terça-feira, dezembro 15, 2015

Ardem as perdas (in "Mais Alentejo" nº129)

Ardem as perdas

Chaque jour nous laissons une partie de nous-mêmes en chemin. AMIEL

Como é que uma criança, órfã de pai, pôde aprender a ler com um único livro existente num lar devastado por uma guerra civil? Um único livro, de poesia, o único publicado em vida pelo seu pai.
Como é que do ardor da ausência, do peso da morte, pôde nascer uma relação, tão real e profunda entre um pai e um filho, como esta que o poeta Antonio Gamoneda atribui à sua infância?

Todos temos os nossos mortos. Cabe ao tempo dar-lhe um rosto, um fim biológico, um rigor mortis e uma estatística etária, que não revela o mistério para além das pálpebras encerradas de vez. Este determinismo, associado ao passar da palma da mão numa face que se fecha ao mundo, é tão certo como a cor da dor, do luto, o negro que resulta do fogo que queima parte da madeira de que somos feitos e do mobiliário que levamos dentro.

Há 15 anos, em Maio, esse mês tão propenso a iniciar como a terminar ciclos, um jovem alentejano, preparava-se para ir a uma gráfica buscar uma edição de autor que intitulou Morreste-me. Duas manifestações de coragem num só acto: a valentia duma edição de autor e o atrevimento íntimo, elegíaco e biográfico, de encarar o incêndio que em si deflagrava.

O presente fez do jovem homem, o incêndio foi controlado, no entanto, tal como o fogo do Chiado marcou para sempre Lisboa, esta perda do José Luís Peixoto marcou indelevelmente a literatura portuguesa, tal como a vida de muitos que tocaram as suas palavras com algo mais que o olhar.

Haviam passado vários anos, quando me cruzei com esta perda. Já admirava o escritor, era como se crescera lá no bairro comigo, supunha até que entendia o que sentia só ao ler a contracapa. Engane-se quem pensa que conhece a dor do outro, mesmo depois de uma partilha na primeira pessoa.

Além de ingenuidade minha, medo. Medo de assumir os meus mortos, de aceitar o rosto que o tempo lhe deu e lhe dará.

Morreste-me golpeou-me o estômago numa tarde de pesquisa na biblioteca de Portalegre. Interceptou-me com a força escondida que têm os pequenos livros, ocultos, quase sempre, pela imponente lomba do livro do lado com quem se comparte a existência numa qualquer estante.

Naquele instante, era minha a finitude do progenitor, a infância a desmoronar-se, não num quintal onde um pai não chegara a velho, mas sim num pátio onde já ninguém brincava comigo, nem se sentavam no portado ao fresco dum verão alentejano de final de tarde. Naquelas ausências, as minhas ruínas e o temor que bloqueia o consolo e a beleza que só a memória futura parece ver e atribuir a destroços pretéritos.

Este livro dói. Apercebo-me da sua presença, mesmo que em silêncio, no meu circulo de afectos. Admiti-lo dá-me um certo orgulho vulnerável, diferente de outros orgulhos que espelham o meu ego sorridente e a assobiar sem que ninguém note.

Em Espanha, a desolação que trouxe a ausência do pai Peixoto, traduziu-se Te me moriste. Coube, cinco anos depois da 1ª edição, ao Antonio Sáez fazer o seu próprio luto paterno vertendo para espanhol a incandescência das palavras do José Luís. Esta tradução, publicada pela Editora Regional de Extremadura, infelizmente está esgotada. Cada vez é mais difícil entender o “eu” derrotado, ardido, em cinzas, e Te me moriste não vende optimismo, nem tem a eloquência duma psicologia necessitada de se adjectivar, a ela mesma, positiva.

Te me moriste é essa parte de nós mesmos que vamos deixando no caminho, essa que arde tanto, com rosto e reflexo próprio, o nosso, o meu, a passo, atrás do óbito declarado pela carrinha da agência funerária. Morreste-me é essa dor morta-viva, ao bom estilo zombie agora na moda. Ergue-se do peito e lembra-nos que a morte nunca está oculta se se está atento à vida.  

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