A Amélia e Francisco Nunes, "In memoriam"
Aceder a ferramentas é
fundamental para que qualquer obra se edifique. A ferramenta é uma extensão da
mão, moldada à necessidade e caracterizada pelo engenho, como tal, quando não
se têm os utensílios adequados, o projeto tende a ser mais duro de trabalho,
lento, algo tosco, longe dos padrões da perfeição exigida.
Em casa havia ferramentas
suficientes, nem todas específicas, mas sempre tive a sorte de alguém mas
emprestar com confiança e generosidade. Isso não impede que a casa da nossa
infância se vá desabando na Rua Reguengos de Monsaraz. Não a terminámos a
tempo. É imperfeita por medos e ingenuidade, no entanto, tal como a capela do
Mosteiro da Batalha, é bela na sua história e não faz falta ver-se acabada.
Atualmente tenho as
minhas ferramentas. Aprendi a desenrascar-me, a fabricar algumas por conta
própria, mas continuo a ir frequentemente à garagem do Chico Nunes pedir-lhe
ferramentas emprestadas. Um alicate específico em pontas, uma broca de
diamante, uma chave de bocas ou se posso usar o torno na sua bancada tão
organizada que me faz querer ter uma igual na qual seja capaz de escrever um
poema e soldar ao mesmo tempo.
Lá está o meu vizinho
favorito, músico militar em camisola de alças, a ensaiar com o seu saxofone. Bem
me quer ensinar solfejo, porém o ritmo da minha maturidade tarda, é irregular
como o dos amantes e nunca poderá executar música porque só serve para frui-la.
No meio desta garagem, organizada por serventias, ouço o sopro dum jazz futuro
e improvisado, o canto biográfico dum "Bird" e revejo-me na
camaradagem do Clarence Clemons na obra, de mangas arregaçadas, do “Boss”
Springsteen.
"Leva o que quiseres
Pintainho", diz-me com voz grave, brilhante, igual ao saxofone cuidado
pelas suas mãos. Confia em mim e eu nele. É uma alegria vê-lo na missa a tocar
na banda do Jesus com cara de quem não está chateado comigo por eu odiar que a
minha mãe me obrigue a ir à missa todos os domingos. Foi a melhor aquisição
para a capelinha da Senhora da Saúde e eu sinto-me melhor ao vê-lo aí. Até os
grandes homens, másculos e fortes, vão à missa, logo a minha virilidade não
está ameaçada pela beatice a que a minha mãe me obriga.
Não há ferramenta que
detenha o tempo, muito menos que o concerte. Da época da garagem, da Eucaristia
dominical imposta, passando pela única classe que algum dia tive - porque o meu
vizinho Chico, com tanta paciência e carinho me dava o nó na gravata, agradado
por ser o eleito da minha amizade, da minha admiração, sempre me dizia "o
meu Pintainho" – chego a este dia.
Também não há ferramenta,
de pleno juízo, que me tire a alegria em recordar ir ao outro lado da rua,
bater à porta e perguntar à vizinha Amélia pelo vizinho Chico. Ela deixa-me
entrar e diz-me para ir ter com ele à cozinha ou à garagem, ali onde ele é a
grande ferramenta que a vida, confiante e generosa, me emprestou.
Quis também a vida que
não nos despedíssemos. Os amigos não se despedem, honram a amizade de maneira
simples. Nunca aprenderei a fazer o nó da gravata. Não quero. Será sempre o
vizinho Chico quem mo vai fazer, orgulhoso de ver o Pintainho que as suas
ferramentas ajudaram a crescer.
Hoje o meu amigo
Francisco Nunes fazia 78 anos. A vizinha Amélia já o ouve a ensaiar na garagem.
Qualquer dia volto a atravessar a rua e bato-lhes à porta. Levarei a gravata na
mão, bem passada, e peço-lhe para me fazer o nó “windsor”, aquele que ele acha
dar-me mais classe…
Sem comentários:
Enviar um comentário