Ardem
as perdas
Chaque
jour nous laissons une partie de nous-mêmes en chemin.
AMIEL
Como é que uma
criança, órfã de pai, pôde aprender a ler com um único livro
existente num lar devastado por uma guerra civil? Um único livro, de
poesia, o único publicado em vida pelo seu pai.
Como é que do ardor da
ausência, do peso da morte, pôde nascer uma relação, tão real e
profunda entre um pai e um filho, como esta que o poeta Antonio
Gamoneda atribui à sua infância?
Todos temos os nossos
mortos. Cabe ao tempo dar-lhe um rosto, um fim biológico, um rigor
mortis e uma estatística etária, que não revela o
mistério para além das pálpebras encerradas de vez. Este
determinismo, associado ao passar da palma da mão numa face que se
fecha ao mundo, é tão certo como a cor da dor, do luto, o negro que
resulta do fogo que queima parte da madeira de que somos feitos e do
mobiliário que levamos dentro.
Há 15 anos, em Maio,
esse mês tão propenso a iniciar como a terminar ciclos, um jovem
alentejano, preparava-se para ir a uma gráfica buscar uma edição
de autor que intitulou Morreste-me. Duas manifestações de
coragem num só acto: a valentia duma edição de autor e o
atrevimento íntimo, elegíaco e biográfico, de encarar o incêndio
que em si deflagrava.
O presente fez do jovem
homem, o incêndio foi controlado, no entanto, tal como o fogo do
Chiado marcou para sempre Lisboa, esta perda do José Luís Peixoto
marcou indelevelmente a literatura portuguesa, tal como a vida de
muitos que tocaram as suas palavras com algo mais que o olhar.
Haviam passado vários
anos, quando me cruzei com esta perda. Já admirava o escritor, era
como se crescera lá no bairro comigo, supunha até que entendia o
que sentia só ao ler a contracapa. Engane-se quem pensa que conhece
a dor do outro, mesmo depois de uma partilha na primeira pessoa.
Além de ingenuidade
minha, medo. Medo de assumir os meus mortos, de aceitar o rosto que o
tempo lhe deu e lhe dará.
Morreste-me
golpeou-me o estômago numa tarde de pesquisa na biblioteca de
Portalegre. Interceptou-me com a força escondida que têm os
pequenos livros, ocultos, quase sempre, pela imponente lomba do livro
do lado com quem se comparte a existência numa qualquer estante.
Naquele instante, era
minha a finitude do progenitor, a infância a desmoronar-se, não num
quintal onde um pai não chegara a velho, mas sim num pátio onde já
ninguém brincava comigo, nem se sentavam no portado ao fresco dum
verão alentejano de final de tarde. Naquelas ausências, as minhas
ruínas e o temor que bloqueia o consolo e a beleza que só a memória
futura parece ver e atribuir a destroços pretéritos.
Este livro dói.
Apercebo-me da sua presença, mesmo que em silêncio, no meu circulo
de afectos. Admiti-lo dá-me um certo orgulho vulnerável, diferente
de outros orgulhos que espelham o meu ego sorridente e a assobiar sem
que ninguém note.
Em Espanha, a desolação
que trouxe a ausência do pai Peixoto, traduziu-se Te me moriste.
Coube, cinco anos depois da 1ª edição, ao Antonio Sáez fazer o
seu próprio luto paterno vertendo para espanhol a incandescência
das palavras do José Luís. Esta tradução, publicada pela Editora
Regional de Extremadura, infelizmente está esgotada. Cada vez é
mais difícil entender o “eu” derrotado, ardido, em cinzas, e Te
me moriste não vende optimismo, nem tem a eloquência duma
psicologia necessitada de se adjectivar, a ela mesma, positiva.
Te me moriste é
essa parte de nós mesmos que vamos deixando no caminho, essa que
arde tanto, com rosto e reflexo próprio, o nosso, o meu, a passo,
atrás do óbito declarado pela carrinha da agência funerária.
Morreste-me é essa dor morta-viva, ao bom estilo zombie
agora na moda. Ergue-se do peito e lembra-nos que a morte nunca está
oculta se se está atento à vida.
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