quarta-feira, outubro 07, 2015

Saudade, essa exclusividade…(in Revista "Mais Alentejo" nº129)


Saudade é um pouco como fome. Só passa quando se come a presença. Mas às vezes a saudade é tão profunda que a presença é pouco: quer-se absorver a outra pessoa toda.
Clarice Lispector

Cresci com epopeias marítimas, que deram novos mundos ao mundo, como um dos eixos fundamentais da biografia inigualável dum povo. Porém, quando viajo no tempo e procuro o primeiro acto real de exclusividade, inigualável e colectiva, da minha gente, aterro na consciência da minha adolescência com o peso do Gama navegador, extraído da audácia d’Os Lusíadas, convertido então em Vice-rei dum viaduto de tabuleiros unidos na ponte mais longa da Europa.

A inauguração da Ponte Vasco da Gama vincou-se no Guiness através da maior feijoada, refogada em massas pelo primeiro chef em Portugal benemérito duma estrela Michelin. Na actualidade, a estrelinha de Michel ofuscou-se por coisas que nada têm a ver com feijões, mas almas como a minha jamais esquecerão o talento de servir a maior mesa de refeição posta, com cinco quilómetros de pessoas sentadas a enfardarem dez toneladas de uma leguminosa com potenciais efeitos colaterais. (Pergunta o cronista o porquê de uma feijoada e não um cozido? Um bacalhau à Gomes Sá ou Zé do Pipo? Já que se tratava da exclusividade da portugalidade… Ainda hoje o atormentam estas decisões pátrias!).

Tantos anos depois, e sem nunca se ter analisado o impacto ambiental deste menu, deparo-me constantemente com outra exclusividade lusa: a da saudade.

A saudade é um exclusivo do colectivo português. Quem for de fora não se atreva a sentir semelhante coisa. O peso do vocábulo é muito mais do que pura nostalgia do passado, ausência do lar, necessidade ou anseio de um porvir. Por isso, nem pensar nisso! Sem BI português não há saudosismo para ninguém! (Vá lá, um da lusofonia ainda permite admissão no clube!).

Eu mesmo, que vivo da língua onde nasci, já parti tantas vezes esse vidro que diz “partir em caso de emergência” para defender e fundamentar a exclusividade da saudade. Como extintores à mão tenho os grandes Camões, Bocage, Teixeira de Pascoaes, um exército de clones Pessoano, o guia no labirinto de Eduardo Lourenço, e um Google a transbordar em citações. (Até já o cronista recorreu ao fado - esse património intangível tão útil, se se tem falta de imaginação, para vender a um turista em Lisboa o que é nascer e ser-se neste pequeno rectângulo ibérico –.).

Se não chegam as tropas disponíveis na frente on-line, recorro ao arsenal secreto de sebentas dos meus mestres, como o finado Cunha Leão ou o meu caríssimo Cândido Franco para que nos diálogos parafraseados aos meus alunos, em que ponho a gravidade da minha cara de intelectual nº27, lhes explique o perigo de confusão com a morriña galega, a añoranza hispana, a yearning anglófona, creio que a Sehnsucht germana, enfim, por favor não se atrevam com trasladações do sentimento do ilustre peito lusitano para peitos alheios, logo não autorizados a decifrar o enigma de tão peculiar caixa toráxica.


(Aqui o cronista não é capaz de pôr a cara nº27. Fica-lhe mal. E para ser sincero com estas linhas, nem ele, que tem na carteira um cartão de cidadão português, está totalmente convencido dum sentir agregador de espaço/tempo passado, presente e futuro. Tal como a feijoada exclusiva da Ponte Vasco da Gama, os efeitos da nossa saudade são iguais num português ou num espanhol. Isso sim seria mais honesto da sua parte elucidar quando lho perguntam. Fica a sinceridade da sua saudade no tinteiro, a única exclusividade a que se pode permitir…).  

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