outrora acreditara na grandeza histórica do seu país, regressou a casa certo de duas coisas: que o mandariam novamente para matar ou morrer nessa guerra sem sentido e que há momentos em que a única solução é desobedecer.
    Encontrou o amor nos braços de Natércia e mudou-se para Santarém, para a Escola Prática de Cavalaria, onde instruiu os seus homens com a firmeza de carácter que herdara do pai. Um filho da ferrovia sabe que não se pode chegar atrasado quando o dever chama, e o nosso Capitão sabia que o seu destino o levaria novamente a Lisboa, para enfrentar o seu passado e lutar pela alegria dos seus olhos e do seu país.
    Na parada do quartel, reuniu os seus soldados, futura carne para canhão que conheceria o horror de África se ele e outros capitães como ele não lhes tivessem falado com a verdade que deve reger o bom militar, aquele que sabe que as ideias mais nobres sempre foram protegidas pelos guerreiros. Com o seu uniforme de manobras e o lenço do seu amor no bolso, o nosso Capitão dirigiu-se aos seus soldados com a segurança de um líder que prescinde do protagonismo pelo bem comum.
    “Meus senhores, como todos sabem, há diversas modalidades de Estado. Os estados socialistas, os estados capitalistas e o estado a que chegámos. Ora, nesta noite solene, vamos acabar com o estado a que chegámos! De maneira que, quem quiser vir comigo, vamos para Lisboa e acabamos com isto. Quem for voluntário, sai e forma. Quem não quiser sair, fica aqui!”.
    E uma multidão de jovens, filhos do povo humilde e trabalhador, para quem a vida militar era bastante mais suave do que a fome do campo ou o calor da fábrica, formou uma coluna militar em direção à capital de um país que, há anos, não ouvia a voz da imensa maioria dos seus filhos. Só foram detidos por um semáforo vermelho, um sinal de que a segurança da vida humana é fundamental para que exista liberdade.
    O nosso Capitão foi treinado para obedecer, para ser leal e disciplinado, mas naquela madrugada de 25 de abril de 1974, o seu compromisso foi com a mudança, com o respeito pela vida dos seus pais, o futuro da sua esposa e filhos num Portugal livre para ser e sonhar.
    A ação militar, iniciada na Rádio Renascença com a canção de José Afonso, “Grândola Vila-Morena / Terra da fraternidade / O povo é quem mais ordena / Dentro de ti, ó cidade", foi decidida no Terreiro do Paço, onde estavam as forças leais ao regime, e no Largo do Carmo, onde o presidente do governo, Marcello Caetano, estava refugiado. Em ambas as situações, o nosso Capitão foi firme e cauteloso. Conhecia demasiado bem a guerra e queria evitar, a todo custo, o confronto militar. Por conhecer o pensamento e a ação dos seus pares, levava uma granada escondida no bolso. Se fosse necessário, teria a coragem de entregar a sua vida para que não houvesse mais guerra e o futuro o conhecesse como mártir da revolução.
    No entanto, a Primavera já tinha chegado ao Abril mais precioso da história da humanidade. Lisboa, e simultaneamente todo o país, quis apoiar a iniciativa desses militares, soldados, cabos, sargentos, tenentes, que desafiaram o poder, enfrentando a ditadura, dizendo: “Somos todos nós. Todos somos capitães”.
    Portugal floresceu com as cores dos cravos, e o Capitão não chorou de tristeza como quando era uma criança de quatro anos. Oordeu os lábios, quase sentindo o sabor do próprio sangue, e o seu olhar claro, ligeiramente húmido, testemunhou como a rua gritava liberdade após mais de quarenta anos silenciada.
Cumpriu a obrigação de escoltar Marcello Caetano até o aeroporto, até ao interior de um avião que levaria o ex-presidente do governo para o exílio. Este despediu-se do nosso Capitão agradecendo a dignidade e o respeito com os quais o militar o tratara durante o golpe de Estado.
    Enquanto Portugal abria as prisões políticas e se abria ao mundo em liberdade, o nosso Capitão só queria voltar para casa, para junto da sua esposa e da sua terra, na raia, onde o seu pai se encontrava bastante preocupado por não ter notícias suas. Voltou.
    Por sua vontade, não quis distinções nem cargos nesse novo Portugal. Também não eram necessárias celebrações ou ovações. A sua consciência tinha recuperado a paz, e para ele isso não era sinónimo de heroicidade, era apenas o seu dever.
    Abril continuou a ser celebrado, e o nosso Capitão continuou a lutar como todos aqueles que foram protagonistas anónimos da Revolução dos Cravos. Atos de coragem como o dele jamais são perdoados pelos medíocres, essa é a realidade. O seu olhar deixou para trás a tristeza da criança que perdera a mãe ou a emoção do militar que daria a vida pelo que acreditava ser o correto. O seu olhar não apenas se tornou símbolo da pureza de um ideal, mas também de toda a história de Portugal.
    Nem os poetas são fiéis à palavra como o nosso Capitão foi à sua conduta. Trouxe-nos Abril e Abril levou-o. Foi a 3 de abril de 1992 que regressou à terra onde nasceu, Castelo de Vide. Ali, os seus despediram-se de Fernando e honraram o seu desejo de ser sepultado numa campa rasa ao som de “Grândola Vila Morena”. Não é apenas para nós, raianos, que é o conquistador do sonho inconquistado. O Nosso Capitão Salgueiro Maia, esse herói que não quis integrar-se, é como a raia que o viu nascer, incómodo para todo o tipo de poder, invisível até, porém é património da Liberdade... e da Humanidade.

