quarta-feira, abril 19, 2017

"A SECÇÃO ÁUREA" - Manuel Rivas

A SECÇÃO ÁUREA

Foi no enterro da tia Anuncia, em Riocobo,
naquele dia de sol em que entrava muito frio pelos pés.
O Pepe, o de Teté, que é filho de carpinteiro,
falou-me da Secção Áurea,
o número secreto que guarda a proporção
entre os segmentos.
O berço,
os primeiros tamancos
o balde e o pote,
o espigueiro,
o carro de bois,
o pão caseiro de centeio,
a carta da América,
o fole da gaita,
o bordado de linho,
o leito de amor
a colher de pau,
a virgem das Dores,
a chama da candeia,
as contas do rosário,
têm essa álgebra que só se contagia
com a luz do pão
no olhar da mão.
A Secção Áurea.
A medida também de um sepulcro honorável.

O ESCRITOR, O LAVRADOR E O CARPINTEIRO

O escritor é escritor enquanto escrever. Se não escreve não é um escritor. Um lavrador é um lavrador enquanto cultivar a terra. O escritor, como o lavrador, é um sobrevivente. O escritor e o lavrador partilham uns quantos segredos. Um mundo divide-se entre os que plantam o milho e os que o pisam. O silêncio da terra, o papel em branco, põe à prova que é que vale e quem não. O escritor e o lavrador sabem que no paraíso terão de trabalhar. Para o escritor e o lavrador, no fim e à posteriori, a vida consiste em ter um pedaço de terra onde poder cavar pelo menos dois metros de melancolia. Há outra coisa que assemelha o escritor ao lavrador. Os dois são amigos do carpinteiro. E o carpinteiro conhece o segredo da Secção Áurea. A proporção entre segmentos.


Manuel Rivas (trad. Luis Leal)

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