A espera pela minha
mulher levou-nos, ao meu filho e a mim, primeiro ao quiosque debaixo
do plátano, depois ao chinês dos soldadinhos de plástico e
finalmente à sombra dum banco de jardim.
O granito
agradavelmente fresco do banco, a relva verde esperançosa de
Setembro à qual, felizmente, não tem faltado regas e aparas,
compunham o que ia ser uma leitura rápida de resumo semanal e o
tirocínio dos soldadinhos mobilizados para a brincadeira fora do
saco de plástico.
Sempre gostei dos
bancos de jardim por ali estarem a contemplar uma ideia de acesso
igualitário a qualquer cidadão com necessidade de arejar o espírito
abafado pela urbe ou descansar as pernas do ritmo rápido da cidade.
Nenhum dos casos se adapta ao interior português onde me encontrava.
Li a primeira
crónica por devoção a ALA. Depois caí na distracção de
intrometer-me em pensamento na vida daqueles que passam.
Logo os primeiros,
um grupo de agarrados. Dois eles e uma ela. Bicicletas velhas,
enferrujadas de supermercado e as camisolas de alças, dos Lakers,
com o boné, de lado, a condizer em delinquência de indumentária
com tatuagens verdadeiras, feitas com agulha por esterilizar e
marcadas na pele com aquele definitivo azul bic. O trio maravilha de
veias salientes numa magreza dependente, evidentemente, de
estupefacientes.
O mais assustador
dos três, aquele que diríamos que esteve de cana, sorriu-me sem os
dentes da frente e, quando mais tarde por ele passei a empurrar o
carrinho de bebé, olhou para o meu outro filho com um olhar de quem
sabe o que é cuidar de alguém para sempre.
Segunda, terceiro,
quarta. Boa tarde. Sexto. Rosto no chão tímido. Oitava. Passos em
direcção a algo. Passos estudantes. Pressa em pés que têm medo de
não chegarem a horas ao atendimento do funcionalismo público.
Décimo primeiro.
O duo de idosas.
Lentas. Carinho infantil: "Olá como te chamas?". Toque de avó de
circunstância na bochecha da criança. Quase não se vêem crianças
no jardim.
Em Portugal, é tão
rara a ternura pública. A felicidade de ver uma infância a abrir-se
ao mundo. Há resíduos de afecto e constante indiferença
sisuda. Quem ainda teima em contrariar essa tendência são os que
estão no extremo oposto da vida, os mais velhos, os idosos que
viveram tempos piores que os de hoje e, a maioria, na miséria da
reforma dos seus dias, mostram, em gestos e sorrisos simples com a
felicidade alheia, que Portugal soube cuidar das suas crianças. É a
terceira idade, já ausente de fertilidade biológica, quem ainda
semeia a atenção e felicidade pela primeira infância. Não sei que
raio de traumas Portugal tem, talvez ainda qualquer coisa da Casa
Pia, mas não faz mal nenhum sorrir para um bebé ou dizer olá a uma
criança.
Décima terceira.
Décima segunda. Uma cifose ao telemóvel. Décimo quarto. Um zombie
de headphones. Os Xutos ao megafone da política do momento. “À
minha maneira”. Tanta coisa que a política estraga e corrompe, que
a música não é excepção.
Distraí-me com o
Vargas Llosa. Folheei o artigo sobre os refugiados, sobre a potencial
islamização da Europa. De certeza que já passaram mais de duas
dezenas de pessoas. Os soldadinhos de plástico já não são como
quando eu era miúdo. Sabia que os verdes eram os americanos e os
cinzentos os alemães. Já não se brinca com a história, mas ainda
se podem camuflar entre as folhas dos plátanos às ordens de um
general de quatro anos.
No meio deste
enfrentamento de joguetes, apresentam-se-me o elder 1 e o elder 2.
Denoto de imediato o português bem aprendido, com o sotaque
norte-americano propõem-me que falemos sobre Jesus Cristo. Agora não
me lembro bem se era sobre o Messias que queriam falar ou se era
sobre a sua igreja Mormon, a tal “Igreja de Jesus Cristo dos Santos
dos Últimos Dias”. Parece-me que vai dar ao mesmo.
Agradeci muito.
Disse-lhes que não perdessem tempo comigo. Tão jovens e já a
perderem tempo comigo. Ainda insistiram, argumentaram que o meus
tempo era importante mas tornaram-se mais crédulos da minha
sinceridade quando lhes disse que admirava o trabalho que a sua
igreja faziam com o estudo das árvores genealógicas.
“Pena” disse o
elder 2. “Costumo trazer a minha na mochila e logo hoje que não a
trouxe”.
Despedimo-nos
cordialmente. Senti que sentiram que não os estava a enganar.
Desejaram-me um bom descanso e o elder 1 fez uma festa no cabelo do
meu filho, um réplica dourada do seu.
Poucos minutos
depois, parei de me intrometer com o olhar na vida das pessoas. Tento
ser discreto. A nossa espera terminou. Deixei a tarde no banco de
jardim e agora, aqui, no silêncio teclado do meu escritório,
arrependo-me de não lhe ter proposto: “E porque é que não
falamos de outras coisas?”. Ao fim de contas também estaríamos a
falar de Deus.
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