Fontes:
MAIA, Salgueiro, Capitão de Abril, Histórias da Guerra do Ultramar e do 25 de Abril, Editorial Notícias, Lisboa, 1994.
DUARTE, António de Sousa, Salgueiro Maia, Um Homem da Liberdade, Âncora Editora, Lisboa, 1999.
LETRIA, José Jorge, Salgueiro Maia, O Homem do Tanque da Liberdade, Terramar, Lisboa, 2004.




quinta-feira, junho 01, 2023

"Um lugar no mundo"

26/V/2023 "Um lugar no mundo" foi o filme que estivemos a ver hoje à noite. Vimo-lo com o S. (o X. e o E. já estavam com o João Pestana) e não pude evitar rever tantos dos que nos educaram refletidos nas personagens do Federico Luppi, do José Sacristán e da Cecilia Roth. Hoje somos nós quem educa, hoje somos nós quem tem filhos e gostamos que ouçam (da nossa boca ou de alguém credível) "quanto mais saibas menos mandarão em ti". 
O nosso lugar no mundo vai sendo juntos e junto deles. É belo, é brilhante, é um privilégio que vamos sabendo valorizar. Contudo, por vezes (e ultimamente mais do que é costume), tenho tanto medo, tenho tanta insegurança de não estar à altura... Não costumo falar disto com ninguém, excepto quando me ponho a escrever em frente dum papel (ou de um ecrã) que não te responde no imediato, mas, que quando volta a ser relido meses, anos mais tarde, te lembra que não és o único a andar acagaçado por aí...

quarta-feira, março 08, 2023

Para todas as "Mulheres" (da minha vida)/Para todas las "Mujeres" (de mi vida)

Um pensamento para todas as “Mulheres”, principalmente para todas as “Mulheres” da minha vida… 

Quando penso nas “Mulheres”, no seu peso colectivo na história da Humanidade, na sua peso na minha educação, na estrutura social da minha infância/juventude e, em geral, em todos os âmbitos da minha vida (hoje talvez já com um pouco de experiência), penso em muitíssima gente. Sobressaem as minhas avós, a minha mãe, a minha madrinha, a minha irmã, as minhas tias, as minhas primas, as minhas amigas e a minha mulher, todas enfrentaram e, tristemente, continuam a enfrentar os desafios com bastante mais dificuldade do que eu, pelo simples facto de ser homem. Nunca fui ingénuo e nem precisei comprovar como a vinda ao mundo dos nossos filhos afetou mais a vida laboral da minha mulher do que a minha... Porém, estas “Mulheres” sempre me ensinaram, mediante a sua conduta (e com tantíssima dignidade!), que, para além do óbvio biológico, somos iguais. 
Tenho os meus, claro, mas não sou dado a proclamar "ismos", prefiro estudá-los, analisá-los, fundi-los e, se possível, apropriar-me do melhor que têm para, pelo menos, não deixar este mundo pior do que está. Se alguém disser que sou feminista é graças a todas estas “Mulheres”, contudo se me pedirem para definir Feminismo, só posso socorrer-me do que aprendi com a saudosa Ana Luísa Amaral: "Oh Luis, o Feminismo é simplesmente uma questão de Direitos Humanos...". 
Eu, que me sinto e sou homem de cromossomas X e Y, não sou nem mais nem menos do que elas, só posso estar de acordo. E sem cair em qualquer tópico de "as Mulheres terem sempre razão", sim, têm razão, reivindicá-las é, desde a minha perspectiva, pura harmonia da natureza humana… tão bela e diversa, como elas…

