quinta-feira, dezembro 08, 2016

Ferramentas e afeto


A Amélia e Francisco Nunes, "In memoriam"

Aceder a ferramentas é fundamental para que qualquer obra se edifique. A ferramenta é uma extensão da mão, moldada à necessidade e caracterizada pelo engenho, como tal, quando não se têm os utensílios adequados, o projeto tende a ser mais duro de trabalho, lento, algo tosco, longe dos padrões da perfeição exigida.  

Em casa havia ferramentas suficientes, nem todas específicas, mas sempre tive a sorte de alguém mas emprestar com confiança e generosidade. Isso não impede que a casa da nossa infância se vá desabando na Rua Reguengos de Monsaraz. Não a terminámos a tempo. É imperfeita por medos e ingenuidade, no entanto, tal como a capela do Mosteiro da Batalha, é bela na sua história e não faz falta ver-se acabada.

Atualmente tenho as minhas ferramentas. Aprendi a desenrascar-me, a fabricar algumas por conta própria, mas continuo a ir frequentemente à garagem do Chico Nunes pedir-lhe ferramentas emprestadas. Um alicate específico em pontas, uma broca de diamante, uma chave de bocas ou se posso usar o torno na sua bancada tão organizada que me faz querer ter uma igual na qual seja capaz de escrever um poema e soldar ao mesmo tempo.

Lá está o meu vizinho favorito, músico militar em camisola de alças, a ensaiar com o seu saxofone. Bem me quer ensinar solfejo, porém o ritmo da minha maturidade tarda, é irregular como o dos amantes e nunca poderá executar música porque só serve para frui-la. No meio desta garagem, organizada por serventias, ouço o sopro dum jazz futuro e improvisado, o canto biográfico dum "Bird" e revejo-me na camaradagem do Clarence Clemons na obra, de mangas arregaçadas, do “Boss” Springsteen.

"Leva o que quiseres Pintainho", diz-me com voz grave, brilhante, igual ao saxofone cuidado pelas suas mãos. Confia em mim e eu nele. É uma alegria vê-lo na missa a tocar na banda do Jesus com cara de quem não está chateado comigo por eu odiar que a minha mãe me obrigue a ir à missa todos os domingos. Foi a melhor aquisição para a capelinha da Senhora da Saúde e eu sinto-me melhor ao vê-lo aí. Até os grandes homens, másculos e fortes, vão à missa, logo a minha virilidade não está ameaçada pela beatice a que a minha mãe me obriga.

Não há ferramenta que detenha o tempo, muito menos que o concerte. Da época da garagem, da Eucaristia dominical imposta, passando pela única classe que algum dia tive - porque o meu vizinho Chico, com tanta paciência e carinho me dava o nó na gravata, agradado por ser o eleito da minha amizade, da minha admiração, sempre me dizia "o meu Pintainho" – chego a este dia.  

Também não há ferramenta, de pleno juízo, que me tire a alegria em recordar ir ao outro lado da rua, bater à porta e perguntar à vizinha Amélia pelo vizinho Chico. Ela deixa-me entrar e diz-me para ir ter com ele à cozinha ou à garagem, ali onde ele é a grande ferramenta que a vida, confiante e generosa, me emprestou.

Quis também a vida que não nos despedíssemos. Os amigos não se despedem, honram a amizade de maneira simples. Nunca aprenderei a fazer o nó da gravata. Não quero. Será sempre o vizinho Chico quem mo vai fazer, orgulhoso de ver o Pintainho que as suas ferramentas ajudaram a crescer.

Hoje o meu amigo Francisco Nunes fazia 78 anos. A vizinha Amélia já o ouve a ensaiar na garagem. Qualquer dia volto a atravessar a rua e bato-lhes à porta. Levarei a gravata na mão, bem passada, e peço-lhe para me fazer o nó “windsor”, aquele que ele acha dar-me mais classe…

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