Se em Portugal se cita constantemente Fernando Pessoa, Camões ou, como parece que é típico dos discursos de investidura dos Presidentes da República, Miguel Torga, em Espanha, Antonio Machado vê frequentemente os seus versos por conta de outrem. Os mais usados, em todo o tipo de situações, desde as protocolares às mais mundanas, talvez sejam estes que aqui traduzo de forma recordá-los ao meu estimado leitor: “Tudo passa e tudo permanece,/mas para nós é passar,/passar a fazer caminho,/ caminho sobre o mar. (…) Caminhante, são tuas pegadas/ o caminho e nada mais;/ Caminhante, não há caminho,/ faz-se o caminho a andar.”
Anos mais tarde, Joan Manuel Serrat musicou-os e gravou uma canção que considero das mais bonitas da música popular espanhola. Este grande músico, catalão por nascimento, cuja pena é tão doce quanto a voz, é um símbolo desta ibéria submersa numa diversidade que não se esgota em questões de nacionalidade no espaço peninsular. Sabemos que estão na ordem do dia e, para os olhares atentos, é fácil identificar a primazia da economia e da política por cima duma maioria orgulhosa da sua cultura e nação, sem pretensão a mais fragmentação do que aquela já existente.
A região que me adoptou é um claro exemplo disso. “Castúa” e castiça, a Extremadura orgulha-se de ser um território caracterizado por possuir as melhores pontes do mundo ocidental, com destaque para a jóia romana de Alcântara e a renascentista de Almaraz, ambas erguidas sobre o rio Tejo. Mais a sul, o Guadiana tem também a sorte de partilhar, em ambas as margens, os destroços visíveis de uma ponte-fortaleza, a última do seu género na Europa, cuja grande abóbada central se antecipou, quase um século, à mundialmente famosa de Rialto, na elegante Veneza. Há mais de três séculos, em 1709, o marquês de Bay destruiu esta ponte, elevando-a assim à categoria de ruína. Até que ponto a vida não é isso, necessidade de construir pontes ou derrubá-las em escombros para manter a integridade do nosso espaço vital?
Roberto Juarroz acreditava que “pensar em alguém é parecido a salvá-lo”. Vejo esta crença como uma espécie de salva-vidas de lembrança que nos permite resgatar ou fazer pontes com os outros.
Na margem espanhola da Ponte Ajuda encontramos Olivença, neta de Portugal e filha de Espanha, e o melhor exemplo do que é ser-se português do outro lado da fronteira, apenas há que parar e prestar atenção.
E foi o que fiz. Há quase uma década, parei, olhei e ouvi. Em Olivença descobri um dos melhores projectos de “folk music” que conheço, os Acetre. Com 40 anos de actividade, impuseram-se como o grande referente “extremeño” de “world music” à qual a sua condição fronteiriça foi fundamental.
Quis o acaso que viver entre duas terras se convertesse em ajuda, em ponte, entre este grupo musical oliventino e as minhas raízes de cante aprendido daqueles que mo ensinaram. Quis também o acaso que não pudesse assistir ao vivo, nem em Badajoz, nem em Cáceres, aos Acetre a cantarem com o Mestre Joaquim Soares e o Grupo de Cantares de Évora.
Ao contrário do silêncio desta tarde quente de modorra em que escrevo, dessas em que ninguém pode acusar a sesta de costume de preguiça, destes cantares sinto uma ressonância afinada, uma arquitectura raiana de sons a edificarem-se numa ponte comum a dois povos. Ao ouvir esta melodia, um pouco como o poeta argentino, por momentos, acredito nessa salvação maior do que qualquer pensamento.
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