Duas das cidades mais importantes
no meu percurso de vida adoptaram São João como um dos patronos lá do burgo. As
respectivas feiras anuais de S. João/S. Juan, celebradas em simultâneo, atestam
a devoção ao profeta e ao solstício de verão.
Ao contrário destas cidades, não
tenho devoções ou, se existem, sou incapaz de identificá-las. Se tenho alguma
coisa parecida a uma veneração hagiográfica, patrono, simpatia assumida, condição
de fã, é apenas aos atributos que associo a qualidades humanas, as que
verdadeiramente prestam contas.
Em Espanha ainda se guarda a
tradição “de tu santo”. Isto é, o dia dedicado ao santo que, graças a quem te
deu um nome ao nascer, também é o teu dia. Apesar de não terem nascido nesses
dias, vou dar-vos um exemplo concreto, os dias 25 de Julho e 3 de Dezembro também
são os dias dos meus filhos. Santiago e Xavier. Agrada-me reconhecer história
de peregrinos e missionários nos nomes dos meus filhos, a sua mãe e eu
escolhemo-los por isso.
Porém, a história do meu nome não
tem nenhuma hagiografia consciente por detrás. Tem o avô do meu pai. O meu
bisavô Luis (sem acento agudo, por favor). Nunca o conheci. Morreu 6 anos antes
de eu nascer. Tinha olhos azuis e os seus genes recessivos, passadas três
gerações, recordam-se únicos nos meus olhos.
Há também quem diga que herdei
mais do que os olhos do meu bisavô. Quem o conheceu, e me conhece bem, diz que
o Luis (também sem acento, se faz favor) do final do século XX e princípio do
século XXI se parece muito em carácter ao Luis do final do século XIX e que
viveu no século XX o Portugal da monarquia, do regicídio, da 1ª República, do
Estado Novo e morreu em liberdade, mas sem nenhum tipo de ilusões floridas
pelos cravos de Abril.
Comecei esta crónica a pensar que
iria escrever sobre vidas de santos canonizados e institucionalizados em
Portugal e Espanha. Esse era o meu objectivo. Até, quem sabe, tentar dar um
lamiré sociológico à religiosidade de cada um dos países, se somos mais
matriarcais ou patriarcais, ou ambos, dependendo em que parte do território da
península estejamos. Sei que há devoções a arrastarem-se de joelhos, outras de
mãos cheias de sangue na primavera pascal com pregos de agonia, mas também devoções
que não podem cantar, nem querem, a esse “Jesus do madeiro, mas sim ao que
caminhou no mar”. Ao sentir-me inútil a dissertar sobre algo tão íntimo como a
fé do outro, acabei por me encontrar na memória dos meus.
Critico-me frequentemente por
tropeçar no passado. Não tenho nem idade nem pretéritos para isso. Sinto
dificuldade em atribuir futuro à memória, quase sempre contaminada pela nossa
interpretação do tempo. Parece-me que perde potencial criador e está totalmente
ausente de entusiasmo (essa palavra consagrada no meu dicionário, pois, mais
que etimologicamente, humanamente “tem Deus dentro”). O excesso de memória
talvez evidencie falta de talento ou um talento especial para encaixar o
passado no presente. Não sei.
“O nome é em certo sentido a
própria coisa; dar nome às coisas é conhecê-las e apropriar-se delas; a
denominação é o acto da posse espiritual”. Os meus pais não leram Miguel de
Unamuno, apropriaram-se do nome do meu bisavô por estima e espero ainda não o
ter desfigurado. No passar dos dias, no acumular de reminiscências, todos somos
santos por sermos forçados a carregar as nossas histórias e as de tantos nomes
dos que nos ficaram para trás. Não temos, nem carecemos, de um processo que nos
reconheça uma lembrança institucionalizada. Dentro dum qualquer santuário de
memória alguém nos arrasta. Uma qualquer gota de ironia genética num olhar nos
perpetua. Chamo-me Luis graças ao avô do meu pai. Não sei se foi um santo, nem
me interessa. Foi um homem. Essa condição basta-me.
Sem comentários:
Enviar um comentário