quinta-feira, setembro 05, 2019

Dia de cão


Dia de cão

Coisa que me emociona é história de cadelinhas vira-latas que salvam crianças de ataques de pitbulls. Outro dia foi em Campo Grande, Mato Grosso do Sul. A cadelinha Milu, uma vira-lata de pelagem curta, marrom e branca, dessas cachorras bem ordinárias, arrancou o couro da garganta de um pitbull em pleno acesso de fúria. Era o Mal personificado por dentes cravados na junta de joelho de um menino de 11 anos. O garoto talvez perca alguns movimentos parciais da perna. Ao ver o menino em enorme sofrimento, a cachorra atravessou a rua como um foguete, em vias de ser atropelada, e pulou direto na jugular do ferocíssimo cão. Ferido de morte, o pitbull largou a perna da criança e soltou um longo e doloroso ganido.

Tinha os olhos injetados de sangue cor de vinho quando virou o pescoço no limite da musculatura e mordeu uma orelha da vira-lata. Milu, três anos de rua, acostumada a garantir as refeições na base do pega-e-corre, acusou o golpe, mas em vez de arregar, apertou mais forte o pescoço do inimigo. Ouviu-se o som surdo de duas travas. A primeira, da oclusão perfeita e letal das mandíbulas da cadelinha. A segunda, da traquéia do pitbull virando geléia, se me permitem a assonância. Milu perdeu parte de uma orelha, mas foi adotada pela família do menino salvo, sendo enviada, tempos depois, para viver num sítio da família. Se tudo der certo, a vira-lata terá garantido para si, graças a um ato desvairado de coragem, casa e comida até morrer. Deve haver uma lição nisso.

Nessas coisas residem o sucesso do livro Marley e Eu, que não li, nem pretendo ler, por pura inveja. Difícil não se emocionar com essas histórias de cães heróis, porque temos essa proximidade emocional com os cachorros, criaturas que nos enchem de amor apenas porque gostam de comer, bem e muito, sem fazer esforço. Eu vivo com duas cockers spaniels, cães hiperativos e famélicos que vivem, permanentemente, com os ânimos exaltados. São mãe e filha, mas roubam comida uma da outra, brigam, rugindo como leoas, no meio da madrugada, latem pelas escadas do prédio, destroem os jardins plantados pela síndica, e cada uma a seu tempo destruiu boa parte do mobiliário da casa. Cansadas, dormem no sofá da sala, ou o que sobrou dele, porque a mais nova fez dois enormes buracos no estofamento. Ambas apanharam de cinto nos quadris para aprenderem a não subir no sofá. Ou elas são burras o suficiente para não fazer a associação entre o ato e a dor, ou são inteligentes o bastante para perceber que me sinto culpado o suficiente para não bater nelas outra vez. Não sei como Marley se sentiria nessa situação, mas as duas voltaram a dormir no sofá a sono solto.

A mais velha, quando está no cio, corre para cima até de yorkshire, vira a bunda, dobra o cotoco de rabo para o lado. Já cruzou, à revelia de minha vontade, com um outro cocker na pracinha infantil da quadra, em frente de meia dúzia de crianças. De outra feita, deixou-se possuir por um bichon frisé na frente de outros cães e pessoas, num gramado público da Asa Norte, quando tudo indicava que o cio já tinha acabado. Passou vinte minutos grudada com o amante, um de costas para o outro, cada qual com aquele olhar de paisagem tão caro aos do mundo canino. A mais nova só teve um cio. Todos os cachorros que tentaram se aproximar foram violentamente repelidos por dentes arreganhados, novinhos em folha. Ambas já morderam crianças. Duvido que a história de Marley seja mais emocionante do que a delas, uma comprada na feira por 120 reais, outra nascida no quartinho da dispensa aqui de casa.

Mas Marley é americano, tem pedigree e a bossa de todo labrador. E, possivelmente, um dono mais talentoso.

 (22-maio-2007)

(Fonte)


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