sábado, setembro 19, 2015

No banco de jardim (da mais pequena capital de distrito de Portugal)



A espera pela minha mulher levou-nos, ao meu filho e a mim, primeiro ao quiosque debaixo do plátano, depois ao chinês dos soldadinhos de plástico e finalmente à sombra dum banco de jardim.

O granito agradavelmente fresco do banco, a relva verde esperançosa de Setembro à qual, felizmente, não tem faltado regas e aparas, compunham o que ia ser uma leitura rápida de resumo semanal e o tirocínio dos soldadinhos mobilizados para a brincadeira fora do saco de plástico.

Sempre gostei dos bancos de jardim por ali estarem a contemplar uma ideia de acesso igualitário a qualquer cidadão com necessidade de arejar o espírito abafado pela urbe ou descansar as pernas do ritmo rápido da cidade. Nenhum dos casos se adapta ao interior português onde me encontrava.

Li a primeira crónica por devoção a ALA. Depois caí na distracção de intrometer-me em pensamento na vida daqueles que passam.

Logo os primeiros, um grupo de agarrados. Dois eles e uma ela. Bicicletas velhas, enferrujadas de supermercado e as camisolas de alças, dos Lakers, com o boné, de lado, a condizer em delinquência de indumentária com tatuagens verdadeiras, feitas com agulha por esterilizar e marcadas na pele com aquele definitivo azul bic. O trio maravilha de veias salientes numa magreza dependente, evidentemente, de estupefacientes.

O mais assustador dos três, aquele que diríamos que esteve de cana, sorriu-me sem os dentes da frente e, quando mais tarde por ele passei a empurrar o carrinho de bebé, olhou para o meu outro filho com um olhar de quem sabe o que é cuidar de alguém para sempre.

Segunda, terceiro, quarta. Boa tarde. Sexto. Rosto no chão tímido. Oitava. Passos em direcção a algo. Passos estudantes. Pressa em pés que têm medo de não chegarem a horas ao atendimento do funcionalismo público. Décimo primeiro.

O duo de idosas. Lentas. Carinho infantil: "Olá como te chamas?". Toque de avó de circunstância na bochecha da criança. Quase não se vêem crianças no jardim.

Em Portugal, é tão rara a ternura pública. A felicidade de ver uma infância a abrir-se ao mundo. Há resíduos de afecto e constante indiferença sisuda. Quem ainda teima em contrariar essa tendência são os que estão no extremo oposto da vida, os mais velhos, os idosos que viveram tempos piores que os de hoje e, a maioria, na miséria da reforma dos seus dias, mostram, em gestos e sorrisos simples com a felicidade alheia, que Portugal soube cuidar das suas crianças. É a terceira idade, já ausente de fertilidade biológica, quem ainda semeia a atenção e felicidade pela primeira infância. Não sei que raio de traumas Portugal tem, talvez ainda qualquer coisa da Casa Pia, mas não faz mal nenhum sorrir para um bebé ou dizer olá a uma criança.

Décima terceira. Décima segunda. Uma cifose ao telemóvel. Décimo quarto. Um zombie de headphones. Os Xutos ao megafone da política do momento. “À minha maneira”. Tanta coisa que a política estraga e corrompe, que a música não é excepção.

Distraí-me com o Vargas Llosa. Folheei o artigo sobre os refugiados, sobre a potencial islamização da Europa. De certeza que já passaram mais de duas dezenas de pessoas. Os soldadinhos de plástico já não são como quando eu era miúdo. Sabia que os verdes eram os americanos e os cinzentos os alemães. Já não se brinca com a história, mas ainda se podem camuflar entre as folhas dos plátanos às ordens de um general de quatro anos.

No meio deste enfrentamento de joguetes, apresentam-se-me o elder 1 e o elder 2. Denoto de imediato o português bem aprendido, com o sotaque norte-americano propõem-me que falemos sobre Jesus Cristo. Agora não me lembro bem se era sobre o Messias que queriam falar ou se era sobre a sua igreja Mormon, a tal “Igreja de Jesus Cristo dos Santos dos Últimos Dias”. Parece-me que vai dar ao mesmo.

Agradeci muito. Disse-lhes que não perdessem tempo comigo. Tão jovens e já a perderem tempo comigo. Ainda insistiram, argumentaram que o meus tempo era importante mas tornaram-se mais crédulos da minha sinceridade quando lhes disse que admirava o trabalho que a sua igreja faziam com o estudo das árvores genealógicas.

“Pena” disse o elder 2. “Costumo trazer a minha na mochila e logo hoje que não a trouxe”.

Despedimo-nos cordialmente. Senti que sentiram que não os estava a enganar. Desejaram-me um bom descanso e o elder 1 fez uma festa no cabelo do meu filho, um réplica dourada do seu.

Poucos minutos depois, parei de me intrometer com o olhar na vida das pessoas. Tento ser discreto. A nossa espera terminou. Deixei a tarde no banco de jardim e agora, aqui, no silêncio teclado do meu escritório, arrependo-me de não lhe ter proposto: “E porque é que não falamos de outras coisas?”. Ao fim de contas também estaríamos a falar de Deus.


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