Un pensamiento para todas las “Mujeres”, especialmente para todas las “Mujeres” de mi vida…

Cuando pienso en “Mujeres”, en su peso colectivo en la historia de la Humanidad, en su peso en mi educación, en la estructura social de mi niñez/juventud y, en general, en todos los ámbitos de mi vida (hoy quizás ya con un poco de experiencia), pienso en muchísima gente. Se destacan mis abuelas, mi madre, mi madrina, mi hermana, mis tías, mis primas, mis amigas y mi esposa, todas enfrentaron y, lamentablemente, siguen enfrentando los retos con mucha más dificultad que yo, por el simple hecho de ser un hombre. Nunca fui ingenuo y ni siquiera necesité probar cómo la llegada de nuestros hijos afectó más la vida laboral de mi mujer que la mía... Sin embargo, estas "Mujeres" siempre me han enseñado, a través de su conducta (¡y con tanta dignidad!), que, más allá de lo biológico obvio, somos iguales.
Yo tengo los míos, claro, pero no soy dado a proclamar "ismos", prefiero estudiarlos, analizarlos, fusionarlos y, si es posible, apropiarme de lo mejor que tienen para al menos no dejar este mundo peor de lo que es. Si alguien dice que soy feminista es gracias a todas estas “Mujeres”, sin embargo si me piden que defina Feminismo, solo puedo apoyarme en lo que aprendí de la añorada Ana Luísa Amaral: “Ay Luis, el Feminismo es simplemente una cuestión de Derechos Humanos...".
Yo, que me siento y soy un hombre con cromosomas X e Y, no soy ni más ni menos que ellas, solo puedo estar de acuerdo. Y sin caer en ningún tópico de "las mujeres siempre tienen razón", sí, tienen razón, reivindicarlas es, desde mi perspectiva, pura armonía de la naturaleza humana... tan hermosa y diversa, como ellas… 

Mulheres perseguidas à coronada... (Imagem extraída da revista Sábado nº 470 de 2013)







sexta-feira, agosto 12, 2022

Crónica: "Humildade na era da mediocridade" de Luis Leal (in "Mais Alentejo" nº161, p. 94) - texto integral

