Entre a serenidade e o sangue, é para o sangue que nos inclinamos. As nossas células viciaram-se na vertigem interminável
Uma das coisas que me apaixona na biografia do filósofo E. M. Cioran (1911-1995) é o seu amor por viagens de bicicleta. Percorreu dessa maneira grande parte de França, Itália e de Espanha. Por Espanha nutria, ainda por cima, uma paixão declarada. Antes que o turismo moldasse as formas da paisagem e da convivência, ele passeou-se pelas estradas regionais, correu quilómetros e quilómetros junto a linhas de água ou perdeu-se no ziguezagueado das pequenas localidades, onde era recebido, em alvoroço, pela miudagem como se fosse um terrestre a aterrar em Marte. Ele tinha trocado a Roménia por Paris graças a uma bolsa do Instituto Francês de Bucareste para que escrevesse uma tese de doutoramento sobre Bergson, projeto que nunca chegou a concluir. O próprio Cioran conta que o seu orientador, que sabia que ele havia já percorrido a França em bicicleta, lhe terá dito que “fazer o tour da França em bicicleta é mais importante que concluir um doutoramento”.
Cioran tinha uma fobia total por aviões, nos quais nunca chegou a andar, apesar dos muitos convites para se deslocar aos Estados Unidos, por exemplo. Ao comboio recorria quando era inevitável. Com o automóvel fazia o mesmo. A sua companheira de uma vida, e cúmplice deste interesse ciclístico, Simone Boué, dizia que Cioran encontrava na bicicleta aquilo que só o trabalho manual lhe dava também: o esvaziamento do estado agudo de consciência em que estava continuamente, uma imersão completa num tipo de movimento inseparável do corpo e, ao mesmo tempo, um reencontro cadenciado com a imobilidade. Quando progressivamente as estradas se foram colonizando pelo tráfico automóvel, cada vez mais massificado, Cioran trocou a bicicleta pelas viagens pedestres. Passava semanas com uma mochila às costas, acampando onde calhava, buscando solidão e sentido, abandono e apagamento. Nos últimos anos da sua vida, ganhou a alcunha de “o eremita do Odeon” por deambular, como um banido, pelas bandas do Jardim do Luxemburgo. No entanto, Cioran sabia, com aquela lucidez terrível que os seus aforismos refletem, que a desaceleração praticada pelos seus modos de viagem prediletos (em bicicleta e a pé) parecia já arqueológica aos olhos de um século que fumegava velocidade e fazia dela o seu padrão, não só funcional, mas sobretudo moral. Por isso, podemos concluir que, também neste ponto, E. M. Cioran era um perfeito apátrida.
No ensaio de abertura de um dos seus ensaios mais famosos, “A tentação de existir”, o filósofo lamenta que a vida moderna se tenha distanciado tanto do quietismo, da contemplação e das formas sapienciais da passividade. Num dos seus chistes implacáveis, lembra que “a época moderna inicia-se com dois histéricos, Dom Quixote e Lutero” e não saímos mais desse signo que faz de nós seres insatisfeitos e frenéticos, acrobatas no extremo limite de nós mesmos. Entre a serenidade e o sangue, é para o sangue que nos inclinamos. Fizemos da própria perceção um sobressalto, o começo de um transe, uma dispersão incurável, um exílio irresolúvel. Doentes da duração, “tornamo-nos idólatras do gesto, do jogo e do delírio”. As nossas células viciaram-se na vertigem interminável. É por isso que quando acreditamos, não acreditamos que acreditamos. E, da mesma forma, quando não acreditamos, não acreditamos que não acreditamos. Que saída nos resta? Uma espécie de bicicleta para o pensamento (chamemos-lhe assim): aprender a pensar contra nós próprios. Porque, como explica Cioran: “Apenas se salva aquele que sacrifica dons e talentos para, desprendido da sua qualidade de homem, poder repousar no ser.”
[José Tolentino Mendonça | A Revista Expresso | Edição 2276 | 10/06/16]
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