segunda-feira, setembro 09, 2024
"Descendente" - Crónica de Luis Leal in “Mais Alentejo”, nº 166, p. 110
"Descendente" - Luis Leal
Desde miúdo que sei o que é um “esgazeado”, quero dizer, sei bem o que é ter os olhos abertos de espanto, medo ou estar ofegante e esbaforido, a roçar a loucura. Nascer no Alentejo dotou-me desse vocabulário de forma tão natural que só na vida adulta me apercebi de ser parte da história de tantas famílias à qual a minha não escapou.
Sou descendente de esgazeados, concretamente os meus bisavôs maternos Leopoldo e Umbelino, combatentes da 1ª Guerra Mundial, vítimas das trincheiras e do gás mostarda. O meu bisavô Leopoldo até foi dado como morto no Redondo e ressuscitou de volta a Portugal depois do cativeiro alemão. Pouco mais sei sobre ambos, a miséria do Estado Novo assolou os seus filhos e poucas histórias me ficaram para genealogia.
Os meus avós João e Ventura também andaram pelas lides militares, nos anos 40, mas a “neutralidade” de Salazar apenas os levou a cumprir o serviço militar obrigatório e a única experiência que me legaram foi de humor, com o meu avô João a guardar, toda a noite, no Forte da Graça de Elvas um morto qualquer. Isso e irem e voltarem, a pé ou de bicicleta, nas licenças, da raia para a zona de Évora. Gente rija, mas, dessa época, também foram parcos em informação, sendo o meu tio António quem, por profissão (carpinteiro) e posição social (presidente da junta), mais me ilustrou como se vivia nessa época, relatando negócios ao longo das vias do comboio (arrancadas na minha juventude) e passagens de espanhóis em direção ao Atlântico. Hoje, mais ou menos com uma experiência e cronologia de vida semelhante, sinto-me muito identificado com esta geração, enquadrada numa transição que nasceu de uma guerra, viveu revoluções políticas, crises económicas e, dada a turbulência dos tempos, aplaude enquanto nos tiram a Liberdade.
E chegámos à geração dos meus pais e dos meus tios. Esses jovens, entre 1961 e 1974, educados num colonialismo de metrópole longínqua a quem a instituição militar portuguesa abriu os quadros de sargentos e oficiais devido ao esforço de guerra em África (em proporção, sete vezes superior ao do Vietnam) e não por democratização de castas. É óbvio que não se obrigaria os descendentes de alta patente a irem para o mato de G3, camuflado básico, boné abas de grilo em vez de um capacete, ainda por cima com um macuto cheio de fome. Haveria cunhas no regime para ficar livre ou, no pior dos casos, atrás de uma secretária, em mangas de alpaca. A brigada do reumático recrutou na casa de quem menos tinha e, por si só, já sobrevivia. Gente como o meu tio Manuel, o meu pai e os seus camaradas, que foram parar com os costados ao Ultramar devido à sede de poder e recursos que a história nos acostumou.
Aqui entro eu, duas décadas depois, livre da tropa (mas com cédula militar e inspeção testicular na Calçada da Ajuda), filho da madrugada de Abril, nascido nos hospitais do SNS, formado pelo ensino público português, a fazer a mala para rumar onde quer fosse (quis a vida que fosse Espanha), num dos momentos mais marcantes da minha existência a falar com o meu pai. Durante anos queremos afastar-nos da sua personalidade, crescer, ser e ter a nossa individualidade. Sou e quero ser diferente do meu pai (apesar de emular com os meus filhos, as velhas fotografias às suas cavalitas). Ele não foi criado como eu, às mãos do afecto, e a reserva, a timidez, levaram as suas emoções a não aflorar a cores e, muitas vezes, continuam no preto e branco da RTP dos anos 70. Porém, como descendente, jamais esquecerei esse dia em que o meu desânimo e imaturidade me faziam crer estar na pior situação do mundo. O meu pai, pouco dado às palavras e aos meus dilemas, disse-me: “Luis, eu, com a tua idade, estava no Ultramar e nem pensava se ia ter trabalho ou não, nem sequer sabia se ia voltar vivo…”. É possível que o meu olhar regressasse ao esgazeado dos meus bisavós e os meus testículos tenham reagido de forma mais natural do que ao toque do médico militar, mas sei que esse dia o meu pai fez de mim um homem.
