domingo, fevereiro 18, 2024

“O Nosso Capitão” - Luis Leal (versão em português do original “Nuestro Capitán”, publicado em Rayanos Magazine)

“O Nosso Capitão” - Luis Leal (versão em português do original “Nuestro Capitán”, publicado em Rayanos Magazine)

    A madrugada recordava Abril, mas foi no primeiro dia de Julho de 1944, quando a cidade raiana de Castelo de Vide viu nascer o nosso Capitão. Filho de um trabalhador ferroviário, desde sempre soube que a vida dura e difícil percorria, como os comboios, Portugal de norte a sul.
    Conheceu a tristeza demasiado cedo e, apesar dos seus olhos limpos e claros, nunca foi capaz de a esconder totalmente do seu olhar. Talvez tenha sido o destino que o levou a Lisboa para os dois momentos fundamentais da sua vida, sendo o primeiro a morte da sua mãe, atropelada por um autocarro. A partir desse momento, não quis regressar à capital. O sonho de qualquer criança de quatro anos de visitar o Jardim Zoológico tornou-se uma lembrança de lágrimas.
    Cresceu forte e sem gostar de futebol. Gostava de ler e falar sobre coisas de história e guerra, que, num futuro próximo, já como militar, conheceria em primeira mão. Ao contrário das outras crianças, ele, numa idade tão precoce, já sabia o que queria ser quando crescesse e isso refletia-se na forma como usava o cabelo bastante curto, “à escovinha”. De espírito nobre, odiava os rufiões e, com a medalha de ouro do retrato da sua mãe, que nunca tirou do peito, desenvolveu uma coragem admirada pelos outros rapazes, tornando-se um homem de ideias firmes e claras.
    Acreditando na justiça, e numa ideia de pátria aprendida na escola primária, ingressou na academia militar. Nunca esqueceu as suas origens, a ferrovia do seu pai e as serranias da sua terra. Portugal estava em guerra na época. Lutava para manter as riquezas das suas colónias, mas na metrópole havia pobreza disfarçada de honesta escassez.
    O nosso Capitão aprendeu a fazer guerra, porém o seu coração só desejava a paz. Da guerra sabia tudo, ou quase tudo. Certamente, em tempos passados, teria sido um cavaleiro, com o seu corcel. Mas a cavalaria moderna não usa cavalos de carne e osso, usa cavalos de metal, enormes tanques que cospem fogo, arrasando muralhas e castelos. Partiu para África para defender os interesses do seu país na chamada Guerra Colonial Portuguesa. Primeiro em Moçambique e depois na Guiné-Bissau. Cumpriu o seu dever, mas a sua consciência repreendia-o, incitando-o a desobedecer às suas ordens. Não via qualquer justiça em lutar nessa guerra, onde o facto de os seus camaradas matarem ou morrerem não importava aos políticos e generais a viverem numa opulência nada honrosa quando comparada com a escassez no resto do país. O militar, que outrora acreditara na grandeza histórica do seu país, regressou a casa certo de duas coisas: que o mandariam novamente para matar ou morrer nessa guerra sem sentido e que há momentos em que a única solução é desobedecer.
    Encontrou o amor nos braços de Natércia e mudou-se para Santarém, para a Escola Prática de Cavalaria, onde instruiu os seus homens com a firmeza de carácter que herdara do pai. Um filho da ferrovia sabe que não se pode chegar atrasado quando o dever chama, e o nosso Capitão sabia que o seu destino o levaria novamente a Lisboa, para enfrentar o seu passado e lutar pela alegria dos seus olhos e do seu país.
    Na parada do quartel, reuniu os seus soldados, futura carne para canhão que conheceria o horror de África se ele e outros capitães como ele não lhes tivessem falado com a verdade que deve reger o bom militar, aquele que sabe que as ideias mais nobres sempre foram protegidas pelos guerreiros. Com o seu uniforme de manobras e o lenço do seu amor no bolso, o nosso Capitão dirigiu-se aos seus soldados com a segurança de um líder que prescinde do protagonismo pelo bem comum.
    “Meus senhores, como todos sabem, há diversas modalidades de Estado. Os estados socialistas, os estados capitalistas e o estado a que chegámos. Ora, nesta noite solene, vamos acabar com o estado a que chegámos! De maneira que, quem quiser vir comigo, vamos para Lisboa e acabamos com isto. Quem for voluntário, sai e forma. Quem não quiser sair, fica aqui!”.
