quarta-feira, abril 22, 2020

21/IV/2020

De todos os dias confinados, este que deixo para trás, talvez tenha sido dos mais desagradáveis. Nada de terrível, comparado com o que outros vivem (gosto de mo recordar, para não ser desagradecido), mas chato. Chato tipo uma coisa no sapato que te magoa durante todo o dia ou aquela estúpida moinha nos músculos que sentes até qualquer anti-inflamatório fazer efeito.
Começou com o trabalho. Mensagens e mais mensagens, longe do cara a cara que levam a malentendidos e para pouco servem. Papéis e mais papéis. Trabalhos dos pequenotes, privilegiados porque têm quem os ensine e os desconecte do que se vai passando lá fora. Felizmente, depois de tantos megas de trabalhos e videos, continuam analógicos e ainda não conhecem o desprezo que alguns votam o trabalho manual.
E, a meio do dia, uma conferência de imprensa duma ministra deste reino onde este republicano vive. A senhora avança que a criançada confinada só poderá sair com os pais para ir onde já podiam ir, caso estivessem sozinhas em casa, isto é, só poderiam sair para ir ao supermercado, à farmácia e ao banco.
A E. ouviu e indignou-se com as expectativas frustradas de apanhar ar que o presidente do governo avançara no sábado passado. Tinha razão. Eu, talvez por estar cansado de já duma jornada a dar para o inútil, não me deu para tanto. Pensei que estivessem a gozar, que se tivessem enganado ou que fosse a mentira do um de Abril que perdemos neste calendário. Pensei que não podemos ser tão estúpidos, que não podemos ser tão acéfalos, que os que nos representam têm um nível intelectual um pouco acima da média e que, antes de falarem em público, um grupo de assessores faz umas últimas revisões para haver o menos possível de polémica.
A verdade é que eu não queria estar no seu lugar, contudo lhe dou mais ou menos valor por isso. São políticos e, se há uma qualquer ética por aí, têm de servir a cidadania por cima de qualquer interesse pessoal. 
No entanto, o absurdo, a situação surreal, só durou até ao final da tarde quando um novo comunicado de outro ministro rectifica o que poderia ter sido essa mentirinha de Abril com a afirmação que a criançada poderá, a partir do próximo dia 27, dar um passeio higiénico com os seus pais fora de casa, recuperando os seus direitos ao nível dos cães domésticos. Como e por quanto tempo, dir-nos-ão nos próximos capítulos.
Já menos aparvalhado, e a E. menos indignada, apercebo-me que as nossas crianças, aqui confinadas desde o dia 13 do mês passado, sem qualquer varanda, não se manifestaram. Tudo lhes é tão simples quanto abstracto. Desconhecem racionalmente esse adjetivo que é "livre".
Eu apenas sei que, uma vez mais, tudo o que se vaticine sobre a selvajaria do capitalismo será uma falácia. Seremos mais solidários, dizem. O sistema terá de ser mais equilibrado, outros esperam. Não podemos continuar assim, resistem uns quantos. Só podem sair para ir às compras, à farmácia e ao banco, diz-nos um governo progressista, de esquerda.
Só queremos apanhar ar, esticar as pernas, olhar para o céu, se possível, tocar na terra que desconhece calendários. A liberdade vai-se vivendo por dentro e, desde dentro, algo me faz pensar que muito do que estamos a viver carece de muito mais do que sentido. Carece de decência.

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