    "Humildade na era da mediocridade" - Luis Leal

    Quando faleceu Manuel Ferreira Patrício, antigo reitor da Universidade de Évora, a primeira coisa que pensei foi: “perdemos um homem humilde”. Conheci-o muito antes dos tempos universitários e dava gosto cumprimentar um ser tão educado e amável com quem partilhei o mesmo bairro e umas jornadas académicas, em que os professores faziam grupos com os alunos. Este foi o único momento em que aprofundei um pouco mais a conversa para além dos bons dias. Era um grupo informal no âmbito de uma cadeira de pedagogia, lembro-me de falarmos de Teixeira de Pascoaes e de eu ter dito uma barbaridade típica dos meus vinte anos. O sábio Prof. Patrício bem poderia ter humilhado o ego de um insensato a tentar impressioná-lo, mas apenas me convidou a acompanhá-lo por outro caminho através do seu raciocínio. Hoje agradeço-lhe a cura de humildade e a subtil martelada que deu na forja do meu carácter. 
    “Humildade” é uma herança da terra, do "húmus", e nós, que por aqui andamos, simples "transumantes”. Sabemo-lo através da etimologia, contudo, se indagarmos para além da raiz, somos cientes de se tratar, simplesmente, da virtude de alguém com um profundo conhecimento de si mesmo, isto é, que sabe de onde vem e qual a sua dimensão, bem mais próxima do menor do que do maior. É indubitável uma leitura cristã e o ecoar da minha educação católica na bem-aventurança “Felizes as pessoas humildes pois receberão o que Deus tem prometido”. Tão-pouco a desvinculo de outro valor particular que tem todo o ser humano como pessoa, como ser racional e livre. Por outras palavras, não concebo humildade sem dignidade. Eis o motivo pelo qual compreendo o irmão do “filho pródigo” que, ao queixar-se da injustiça do seu pai, mostrou ser filho de boa gente sem abdicar da sua dignidade. 
    Se já me conhece, o estimado leitor sabe que não sou afim a pensamentos oficiais, cinjo-me apenas ao pensamento e se por algum motivo o tenho de adjetivar fico-me por “cru” (o que já me vetou às brasas e me permitiu cheirar assados inquisitoriais). Conheço várias pessoas como o velho Reitor de Évora, pessoas brilhantes e discretas, gente magistral e trivial, seres capazes e necessários que num passado recente seriam tratados com mais atenção e, neste presente, por não abdicarem da sua dignidade optam por um “exílio interior” (expressão tão conhecida do mundo cultural espanhol).
    Ser-me-á apontada uma visão pessimista da actualidade. Seria soez da minha parte negá-la, porém, recorra-se aos dados, a investigações isentas a demonstrarem que, desde o início do século XXI, não existe um real avanço geracional, admita-se que uma geração não supera a anterior em âmbitos significativos da existência humana que, a pecar por incompletude, vão desde o QI médio (parece que estagnou nos anos 90), passa pelo empobrecimento da linguagem e o conhecimento lexical (fundamentais para elaborar e formular reflexões e emoções complexas), significativas lacunas lógico-matemáticas, desprestígio de qualquer fórmula memorística (confunde-se armazenamento computacional com a memória humana, viva), perda de direitos laborais e sociais e até mesmo regressão nas competências digitais tão em voga, pois programar e inovar não é fazer “scroll” no ecrã de um dispositivo online. 
    Culpar ou esperar que a verdade venha ao de cima é desnecessário. Ainda estamos a tempo de reverter esta situação, não permitamos que quem sabe e tem uma postura humilde perante o conhecimento sério seja exilada à força pela superficialidade desta era de individualismo extremo camuflada pelo entretenimento. Nivelar por baixo é falsa equidade, é promover o demérito, é visar apenas produção e consumo do que não advém do húmus, carente de raízes e desconhecedor do que é frutificar, esse verbo tão distinto de produzir. O produto da mediocridade, ao contrário do fruto da humildade, não retorna à terra, brotam em escombros como num qualquer cenário de guerra e devastação. 

Cartoon de Eneko in El Jueves, agosto, 2022.

Crónica: "Humildade na era da mediocridade" de Luis Leal (in "Mais Alentejo", nº161, p. 94) 2

Comparar eras talvez seja um absurdo, mas avaliar o seu impacto no mundo não o é. A actual era (egocêntrica e pouco dada à reflexão), se deixar de ter orgulho na sua ignorância, acredito ainda estar a tempo de compreender que a origem da humildade não é a mesma da mediocridade. Se quiserem compreender o porquê desta crónica (a par de uma homenagem ao Prof. Manuel Ferreira Patrício), aqui a têm à vossa disposição. Nas bancas já está uma nova revista, onde poderão ler mais uns "Trabalhos&Paixões" do vosso amigo e conhecer os candidatos para a próxima gala da "Mais Alentejo"! 

Comparar eras puede que sea absurdo, pero evaluar su impacto en el mundo no lo es. En la era actual (egocéntrica y poco reflexiva), si deja de estar orgullosa de su ignorancia, creo que aún está a tiempo de comprender que el origen de humildad no es el mismo que de mediocridad. Si queréis entender el por qué de esta crónica (a la par de un homenaje al Prof. Manuel Ferreira Patrício), aquí la tenéis a vuestra disposición. ¡Ya está en los quioscos una nueva revista, donde podéis leer más "Trabajos&Pasiones" de vuestro amigo y conocer a los candidatos para la próxima gala de "Mais Alentejo"!
Crónica: "Humildade na era da mediocridade" de Luis Leal (in Mais Alentejo, nº161, p. 94)



sábado, dezembro 04, 2021

La tragedia de Ciboure - Por Frédéric Beigbeder

"La tragedia de Ciboure [que es la de la inmigración y de la xenofobia en Europa] plantea un terrible dilema: desde luego, no podemos acoger toda la miseria del mundo... Pero ¿no podríamos simplemente darle los buenos días?" - Frédéric Beigbeder ("Icon" n.°94, 4/XII/2021)

domingo, abril 25, 2021

Admito a liberdade como um combate interior, mas a democracia não. (25 de Abril Sempre! Fascismo nunca mais!"

