sábado, abril 12, 2025

"Apanhar Fresco" - Crónica de Luis Leal in “Mais Alentejo”, nº 167, p. 82

"Apanhar Fresco" - Crónica de Luis Leal en "Trabalhos&Paixões" (Mais Alentejo)

    Fruto de constantemente pensar em opções baratas de ócio numa latitude que teima em ser escaldante boa parte do ano, deparo-me com a necessidade de arrefecer a minha existência de diversas maneiras. Até me vou safando com uma piscina “made in China” à sombra duma azinheira (um privilégio, verdade, porém distante do glamour do “resort”), com o AC dia e noite quando as janelas abertas não refrescam canículas, à mangueirada num ângulo sem desperdício para regar, e recorrendo ao passeio dos tristes, isto é, com o tédio a superar os 40º, a levar-me ao centro comercial em estado de ebulição para passear e consumir o que quase nunca me faz falta. Foi aí, acompanhado por centenas como eu, ávidos de temperaturas aptas à qualidade de vida, constatadas em tempo real no “smartphone”, que me lembrei como se apanhava fresco quando era gaiato. 
    Apesar do calor eborense apertar, a minha infância não conheceu urgências climáticas, nem catedrais comerciais com o ar condicionado de hoje em dia. A gente desenrascava-se, depois de jantar, com um passeio pelo bairro em vestido e em camisolas de alças viris, que me ficaram na memória “à Jake LaMotta”, e, se havia oportunidade, ou qualquer coisa interessasse, até se podia ir lá “acima”, à cidade, com uma indumentária menos informal, mas igual de ligeira. Esta era a parte activa, da qual me considero fiel depositário, contudo a que mais me marcou foi a passividade do “apanhar fresco” alentejano, herdado mundo animal, em que da pedra ao ar livre se evoluiu para a cadeira de praia ou de campismo. Atesouro duas formas de apanhar fresco, a primeira à maneira dos meus avós, em comunidade, à entrada do pátio, onde os moradores desfrutavam da redução nocturna da temperatura a falarem do trabalho, do futebol, narravam histórias, o que quer que fosse, até mesmo as bisbilhotices claramente mais humanas cara a cara do que num ecrã (em Espanha, “tomar la fresca”, era muito semelhante, com a diferença de até levarem para a rua mesas e se jantar debaixo das estrelas). A outra forma, mais solitária e silenciosa, associo-a ao meu tio Manuel Leal, depois da dureza do labor do campo, estendido no granito anti-inflamatório a relaxar o corpo cansado cuja genética aprecio ao olhar-me ao espelho. Nunca lhe perguntei, mas imagino que essas noites lhe tenham permitido ver inúmeras estrelas fugazes…
    Permita-se-me o lugar comum de, desde a magnitude do cosmos, recordar as nossas vidas como efémeros clarões no tempo. Talvez devido a esse brilho, mais ou menos intenso, e a essa noção de fugacidade, o ser humano tenha desenvolvido sentimentos provocados pela lembrança de alegrias passadas tão difíceis de definir no presente. Se existe nesta crónica alguma nostalgia (ou saudade para honrar a língua portuguesa) encontra-se apenas na ausência de algumas pessoas, numa certa lentidão da época, necessária à contemplação e à contemporaneidade, e num resto de temperança climática que me permitiu conhecer as quatro estações. Nada mais. Por actual que pareça, a ideia do passado haver sido genericamente melhor do que o presente é algo que sempre nos acompanhou. A meu ver, até me parece natural, ao pôr em paralelo o nosso declínio com o transcorrer da história. O que me parece artificial é tudo o que descontextualiza o tempo e acontecimentos anteriores, revisionismos de qualquer tipo que são o porquê de ter tanta dificuldade em retocar o que fui há anos atrás, sobrepondo-se o medo de trair o meu alter-ego mais novo e negar-lhe a fé (ou a decepção) de ter (ou não) evoluído. 
    Claro, o meu caríssimo leitor já anteviu que não louvo um presente que, convenhamos, deixa muito a desejar, apenas constato o discurso de “no tempo da outra senhora”, ou “no meu tempo é que era”, ter uma carga emotiva afastada da realidade empírica que, como diz o amigo Sérgio, com a fragilidade da paz, do pão, da habitação, da saúde e da educação, é preferível a esses jardins do éden do antigamente, no qual o oportunismo do homem subjuga a mulher, ao ponto de a culpar de um pecado mais ridículo do que original. Por mais aprazível que tenha sido apanhar o fresco, e o actual estar bastante saturado, tenho a certeza de o ar de então não ser o de um paraíso perdido… Refresquemo-nos, principalmente, as ideias. 

Paco Roca, viñetas de "Tomar la fresca", in "Regreso al Edén", Astiberri, Bilbao, 2021, p. 42.




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