terça-feira, junho 21, 2016

Os Nossos Santos (in revista "Mais Alentejo" nº133)

Duas das cidades mais importantes no meu percurso de vida adoptaram São João como um dos patronos lá do burgo. As respectivas feiras anuais de S. João/S. Juan, celebradas em simultâneo, atestam a devoção ao profeta e ao solstício de verão.

Ao contrário destas cidades, não tenho devoções ou, se existem, sou incapaz de identificá-las. Se tenho alguma coisa parecida a uma veneração hagiográfica, patrono, simpatia assumida, condição de fã, é apenas aos atributos que associo a qualidades humanas, as que verdadeiramente prestam contas.

Em Espanha ainda se guarda a tradição “de tu santo”. Isto é, o dia dedicado ao santo que, graças a quem te deu um nome ao nascer, também é o teu dia. Apesar de não terem nascido nesses dias, vou dar-vos um exemplo concreto, os dias 25 de Julho e 3 de Dezembro também são os dias dos meus filhos. Santiago e Xavier. Agrada-me reconhecer história de peregrinos e missionários nos nomes dos meus filhos, a sua mãe e eu escolhemo-los por isso. 

Porém, a história do meu nome não tem nenhuma hagiografia consciente por detrás. Tem o avô do meu pai. O meu bisavô Luis (sem acento agudo, por favor). Nunca o conheci. Morreu 6 anos antes de eu nascer. Tinha olhos azuis e os seus genes recessivos, passadas três gerações, recordam-se únicos nos meus olhos.

Há também quem diga que herdei mais do que os olhos do meu bisavô. Quem o conheceu, e me conhece bem, diz que o Luis (também sem acento, se faz favor) do final do século XX e princípio do século XXI se parece muito em carácter ao Luis do final do século XIX e que viveu no século XX o Portugal da monarquia, do regicídio, da 1ª República, do Estado Novo e morreu em liberdade, mas sem nenhum tipo de ilusões floridas pelos cravos de Abril.

Comecei esta crónica a pensar que iria escrever sobre vidas de santos canonizados e institucionalizados em Portugal e Espanha. Esse era o meu objectivo. Até, quem sabe, tentar dar um lamiré sociológico à religiosidade de cada um dos países, se somos mais matriarcais ou patriarcais, ou ambos, dependendo em que parte do território da península estejamos. Sei que há devoções a arrastarem-se de joelhos, outras de mãos cheias de sangue na primavera pascal com pregos de agonia, mas também devoções que não podem cantar, nem querem, a esse “Jesus do madeiro, mas sim ao que caminhou no mar”. Ao sentir-me inútil a dissertar sobre algo tão íntimo como a fé do outro, acabei por me encontrar na memória dos meus.

Critico-me frequentemente por tropeçar no passado. Não tenho nem idade nem pretéritos para isso. Sinto dificuldade em atribuir futuro à memória, quase sempre contaminada pela nossa interpretação do tempo. Parece-me que perde potencial criador e está totalmente ausente de entusiasmo (essa palavra consagrada no meu dicionário, pois, mais que etimologicamente, humanamente “tem Deus dentro”). O excesso de memória talvez evidencie falta de talento ou um talento especial para encaixar o passado no presente. Não sei.


“O nome é em certo sentido a própria coisa; dar nome às coisas é conhecê-las e apropriar-se delas; a denominação é o acto da posse espiritual”. Os meus pais não leram Miguel de Unamuno, apropriaram-se do nome do meu bisavô por estima e espero ainda não o ter desfigurado. No passar dos dias, no acumular de reminiscências, todos somos santos por sermos forçados a carregar as nossas histórias e as de tantos nomes dos que nos ficaram para trás. Não temos, nem carecemos, de um processo que nos reconheça uma lembrança institucionalizada. Dentro dum qualquer santuário de memória alguém nos arrasta. Uma qualquer gota de ironia genética num olhar nos perpetua. Chamo-me Luis graças ao avô do meu pai. Não sei se foi um santo, nem me interessa. Foi um homem. Essa condição basta-me. 

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