Admito a liberdade como um combate interior, mas a democracia não. Acredito que a frágil democracia é a mais humana forma de equidade e representatividade política, assim como nas artes marciais em que a suavidade de uma técnica pode imobilizar a agressividade nas suas mais variadas formas.
Eis uma fotografia pouco conhecida do nosso Capitão Salgueiro Maia, o rosto mais puro da Revolução dos Cravos, a executar um “juji gatame”, em 1967. Também creio que o seu espírito de “budoka” é bem evidente na forma como o seu inesperado protagonismo acabou por marcar o 25 de Abril. Ele “que na hora da vitória respeitou o vencido”, ele que “deu tudo e não pediu a paga”, ele “que na hora da ganância perdeu o apetite”, ele “que amou os outros e por isso não colaborou com a sua ignorância ou vício”, ele que foi «Fiel à palavra dada à ideia tida»...
Como a democracia, há muito que constato que a honra está em perigo sempre que o medo se apodera de nós. Contudo, mantenho a fé em que haverá sempre alguém, algum Maia, cuja luta pela liberdade sairá de dentro do seu peito e enfrentará, olhos nos olhos e desinteressadamente, qualquer tirano que, fruto da imperfeição dos tempos, por aí apareça. 25 de Abril Sempre! Fascismo nunca mais!

Admito la libertad como un combate interior, pero, la democracia no. Creo que la frágil democracia es la más humana forma de equidad y representatividad política, así como en las artes marciales en que la suavidad de una técnica puede inmovilizar la agresividad en sus más diversas formas.
Aquí tenéis una fotografía poco conocida de nuestro Capitán Salgueiro Maia, el rostro más puro de la Revolución de los Claveles, ejecutando un “juji gatame”, en 1967. También creo que su espíritu de “budoka” es bastante evidente en la manera como su inesperado protagonismo marcó el 25 de Abril. Él “que en la hora de la victoria respetó al vencido”, él que “lo dio todo y no pidió la paga”, él “que en la hora de la ganancia perdió el apetito”, él “que amó a los demás y por eso no colaboró con su ignorancia o vicio”, él que fue «Fiel a la palabra dada a la idea tenida»...
Como la democracia, hace mucho que constato que el honor peligra siempre que el miedo se apodera de nosotros. Sin embargo, mantengo la fe de que habrá siempre alguien, algún Maia, cuya lucha por la libertad saldrá fuera de su pecho y se enfrentará, ojos en los ojos y desinteresadamente, cualquier tirano que, fruto de la imperfección de los tiempos, por aquí aparezca. ¡25 de Abril Siempre! ¡Fascismo nunca más!

Fernando José Salgueiro Maia, numa competição de judo, em 1967.

quarta-feira, abril 17, 2019

Crónica: "Voz" de Luis Leal (in "Mais Alentejo" nº148, p.76)

Há um par de anos, numa conferência, alguém me comentou que eu tinha duas vozes: a portuguesa e a espanhola. Em tom de brincadeira, disse-me que soa mais sexy em espanhol. Imaginei logo o caricato que seria dobrar filmes marotos ou fazer a locução de noites longas, dedicadas aos amantes, na rádio.

O certo é que nunca me apercebi da minha voz oscilar livremente entre uma fronteira de vogais e consoantes articulada conforme o país que piso ou o interlocutor que tenho à frente. O fascínio pela voz, desde o seu tom identitário à emancipação da linguagem e, naturalmente, do pensamento, esse, vem de antes, ao frequentar um curso sobre a sua colocação e como cuidar as cordas vocais, tantas vezes enleadas no stress do dia-a-dia.