    E uma multidão de jovens, filhos do povo humilde e trabalhador, para quem a vida militar era bastante mais suave do que a fome do campo ou o calor da fábrica, formou uma coluna militar em direção à capital de um país que, há anos, não ouvia a voz da imensa maioria dos seus filhos. Só foram detidos por um semáforo vermelho, um sinal de que a segurança da vida humana é fundamental para que exista liberdade.
    O nosso Capitão foi treinado para obedecer, para ser leal e disciplinado, mas naquela madrugada de 25 de abril de 1974, o seu compromisso foi com a mudança, com o respeito pela vida dos seus pais, o futuro da sua esposa e filhos num Portugal livre para ser e sonhar.
    A ação militar, iniciada na Rádio Renascença com a canção de José Afonso, “Grândola Vila-Morena / Terra da fraternidade / O povo é quem mais ordena / Dentro de ti, ó cidade", foi decidida no Terreiro do Paço, onde estavam as forças leais ao regime, e no Largo do Carmo, onde o presidente do governo, Marcello Caetano, estava refugiado. Em ambas as situações, o nosso Capitão foi firme e cauteloso. Conhecia demasiado bem a guerra e queria evitar, a todo custo, o confronto militar. Por conhecer o pensamento e a ação dos seus pares, levava uma granada escondida no bolso. Se fosse necessário, teria a coragem de entregar a sua vida para que não houvesse mais guerra e o futuro o conhecesse como mártir da revolução.
    No entanto, a Primavera já tinha chegado ao Abril mais precioso da história da humanidade. Lisboa, e simultaneamente todo o país, quis apoiar a iniciativa desses militares, soldados, cabos, sargentos, tenentes, que desafiaram o poder, enfrentando a ditadura, dizendo: “Somos todos nós. Todos somos capitães”.
    Portugal floresceu com as cores dos cravos, e o Capitão não chorou de tristeza como quando era uma criança de quatro anos. Oordeu os lábios, quase sentindo o sabor do próprio sangue, e o seu olhar claro, ligeiramente húmido, testemunhou como a rua gritava liberdade após mais de quarenta anos silenciada.
Cumpriu a obrigação de escoltar Marcello Caetano até o aeroporto, até ao interior de um avião que levaria o ex-presidente do governo para o exílio. Este despediu-se do nosso Capitão agradecendo a dignidade e o respeito com os quais o militar o tratara durante o golpe de Estado.
    Enquanto Portugal abria as prisões políticas e se abria ao mundo em liberdade, o nosso Capitão só queria voltar para casa, para junto da sua esposa e da sua terra, na raia, onde o seu pai se encontrava bastante preocupado por não ter notícias suas. Voltou.
    Por sua vontade, não quis distinções nem cargos nesse novo Portugal. Também não eram necessárias celebrações ou ovações. A sua consciência tinha recuperado a paz, e para ele isso não era sinónimo de heroicidade, era apenas o seu dever.
    Abril continuou a ser celebrado, e o nosso Capitão continuou a lutar como todos aqueles que foram protagonistas anónimos da Revolução dos Cravos. Atos de coragem como o dele jamais são perdoados pelos medíocres, essa é a realidade. O seu olhar deixou para trás a tristeza da criança que perdera a mãe ou a emoção do militar que daria a vida pelo que acreditava ser o correto. O seu olhar não apenas se tornou símbolo da pureza de um ideal, mas também de toda a história de Portugal.
    Nem os poetas são fiéis à palavra como o nosso Capitão foi à sua conduta. Trouxe-nos Abril e Abril levou-o. Foi a 3 de abril de 1992 que regressou à terra onde nasceu, Castelo de Vide. Ali, os seus despediram-se de Fernando e honraram o seu desejo de ser sepultado numa campa rasa ao som de “Grândola Vila Morena”. Não é apenas para nós, raianos, que é o conquistador do sonho inconquistado. O Nosso Capitão Salgueiro Maia, esse herói que não quis integrar-se, é como a raia que o viu nascer, incómodo para todo o tipo de poder, invisível até, porém é património da Liberdade... e da Humanidade.

Fontes:
MAIA, Salgueiro, Capitão de Abril, Histórias da Guerra do Ultramar e do 25 de Abril, Editorial Notícias, Lisboa, 1994.
DUARTE, António de Sousa, Salgueiro Maia, Um Homem da Liberdade, Âncora Editora, Lisboa, 1999.
LETRIA, José Jorge, Salgueiro Maia, O Homem do Tanque da Liberdade, Terramar, Lisboa, 2004.




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