"O Zen e Andar de Bicicleta" por Luis Leal
Sempre que me dirijo ao quiosque, tanto ao que resiste físico como ao que está instalado nos nossos dispositivos, lembro-me das palavras de Alejandro Jodorowsky e assumo a minha dependência: “Cada manhã, como um drogado, injecto uma dose de angústia: leio o jornal”. Necessitar física e/ou psicologicamente de determinada substância, objeto ou atividade não é o mais propício à verdadeira criatividade, ou, no meu caso, a um olhar minimamente desintoxicado. Portanto, desde há uns anos que abdiquei de informar-me através da televisão, fazendo-o apenas pela rádio e por algumas publicações tidas como de referência. Esta terapia opcional tem-me ajudado, sinto-me mais sóbrio e não tenho tido fortes recaídas. Este vício, agravado pela minha profissão e pela minha condição de progenitor, tende a levar-me a uma introspecção fronteiriça com a depressão, o que faz com que se olhem de soslaio com demasiada frequência. Admitir este facto ajuda-me e também é um dos motivos pelos quais sempre que me agarro à caneta tendo a pensar em temas sociais, políticos e até de economia! O caríssimo leitor sabe que, às vezes, caio na esparrela e, ao ler quem sabe, penso: “para que é que te pões a escrever sobre estes assuntos?”. Hoje espero não cometer esse erro e ser fiel à rubrica que o António Sancho me confia e versa sobre “Trabalhos&Paixões”.
A significativa falta de atenção do mundo contemporâneo (agudizada pelas armas de destruição massiva que trazemos nos bolsos, os nossos smartphones, e com um mercado emergente da concentração, mas esse não é o tema) há muito fez interessar-me por filosofias como o Zen, ou seja, essa perspectiva nada religiosa da existência com um foco particular no cultivo da atenção, na vacuidade, no não fazer propositado, na higiene de pensamento, na plena presença e na sua consequente correlação de tudo o enunciado com uma maior compaixão, a qual nos leva indefectivelmente a uma sensação de paz e bem-estar. Não sou nenhum guru, muitíssimo menos iluminado, mas a verdade é que esta filosofia oriental, celebrizada através da cultura japonesa, já me pôs no meu sítio ao recordar-me um simples mantra “quando comes, comes, quando dormes, dormes” (ao qual juntei “quando escreves, escreves”).
Contudo o Zen chegou quando já tinha, sem saber, uma velha filosofia de infância, o simples andar de bicicleta. Comecei relativamente cedo, numa velha Órbita, e a bicicleta mostrou-me ser o meio de transporte mais propício para a receptividade dos nossos sentidos. Se pensarmos bem, o que melhor se adapta ao “aqui” e ao “agora” são os cinco sentidos. O vento na cara, o frio nas mãos, o calor nas costas, por vezes transformado em suor, ou o sol e a sombra só possível de contemplar no Alentejo. Todo o contrário da nossa mente, entidade fundamental para a identidade, mas que teima a vaguear pelo passado e pelo futuro, arrasando a experiência do momento, esse “Carpe Diem”, derivado da visão, da audição, do olfacto, do tacto e do paladar.
Em tempos olhei para a bicicleta desde uma perspectiva desportiva, cheguei a comprar calções de licra almofadados para a austeridade do selim e “camelbacks” para a hidratação, mas não sou pessoa de performances, vi que a roupa ajustada mostra-me ainda mais ridículo do que sou, e, naturalmente, agarrei-me a este belo velocípede sem esperar outra coisa que a mera circunstância de pôr-me em movimento contrariando algumas imposições sociais, tendências sedentárias, ou apenas ir a um determinado lugar de maneira económica, convertendo o seu uso numa forma de prática introspectiva. Há quem diga que isso é Zen puro e eu acredito. Portanto, tal como o ciclismo centrado no acto de pedalar apenas para manter o equilíbrio, o Zen não é um método, nem um dogma e, repito, não é uma religião. É um modo de encarar a vida, é uma experiência sensorial difícil de verbalizar, permitindo estabelecer um maior contacto connosco próprios e recuperar alguma da atenção perdida pelo caminho. Não elimina temores, ansiedades, reacções, hábitos, enfim, não é a panaceia, tem sim a capacidade de nos mostrar como tantas coisas alheias a nós próprios obstruem a nossa essência, tudo isto com um modesto recordatório: “Quando andas de bicicleta, andas de bicicleta”.
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Luis Leal, "Zen Fixie Guadiana I" |
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Luis Leal, "Zen Fixie Guadiana II" |
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