Quanto ao volume, diz-se que a voz espanhola tende a ser mais alta que a portuguesa. Remeto o caríssimo leitor para o audiodosímetro e, com toda a confiança, disponibilizo os meus filhos para o testar.  O substrato nas raízes é luso, mas o tronco engrossa em solo extremeño com algum chinfrim. 

Enfim, seja em que língua for, aguda ou grave, rouca ou sensual, é ponto assente que a voz há que cuidá-la. Sem saúde vocal, o mais íntimo dos nossos pulmões não produz fluxos de ar eficazes para falar, cantar, rir, gritar, chorar...   

A sociedade também tem as suas pregas vogais e os seus próprios articuladores, capazes tanto de eufonia como de cacofonia. Igual que o indivíduo, a voz do colectivo pode depressa mudar de tom para nos sugerir emoções de felicidade, surpresa, estupefação, rejeição, carência ou raiva.  

Vozes, há bem pouco apenas murmúrios, alçaram-se no regime constitucional e democrático de Espanha. Quem deu o mote, curiosamente, foi um sociólogo basco, Santiago Abascal, saído do PP há cinco anos para fundar o partido conservador Vox. 

Nas primeiras eleições, o Vox (defensor de fronteiras fechadas, muros em Ceuta e Melilla, deportações de imigrantes ilegais ou legais, condenados por delitos, e do encerramento de mesquitas “financiadas pelo fundamentalismo”) não chegou sequer aos 0,3%. Porém, no passado dia 2 de Dezembro, este partido, que nega ser “fascista, de extrema-direita, homofóbico, machista, racista ou xenófobo”, definindo-se antes como antipartidocracia, retirou à esquerda a maioria mantida na Andaluzia desde 1982. 

Num passado recente, a voz de Abascal, sempre de Smith&Wesson, já imitara a de Trump com tornar a Espanha grande outra vez. E, há poucos meses, “armado cavaleiro” (rejeita o espírito peregrino de Santiago em prol do de “mata-mouros”) num vídeo com outros dirigentes do Vox, cavalga à maneira da reconquista e expulsão dos muçulmanos da Península em 1492. A eloquência elegeu 12 deputados no parlamento regional andaluz.  

Por cá, a voz de Mário Machado, líder do movimento de extrema-direita Nova Ordem Social (e também condenado pelo envolvimento na morte de Alcindo Monteiro, assassinado em 1995), viu-se no Você na TV!. A conversa sobre se precisamos de um novo Salazar? gerou polémica, tal qual o plágio risível dos coletes amarelos tugas. Por enquanto, assento só na TV, porventura propulsor de assento parlamentar.

O interesse em ouvir estas vozes, remete-me unicamente para entender o porquê de cada vez se pronunciarem mais alto. Vozes de burro não chegam ao céu é pura arrogância proverbial. Por mais que o seu timbre nos desagrade, todas devem ser ouvidas. Se tal não acontecer, a afonia de ideias, coligada com a corrupção e constantes atraiçoamentos da moral e da ética, envenena a democracia.

António Barreto, num interessante ensaio, culpabiliza os políticos e as políticas. Discordo em aceitar paternalismos. Exerço o meu direito de ser sensível à voz que quero. Sim, concordo, ao enunciar ser a democracia que parece culpada, quando, coitada, pouco mais é do que um conjunto de regras de convívio e respeito

Maestros predestinados e batutas inflexíveis acabam com a polifonia do coro. Eduquemos e humanizemos as vozes, acredito, ciente disso continuar a ser um nódulo na garganta de muita gente. 

Em vez de uma voz, um olhar...


terça-feira, janeiro 08, 2019

Um sentimento fugitivo

Um sentimento
fugitivo, mas real.
A liberdade. 

Un sentimiento 
fugitivo, mas real.
La libertad.


(Haiku escrito durante a escrita da crónica "Voz")

Foto da revista "Sábado"


domingo, dezembro 30, 2018

Crónica: "Chamar os bois pelos nomes" de Luis Leal (in "Mais Alentejo" nº146, p.44)

Crónica: "Chamar os bois pelos nomes" de Luis Leal (in "Mais Alentejo" nº146, p.44)

Crónica: "Chamar os bois pelos nomes" de Luis Leal (in "Mais Alentejo" nº146, p.44)

O mundo era tão recente que algumas coisas careciam de nome e para as mencionar fazia falta que se apontasse com o dedo. Este é o principio de uma das obras mais importantes da história da literatura, esse marco incontornável da narrativa do século XX intitulado Cem Anos de Solidão, de Gabriel García Márquez, no entanto também se pode encontrar no inicio do último livro da filósofa espanhola Adela Cortina.