Escrevo esta crónica no 50º aniversário do 25 de Abril, e, com toda a incerteza do presente, há algo que quero reivindicar para sempre: o legado de uma geração que, com todas as suas conquistas e fracassos, teve tomates para lutar pela democracia. Eu não sei se os teria…
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Foto de Mário Ventura (1974) |
domingo, junho 30, 2024
Domingo de televisão matutina em Portugal
30/VI/2024 - Domingo de televisão matutina em Portugal: Vejo uma reportagem ("Linha da Frente") sobre a falta de professores na escola pública portuguesa (incluindo relatórios para o mundo feitos pela UNESCO) e, para além da indisponibilidade de várias direções e do silêncio ministerial, choca-me saber que vários pais e encarregados de educação, contactados para participarem na mesma, renunciaram com medo de os seus filhos sofrerem represálias. "Ipsis verbis": "represálias" pelo direito à educação. Se pararmos para pensar (em plena liberdade neuronal) tudo tem correlação...
Domingo de televisión matutina en Portugal: Veo un reportaje ("Linha da Frente") sobre la falta de profesores en la escuela pública portuguesa (incluyendo informes para el mundo hechos por la UNESCO) y, además de la indisponibilidad de varias direcciones y del silencio ministerial, me impacta saber que varios padres y tutores legales, contactados para participar en el mismo, renunciaron por miedo a que sus hijos sufran represalias. "Ipsis verbis": "represalias" por el derecho a la educación. Si nos detenemos a pensar (en plena libertad neuronal) todo tiene correlación...
terça-feira, março 19, 2024
"A Senhora Condescendência" - Crónica de Luis Leal in “Mais Alentejo”, nº 165, p. 68
Ia a caminho de um almoço familiar e tinha acabado de passar a fronteira quando a rádio me deu a notícia do falecimento do Comendador Rui Nabeiro. À cabeça veio-me “hoje não vou ver a minha irmã e é bem possível que no céu já se possa tomar um bom café".
Apesar da relação laboral privilegiada da minha irmã no trato diário com o Sr. Rui e da estima e da saudade que lhe deixou, nunca tive a oportunidade de o conhecer. Porém, sou ciente do seu legado na região, no país, na minha Espanha adoptiva e, para além da fortuna e do património, não abdicou de ser um homem bom, cuja essência não se viu corrompida pelo deus pecunio. A sua biografia é notável, quer seja vista através da comparativa de escalar um Everest empresarial com o alpinista João Garcia, através de grandes entrevistadores como a Anabela Mota Ribeiro ou o Luís Osório, através dum “Almoço de Domingo” ficcional do José Luís Peixoto, ou, simplesmente, através de quem com ele lidou durante os seus quase 92 anos a provarem que no capitalismo cabe o altruísmo. Em suma, como dizia alguém e subscrevo, “mais Srs. Rui e menos Musks!”.
Nove décadas de vida e não acredito que, na sua senectude, alguém no seu perfeito juízo se tenha dirigido ao “Sr. Rui” (como sempre fez questão de ser tratado) com qualquer tipo de condescendência como algumas pessoas se dirigirem a outros nonagenários. Tristemente, o dinheiro, o estatuto, traz algumas garantias de como a sociedade nos vai tratar se tivermos a ventura (ou desventura) de chegarmos a esta idade. Vejam-se as claras diferenças no uso lexical de “cota”, “idoso”, "ancião" e “velho” e o “peso da idade” (vulgo PDI) mais do que evidentes em sociedades sensíveis à moda da denúncia de todo o tipo de pretensas injustiças, contudo, a necessitarem prestar mais atenção ao “idadismo”.
Confesso, caro leitor, há muito tempo que não pensava nisto. Cresci entre pessoas de idade no seio da minha família e no entorno laboral da minha mãe (que dedicou mais de duas décadas da sua vida a um Centro de Dia) e, de maneira quase intuitiva, aprendi a respeitar todo tipo de rugas e cabelos grisalhos. Creio que vi um pouco de tudo, desde o queixume do reumático, a viuvezes traumáticas e libertadoras, a demência progressiva, a solidão, o mau caráter (quanto mais velho pior!), a miséria de corpo e de espírito, até ao júbilo de um ser de ter vivido uma vida que mereceu ser vivida, à sabedoria, ao humor geriátrico, e à contemplação tantas vezes condenada à apatia da televisão.
