quarta-feira, fevereiro 28, 2007

Ruy Belo, mais uma vez


AS GRANDES INSUBMISSÕES


As grandes insubmissões sempre foram para mim as pequenas. Na minha vida, lem­bro duas. Começava um ano lectivo. Anda­ria no segundo ano do liceu. Era a época da feira da piedade. Cheguei de férias na minha terra e vi o vítor a andar de carrocel. Esperava que a volta acabasse para o abraçar. Fui esperando, ele nunca mais des­cia. Uma volta, mais outra, outra ainda. Fui contando: vinte. O vítor tinha vinte escudos. Eu já o respeitava, porque era muito alto. Passei a respeitá-lo mais. O vítor era capaz de gastar vinte escudos no carrocel.
Outra grande insubmissão foi a do maurí­cio, também nos primeiros anos do liceu. Um dia o maurício faltou à aula das nove. Até aí, nada de particular. Saímos para o pátio e o maurício estava no campo de bas­ket, perfeitamente equipado, so­zinho, a lançar a bola ao cesto.
– Ó maurício, faltaste à aula das nove.
E o maurício, sem responder, im­perturbá­vel, continuava a lançar a bola ao cesto.
Tocou para a aula das dez.
– Ó maurício, não vens à aula?
O maurício não respondia. Conti­nuava, imperturbável, a lançar a bola ao cesto.
Faltou à aula das dez, faltou toda a manhã. Nos intervalos saíamos e logo ouvíamos a bola contra a tabela. O maurício, sozinho, continuava a lançar a bola ao cesto.
Só se foi vestir quando tocou para a saída da última aula dessa manhã. Esperámos todos por ele. Não lhe perguntámos nada. E seguimo-lo cheios de admiração. O maurí­cio, apesar dos professores, apesar dos con­tínuos, apesar da campainha, faltara a todas as aulas.
Toda a manhã jogara basket. So­zinho. Contra professores, contra contínuos, contra a campainha.


Ruy Belo



2 comentários:

Luis Leal disse...

Cada vez tenho mais curiosidade por este autor! Obrigado por esta "pérola" de literatura!
Aquele abraço

Pedro L. Cuadrado disse...

ó Luís, Ruy Belo tem muito verso para descobrir. Posso voltar mais vezes com ele?
Aquele abraço