Ao analisarmos estas linhas de Gabo com tempo (não necessariamente proporcional ao título da obra), apercebemo-nos que toda realidade material se pode apontar com o dedo: uma cadeira, uma caneta, uma revista, uma pessoa, etc. É demonstrativa, definida pela sua tangibilidade. Por sua vez, o que é imaterial, intangível, o que não se pode apontar, necessita uma significação. É por essa razão que ao amor, à compaixão, à lealdade, à ética, à democracia, entre uma quase infinidade de conceitos, há que pôr-lhe um nome. 

Adela Cortina reforça e justifica o uso desta citação com a sua observação dos avanços na meteorologia, na forma como são comunicados aos neófitos as baixas pressões, ciclones e anticiclones. Note-se que, quando se põe um nome a um fenómeno meteorológico, é mais fácil as pessoas identificarem e prevenirem-se dum furacão Katrina, duma tempestade Ana ou dum tufão Jebi.  A partir destas realidades tempestivas ilustra-se a necessidade de significação mencionada. Curiosamente, o mesmo se passa com “a palavra do ano” em Espanha, uma palavra cuja eleição tem por base a sua capacidade transformadora da realidade: Aporofobia.

Aporofobia, do grego á-poros (pobre, desvalido) e fobia (medo, desconfiança), foi eleita a palavra do ano graças à obra Aporofobia: el rechazo al pobre (em português a rejeição do pobre). Adela Cortina justifica este vocábulo com o que ela considera um uso constante e desajustado da palavra xenofobia, denotadora de receio ou temor ao estrangeiro. Apesar dos inúmeros fenómenos xenófobos, não é de isso exactamente que o século XXI está a padecer. Sejamos sinceros, há muitíssimos estrangeiros bem-recebidos, nem é preciso dar mais exemplos do que os desportistas de elite ou os tão benéficos turistas para o PIB. Estamos perante seres humanos cuja diáspora de um continente para outro é feita entre a 1ª Classe ou o Low Cost, em meios de transporte que não se afundam facilmente no Mediterrâneo e não têm de saltar muros e arame farpado para chegar ao seu destino.

Porém, com os pobres, estrangeiros ou nacionais, não se sabe o que fazer com eles. Os desfavorecidos não se recebem com música e colares de flores, tipo Ilha da Fantasia ou Barco do Amor, recebem-se com desconfiança e hostilidade, portanto, para esta filósofa valenciana, havia que encontrar uma palavra, pois apontar com o dedo não é suficiente para identificar esta rejeição ao pobre e não exclusivamente ao estrangeiro.

A políticos, como Donald Trump, não os preocupa os estrangeiros, basta vê-los rodeados de xeques árabes, perfumados a petróleo. Os pobres sim. Por isso promove-se a ideia dos mexicanos, no caso dos EUA, irem roubar trabalho, aumentar a delinquência, depauperar a segurança social, e, logicamente, isso assusta as pessoas em situação social média/baixa, mas que ainda vão subsistindo do seu trabalho e acreditando numa cultura de self made men mais artificial do que natural.

Por todo o mundo a aporofobia aumenta, contudo também há quem se posicione contra esta forma desumana de existir, veja-se a recepção do Aquarius em Valencia, onde ancorou mais do que um barco, ancorou a esperança da dignidade da vida humana estar por cima de fronteiras, nacionalidades ou condições económicas. 

Quando não existe uma palavra para designar o que quer que seja, vive-se a ilusão de não fazer parte do mundo humano. No Alentejo há uma expressão empírica para isso: chamar os bois pelos nomes. A aporofobia existe (e talvez sempre tenha existido, penso eu), tal como essas tempestades estudadas pelos Institutos Nacionais de Meteorologia, por isso, para evitarmos entrar no olho do furacão, numa espiral sem retorno, temos de questionar, como preconiza Cortina, o que nos parece bem: este caminho de exclusão ou de compaixão. 
"Aporofobia, el rechazo al pobre" de Adela Cortina