sexta-feira, agosto 12, 2022

Crónica: "Humildade na era da mediocridade" de Luis Leal (in "Mais Alentejo" nº161, p. 94) - texto integral

    "Humildade na era da mediocridade" - Luis Leal

    Quando faleceu Manuel Ferreira Patrício, antigo reitor da Universidade de Évora, a primeira coisa que pensei foi: “perdemos um homem humilde”. Conheci-o muito antes dos tempos universitários e dava gosto cumprimentar um ser tão educado e amável com quem partilhei o mesmo bairro e umas jornadas académicas, em que os professores faziam grupos com os alunos. Este foi o único momento em que aprofundei um pouco mais a conversa para além dos bons dias. Era um grupo informal no âmbito de uma cadeira de pedagogia, lembro-me de falarmos de Teixeira de Pascoaes e de eu ter dito uma barbaridade típica dos meus vinte anos. O sábio Prof. Patrício bem poderia ter humilhado o ego de um insensato a tentar impressioná-lo, mas apenas me convidou a acompanhá-lo por outro caminho através do seu raciocínio. Hoje agradeço-lhe a cura de humildade e a subtil martelada que deu na forja do meu carácter. 
    “Humildade” é uma herança da terra, do "húmus", e nós, que por aqui andamos, simples "transumantes”. Sabemo-lo através da etimologia, contudo, se indagarmos para além da raiz, somos cientes de se tratar, simplesmente, da virtude de alguém com um profundo conhecimento de si mesmo, isto é, que sabe de onde vem e qual a sua dimensão, bem mais próxima do menor do que do maior. É indubitável uma leitura cristã e o ecoar da minha educação católica na bem-aventurança “Felizes as pessoas humildes pois receberão o que Deus tem prometido”. Tão-pouco a desvinculo de outro valor particular que tem todo o ser humano como pessoa, como ser racional e livre. Por outras palavras, não concebo humildade sem dignidade. Eis o motivo pelo qual compreendo o irmão do “filho pródigo” que, ao queixar-se da injustiça do seu pai, mostrou ser filho de boa gente sem abdicar da sua dignidade. 
    Se já me conhece, o estimado leitor sabe que não sou afim a pensamentos oficiais, cinjo-me apenas ao pensamento e se por algum motivo o tenho de adjetivar fico-me por “cru” (o que já me vetou às brasas e me permitiu cheirar assados inquisitoriais). Conheço várias pessoas como o velho Reitor de Évora, pessoas brilhantes e discretas, gente magistral e trivial, seres capazes e necessários que num passado recente seriam tratados com mais atenção e, neste presente, por não abdicarem da sua dignidade optam por um “exílio interior” (expressão tão conhecida do mundo cultural espanhol).
    Ser-me-á apontada uma visão pessimista da actualidade. Seria soez da minha parte negá-la, porém, recorra-se aos dados, a investigações isentas a demonstrarem que, desde o início do século XXI, não existe um real avanço geracional, admita-se que uma geração não supera a anterior em âmbitos significativos da existência humana que, a pecar por incompletude, vão desde o QI médio (parece que estagnou nos anos 90), passa pelo empobrecimento da linguagem e o conhecimento lexical (fundamentais para elaborar e formular reflexões e emoções complexas), significativas lacunas lógico-matemáticas, desprestígio de qualquer fórmula memorística (confunde-se armazenamento computacional com a memória humana, viva), perda de direitos laborais e sociais e até mesmo regressão nas competências digitais tão em voga, pois programar e inovar não é fazer “scroll” no ecrã de um dispositivo online. 
    Culpar ou esperar que a verdade venha ao de cima é desnecessário. Ainda estamos a tempo de reverter esta situação, não permitamos que quem sabe e tem uma postura humilde perante o conhecimento sério seja exilada à força pela superficialidade desta era de individualismo extremo camuflada pelo entretenimento. Nivelar por baixo é falsa equidade, é promover o demérito, é visar apenas produção e consumo do que não advém do húmus, carente de raízes e desconhecedor do que é frutificar, esse verbo tão distinto de produzir. O produto da mediocridade, ao contrário do fruto da humildade, não retorna à terra, brotam em escombros como num qualquer cenário de guerra e devastação. 

Cartoon de Eneko in El Jueves, agosto, 2022.

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