quinta-feira, dezembro 11, 2014

sublinhado

aprende-se a sublinhar, a anotar, a apontar num livro, porque já se viu alguma vez uma palavra, verbo, frase acariciada pela tolerância do lápis ou sentenciada pela ponta ajuizada duma esferográfica.

de ciências (ou meio físico talvez) da 3º classe, herdado de irmão de segunda mão. estava no armário da gaveta de quinquilharias úteis do meu avô joão. esse e um livro para traçar letras, analfabetizadas pelas circunstâncias, que não se sabem ler mas esperançadas de ser a chave de uma porta qualquer ou ferramentas para operar longe do mundo operário. estes eram os únicos livros que a casa dos meus avós possuía.

eram escassas as letras no pátio do carvalho nº5 e o carteiro, à exceção da contas com números para pagar, também não nos letrava. a vida levava-se com a razão do pão nosso de cada dia, de estantes vazias, limpas de pó, cheias de afectos visíveis e invisíveis, com cúmplices passos xadrez, de chão branco e castanho, numa cozinha de bancos duros e conversa suave.

o cheiro frio matinal livre do peso dos cobertores que pesavam em temperatura mas que me guardavam os sonhos de menino. o couro cabeludo fresco no áspero verão de sabão azul com o aroma do banho de mangueira, o final de tarde duma infância loira penteada com a mão firme em doçura de helena, que deixara tróia para ser minha avó e leal como todos nós.

com meu avô páris e sua helena, o azul dos meus olhos mergulhou pela primeira vez no atlântico. os meus progenitores estavam ocupados a construir um reino que afinal se vendeu antes de afundar-se.

nas margens em branco das páginas do livro de ciências (ou meio físico talvez), amarelecidas pelas passagens das estações com paragens pontuais de poucos dedos, estava um itálico pueril de “importante”. provável apontamento futurista de tio para sobrinho. um de vários para rios de portugal, linhas de norte a sul da cp e a constituição de uma planta que só fazia a fotossíntese para louvar  deus e, eventualmente, se salazar deixasse.

esse livro morreu nas minhas mãos. matei-lhe a genealogia na minha idade média adolescente. abriu-me as portas do renascimento mas ainda bem que não me viu piegas como os românticos. ficou no coração, ajudou a cabeça a ser humana e ajudou a pagar a alimentação do estômago para que chegasse à modernidade tão desassossegada por um passado com tão poucas letras…

mas tão, tão sublinhado.

XI/MMXIV

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