Como numa foto, voltei aos meus verdes anos rodeado de gente já amarelecida por ter em mãos uma tradução duma peça ambientada num Lar de Terceira Idade espanhol e, na hora de adaptar à realidade sociolinguística portuguesa, deparei-me com uma das formas de tratamento que mais abomino com qualquer ser humano, quero dizer, quando nos dirigimos a alguém infantilizando-o. Que fique claro que não outorgo más intenções ou desprezo a quem muitas vezes se dirige assim a um idoso, tratando-o como uma criança, usando um tom condescendente que nem sequer com as verdadeiras crianças me parece pertinente usar em excesso. Não é por uma pessoa ter caído nas garras do Alzheimer, do Parkinson, ou da passagem do tempo, que automaticamente as devemos tutear ou usar um registo infantilóide. O Sr. João lá por não se lembrar do nome dos netos e estar acamado não passa a ser o “Joãozinho”, mesmo que a sua calvície redondinha nos remeta para um bebé fofinho. É preciso ter cuidado, o “carinho”, a meu ver, não deriva por aí. Evoluímos, temos diversos meios e gente consciente que a terceira idade deve ser tratada de maneira diferente da primeira infância pelo simples facto de, por mais que o idoso pareça regredir à infância, há uma diferença significativa entre ambos: ser criança implica ainda não ter passado.
Se chegar à idade do Sr. Rui, por mais infantil que seja a minha personalidade e fisionomia, não quero ser o “velho Luisinho”, nem que falem comigo como nem sequer falo ao meu filho de 2 anos. Não quero salamaleques, nem títulos. Sentir-me-ei bem se continuar a ser o Luis e, caso mereça ser chamado “Ti Luis”, será porque o Alentejo sempre me fez ver que a sombra dum carrasco jamais se pode comparar à sombra duma azinheira.
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Sr. Rui Nabeiro |
"A Senhora Condescendência" - Crónica de Luis Leal in “Mais Alentejo”, nº 165, p. 68
sábado, março 09, 2024
Gramática eleitoral: uma observação sobre o modo imperativo no arco da governação português. Gramática electoral: una observación sobre el modo imperativo en el arco de gobernación portugués.
domingo, fevereiro 18, 2024
“O Nosso Capitão” - Luis Leal (versão em português do original “Nuestro Capitán”, publicado em Rayanos Magazine)
quinta-feira, junho 01, 2023
"Um lugar no mundo"
quarta-feira, março 08, 2023
Para todas as "Mulheres" (da minha vida)/Para todas las "Mujeres" (de mi vida)
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Mulheres perseguidas à coronada... (Imagem extraída da revista Sábado nº 470 de 2013) |
sexta-feira, agosto 12, 2022
Crónica: "Humildade na era da mediocridade" de Luis Leal (in "Mais Alentejo" nº161, p. 94) - texto integral
Crónica: "Humildade na era da mediocridade" de Luis Leal (in "Mais Alentejo", nº161, p. 94) 2
sábado, dezembro 04, 2021
La tragedia de Ciboure - Por Frédéric Beigbeder
domingo, abril 25, 2021
Admito a liberdade como um combate interior, mas a democracia não. (25 de Abril Sempre! Fascismo nunca mais!"
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Fernando José Salgueiro Maia, numa competição de judo, em 1967. |
quarta-feira, maio 01, 2019
quarta-feira, abril 17, 2019
Crónica: "Voz" de Luis Leal (in "Mais Alentejo" nº148, p.76)
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Em vez de uma voz, um olhar... |
terça-feira, janeiro 08, 2019
Um sentimento fugitivo
fugitivo, mas real.
A liberdade.
Un sentimiento
fugitivo, mas real.
La libertad.
domingo, dezembro 30, 2018
Crónica: "Chamar os bois pelos nomes" de Luis Leal (in "Mais Alentejo" nº146, p.44)
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"Aporofobia, el rechazo al pobre" de Adela Cortina |