quinta-feira, março 27, 2014

Diário I: A minha aparição, nesta linha onde o Bexiguinhas matou aquela galinha.

“E, todavia como é difícil explicar-me! Há no homem o dom perverso da banalização. Estamos condenados a pensar com palavras, a sentir com palavras, se queremos pelo menos que os outros sintam connosco. Mas as palavras são pedras.” 
 Vergílio Ferreira, Aparição


Sento-me aqui nesta linha e recordo.
(Uma linha de pouco serve
Se se sentencia tudo pela mesma bitola)
Pé ante pé, na ferrugem do carril
Da largura da minha sola de sapato
Como percorri gerações de caminhos
De ferro por onde já poucas vezes passam
Comboios, automotoras, dresines.
Gente.

Todas as infâncias têm um descampado.
Algumas têm uma linha.
O meu passado escampado
Tem uma cabana,
A morte num cão, uma campa
Florida, rendida à inocência de dois irmãos e uma vizinha.
Tem uma raposa morta,
Uma salta-pocinhas escalpada
Da curiosidade esfolada à putrefacção.
Tem cardos. Tem fardos na paisagem seca da eira.
Mas tem pistas, montes, barrancos de bmx,
(Identificadas com esponjas no volante, cobertas com napa agarradas ao velcro)
Território ocupado pela gaiatagem do bairro que tanto
Atraiu outros ao seu território, atraiu a passar a linha.
As batalhas fronteiriças resolviam-se à pedrada,
A munição mais à mão de semear
Imperfeita como paralelos mas ótima para arremessar.
Não participei nestas épicas batalhas de joelheiras nas calças sem marca de ganga.
Não tinha idade, nem cabedal de fisga, para me alistar.
A salvo, pela linha, não fugi para casa, fiquei a observar
Camaradas a apedrejar pelo que era seu,
Sustido por carris aparafusados a travessas secas,
Manchadas a óleo
Das engrenagens do comboio.

Para que esta crónica seja digna
Encontrar-lhe-emos um prego,
Com um número qualquer
De dois algarismos.

Do maquinista que percorre a linha nasceu este cronista.
Montado no seu cavalo de ferro
Trazia para casa o bom cheiro
Que leva o que leva o viajante.
O cheiro do maquinista que, como aqui escrevo, conquista
O direito a apear-nos sãos e salvos, mais ricos.

O descampado não tinha trabalhos de casa. Já tinham que estar feitos e sem nenhum trauma.
Tinha a odisseia da feia vegetação e do entulho ilegal que todos entulhávamos e com o qual coexistíamos. Era esse o ambiente dos guardiães da linha.
Esta não seria a mesma sem um quarteto fantástico, como o que lia em bandas desenhadas brasileiras, mas americanas, com as minhas ilusões de heroísmo.
Eu. Um amigalhaço de bombeiros. Amigalhaço (amizade forte como o aço).
Com o Carlos. O melhor amigo que o Karate Kid podia ter.
E dois gémeos. Diferentemente iguais. Arqui-inimigos de primária sem os quais o meu heroísmo de bd não podia viver.
Como havia tanto amor em não suportar essas almas.
O Nuno Gémeo era para sempre o meu colega de carteira e certeiro com o seu sorriso que melhor me faz. (desculpa a camisa rasgada na emboscada na entrada da casa, dos prédios da caixa, da avó do Caíta)
O Luís Gémeo, irrequieto e desperto, colecionador de sacos de plástico de giz. (a professora ficou espantada depois de dizer:
- tragam todo o giz que tiverem em casa!
E aí a deixaste plantada, com a sinceridade de criança num saco de plástico cheio de cal branca com o qual escreveste esse episódio)
Lembras-te quando sacaste o corta-unhas (com capa grilos) ao Carlos? Que violência tão descarada! Como a espessura da tua juba, louca, adjectivo da pluralidade da nossa puerilidade.

A linha do nosso descampado unia todos. Une. Mesmo a linha ténue da memória. Da estação até Mora, Estremoz, Portalegre, ou até qualquer um de nós. Apeava e albergava um Carlos, um Luís, dois gémeos. Traçava a boa saúde de um bairro e parecia-nos, diante dos olhos, nos delinear a infância, dando-nos, ao mesmo tempo, hora a hora, um comboio para sair.
Eu saí. Apanhei o Lusitânia.
Mas continuo convosco sentado naqueles montes de torrões. Naquela terra.
A contarmos vagões.
Um. Dois. Três com a sigla da CP.
À frente conduz o meu pai. Esperamo-lo no descampado.
Olha pá, o Sr. Pinto acenou-nos descansado.
Tem a certeza que já fizemos o ditado
Porque esse era o nosso TPC.

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