quarta-feira, março 13, 2019

Coimbra

Postal de Coimbra, anos 80 (autor desconhecido)

Houve uma época em que estive a ponto de para lá ir viver. Sei-o graças aos meus pais e à circunstância do meu pai poder ter o seu «Posto de Tracção» no local de residência, em vez de andar de lancheira atrás e de dormitório em dormitório.

Coimbra existe na minha infância como uma possibilidade. Nada mais. Nem o «Portugal dos Pequeninos» eu visitei em criança.

Ao Barreiro aconteceu o mesmo. Outra possibilidade de um filho de ferroviário poder acompanhar, em família, o destino laboral do pai. Porém, o Tejo existiu nos meus verdes anos, ao contrário do Mondego que só conhecia do mapa hidrográfico herdado do Estado Novo.

Aí parava o comboio e apanhava-se o barco (também da CP) para o Terreiro da capital que se visitava por papéis ou por causas médicas, muitas delas terminais. Lembro-me de gente da minha terra ir morrer a Lisboa, mas não recordo nenhum dos meus. Ainda bem. Talvez, se assim não fosse, nunca teria feito as pazes com a capital e perdoar-lhe do meu país a ela se resumir e tudo o resto ser paisagem. Já não faço o mesmo trajecto, mas vou visitá-la com um certo gosto, reconheço-o elitista, de desfrutar dum sossego junto ao rio que a maioria não pode.

E de Coimbra fui parar ao Barreiro e daí fui-me embora para Lisboa. As palavras, como a memória, escapam-se para aonde querem. Eu estou onde estou e não sei se me quero por aqui. Não perco demasiado tempo a averiguá-lo, sei bem, como filho de ferroviário e neto de agulheiro, que as linhas paralelas nem no infinito confluem. Na ausência de poder confluir, imagino. Imagino o que haveria de ter sido viver na cidade universitária de Portugal. Imagino que talvez os meus obsessos na garganta não tivessem sido supurados pelo Dr. Aguilar, que as minhas amígdalas talvez tivessem sido examinadas por um velho otorrino transmontano com consultório no Largo da Portagem. Imagino o Dr. Adolfo Rocha a examinar as goelas dum miúdo longe do berço na planície, longe dos avós alentejanos, e descobrir um nó na garganta que jamais a sua voz desatará. Não trocariam mais palavras do que as necessárias para abrir/fechar boca ou língua para fora e, no final, seringa cheia e obsesso purgado, um «bom rapaz, nem uma lágrima!».

Ao meu pai diria que se isto continuar assim teríamos que operar.

Saídos do consultório, o meu pai sentiria a necessidade de compensar o meu estoicismo de qualquer maneira. Como não estávamos ao pé de nenhuma loja de brinquedos, onde pudesse comprar-me um carrinho, iríamos à livraria ali perto. Comprar-me-ia um livro de capa branca com histórias de «Bichos» como aquele que tínhamos lá na terra, o Nero que deixáramos na quinta dos meus tios. Voltaríamos a casa e, quem sabe, um dia soubéssemos que havíamos conhecido alguém como nós, que só ali vivia mas que não era dali.

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