sábado, junho 11, 2022

Crónica: "Ensaio sobre a (minha) fronteira" de Luis Leal (in "Mais Alentejo" nº160, p. 91)

Sempre que leio o “i” de fronteira em português parece-me que foi delineado pela identidade lusa para delimitar-se da invasiva “frontera” de Castela. Note-se que isto não tem nada de teoria, é pura mania e cada um tem as suas, como o facto de ao ter nascido em solo alentejano nunca ter sido propício a semivogais e, desde tenra idade, acostumar-me a abdicar do “i” na “mantêga”, no “lête” e no “quêjo”, o que conscientemente me afastava de algum exagero arrogante de semivogais e do centralismo impositivo de Lisboa e inconsciente me acercava à agrestia da minha paisagem e à que seria a minha “frontera”.

Não nasci na fronteira – apesar de haver quem considere Portugal raiano, ou seja, uma nação toda ela limítrofe –. Há quem veja as circunstâncias de nascer na fronteira como uma oportunidade, houve mesmo uma época em que o julgava assim, no entanto a convicção foi substituída pelas incertezas e isso leva-me a indagação: é a fronteira um lugar ou um “não-lugar” como diria o Marc Augê? Poderá alguma vez ser pátria, dado que é filha de pais separados e, em tantos casos, de pais incógnitos? Pode a fronteira advir de geração espontânea? Eis as minhas reticências quando Glória Anzaldúa enunciava a fronteira “como o único ponto da terra que contém todos os lugares do mundo”. Entendo o seu humanismo, sinto o seu lirismo, porém, para quem, como eu, não se considera um cidadão do mundo (longe está a cidadania como apanágio planetário) impõe-se o fracasso que pode ser morrer na fronteira, esse território de todos, portanto de ninguém.

Até Março de 2020, “vivia a fronteira”, essas passagens constantes e viagens no tempo graças ao diferente fuso horário entre Espanha e Portugal, com um certo idealismo a acompanhar o meu habitat raiano. Instaurado o confinamento em Espanha (possivelmente o mais restrito de toda a Europa), instaurado o medo da primeira onda de Covid em Portugal, fui obstruído e não pude prosseguir nessa perspectiva, porventura ingénua, iniciada com o Tratado de Schengen, e comecei a “pensar a fronteira”, confrontando-me com a sua dimensão contraditória, dado que esse lugar-limite é extraordinariamente ambíguo, pois tanto demarca um início como um final. Refletir sobre a fronteira (uso o singular num sentido de pluralidade) depois dos meses negros, do trauma e da vulnerabilidade a que fomos expostos há dois anos, tem sido catártico e ajuda-me a procurar esse desígnio de lugar no mundo mais além dos versos de Jorge Drexler “yo no sé de donde soy, mi casa está en la frontera” e, efectivamente, “las fronteras se mueven como las banderas”. Uma bandeira a apropriar-se de um lugar remete-me para o egocentrismo, para um etnocentrismo colonizador – passível de encontrarmos até na superfície lunar –, e para a imperiosa realidade que um lugar-limite abre e fecha e tanto se pode converter em lugar de salvação como em lugar a evitar por temor.

Adolfo García Ortega, através do apócrifo filósofo japonês Hiroshi Kindaichi, propõe uma hermenêutica da fronteira como um lugar onde ir para saciar a curiosidade (ao lê-lo lembrei-me das “casas da dúvida” – virtuosa definição – disseminadas raia fora), como um lugar proibido e imaginário, um lugar que tanto atrai como repele, indo ainda mais longe, ao enfatizar a fronteira como “um ponto de conexão estimulante”, pelo simples facto de a nossa presença ali ser um acerto ou um erro, porém algo decisivo de se saber. Como todas, a minha existência é circunstancial e permeável à incerteza. Não sei se foi um acerto ou um erro encerrar tantas vezes a fronteira terrestre luso-espanhola durante estes anos pandémicos. Intuo algumas coisas, contudo, mantenho a convicção que a ausência de fronteiras iguala as pessoas e, por outra parte, impô-las, mais do que demarcar espaços, identifica as elites, revela os seus interesses.

É difícil ser fronteiriço, exige disciplina, obriga a um equilíbrio atento, o único que permite oscilar de um extremo ao outro sem agredir, sem destabilizar, preservando uma identidade harmoniosa. Com Kindaichi medito e, como ele, atento na “transparência uma fronteira” pela qual se facilita a perspectiva. Lamento, mas neste tempo de escrita a minha fronteira não é tão diáfana como outrora, admito mesmo alguma falta de nitidez. 

"Entre duas terras"/Entre dos tierras" - Luis Leal (Fontañera/Galegos)

  



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