Caríssimo leitor, permita-me engatá-lo à maneira desse engate da 7ª arte, que, afinal, revelou ser mais que galanteio interpretado por Ben Affleck e Matt Damon, então jovens guionistas e protagonistas desconhecidos desse Good Will Hunting. Estes dois, apesar de reconhecidos em Hollywood, conhecem bem a arrogância do meio, tal como a crítica incapaz de conceber palminhos de cara alojarem belos cérebros ou ser-se loiro ou moreno nada tem a ver com burrice. Enfim, escreve-o um tipo de cabelo castanho claro, portanto vale o que vale.
Resumindo, a cena decorre num bar repleto de estudantes de Harvard e do MIT, no qual um grupo de jovens intrusos, oriundos duma zona pobre de Boston, decide ir para os copos e cortejar as universitárias da área. A personagem de Affleck, para meter conversa com uma moça atractiva ao balcão, diz-lhe que ambos vão à mesma aula de história. Quase em simultâneo, outro jovem, claramente o protótipo estudante de classe média/alta, intromete-se na conversa ao perguntar que aula de história frequenta. Pergunta-lhe ainda, para desmascarar esse pseudo-estudante, de fato de treino fatela, qual a sua opinião sobre a evolução do mercado nas economias das colónias do Sul no século XVIII. Em KO intelectual, Affleck é socorrido pelo amigo de sempre, o indomável Will Hunting (interpretado pelo amigo de sempre na vida real, Matt Dammon). Will, de t-shirt rota e sobrolho aberto numa briga cenas antes, enuncia teorias económicas e cita autores, sem esquecer a referência bibliográfica, número de página e tudo, para evitar plágios. Termina com um argumento tipo uppercut dum Mike Tyson em início de carreira, levando ao tapete o seu contrincante:
Tens ideias próprias ou isto é só para impressionar uma rapariga e humilhar o meu amigo? Triste é, um gajo como tu, daqui a 50 anos, começar a pensar com a própria cabeça e ter apenas duas certezas: primeira, isto não se faz e, segunda, gastaste 150.000 dólares numa merda de educação que poderias ter adquirido por 1’50 dólares na biblioteca pública.
Neste clímax de justiça quase poética, o outro não se deu por vencido, replicando o que à simples vista poderia parecer um golpe baixo, porém plenamente aceite pelas regras da sociedade:
Mas vou ter um curso (“ser doutor”, à portuguesa) e tu vais servir batatas fritas num restaurante “fast food” aos meus filhos quando formos esquiar.
O bom lutador sabe encaixar todo o tipo de golpe e Will fê-lo com um hipotético talvez, mas pelo menos serei original, encaminhando os pressupostos do debate para fora do bar, onde, cara a cara, não há estudos, nem origem social, que valham a quem resolve andar à porrada.
A cena termina com a cobardia da classe média/alta norte-americana? Não sei, só sei que o poder dominante americano não suja as mãos, paga para lhe fazerem o trabalho sujo.
Sem dúvida, é um dos meus filmes de eleição. Não por esta cena ou pelas personagens de Matt e de Ben. Sim por um inesquecível Robin Williams, esse Pagliacci que tanto inspirou e fez rir, enquanto, por dentro, lutava contra o veneno da depressão.
Hoje, voltei a esta cena ao olhar para o trajecto de vida de tantos como eu, filhos duma geração que nos possibilitou estudar, e, também, para o provável percurso estudantil dos nossos filhos. Vejo portas fechadas, igualdade de oportunidades manipuladas por oportunismo. Vejo os degraus esfregados pelos mesmos e apenas alguns terem acesso exclusivo à escada. Vejo imobilismo social camuflado numa selva de empreendedorismo multitask.
Will Hunting era um génio matemático nascido numa zona carenciada. A generosidade dos seus pares levou-o do Southie para fora. Não o altruísmo dos académicos, divididos entre a tentação de dissecar ou invejar o jovem prodígio.
Triste é ver o honesto estudo, esperança dos nossos pais em proporcionar-nos uma vida melhor, em total descrédito. Não chega pagar propinas e ir estudar para a biblioteca. O dinheiro termina licenciaturas ao domingo, faz cadeiras sem pôr o traseiro nas cadeiras da universidade, homologa seminários de 3 ou 4 semanas em pós-graduações de Georgetown ou obtém mestrados invisibilis causa. Mas isso é outra cena, argumento de má qualidade, interpretada por Sócrates, Relvas, Casado e Cifuentes, cujo nome é O Bom Viver de Expediente.
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