sexta-feira, janeiro 05, 2018

"A bicicleta" - José Tolentino Mendonça, in "O pequeno caminho das grandes perguntas", p.134

Uma freira que conheci disse-me que ficou a dever a sua perseverança, tanto na vocação religiosa, como na própria fé, a duas coisas: à oração do Pai-Nosso e à sua bicicleta. Parece uma conjugação extravagante. Sobre o papel do Pai-Nosso não restam dúvidas, penso. Mesmo um não-crente pode ser sensível à intensidade existencial dessa oração que o próprio Jesus rezou e ensinou os seus discípulos a rezar. É curioso que na oração do Pai-Nosso tudo se concentre em torno do Pai e da relação com ele. O vocativo que abre a composição torna-se claramente a palavra-chave. É verdade que depois se fala da vontade do Pai, do nome do Pai, do reino do Pai, mas é em torno da descoberta concreta do binómio paternidade/filiação que somos colocados. Mais do que pedir por esta ou por aquela necessidade, no Pai-Nosso rogamos ao Pai que seja Pai.

Creio que a experiência religiosa jogará sempre a sua vitalidade aí, no facto de inscrever no seu centro uma incessante procura de Deus. Mas onde entra a bicicleta? A bicicleta é um curioso signo. Solicita ao utilizador uma participação directa, que os meios de transporte automatizados dispensam, e vem justamente associada à frugalidade (não é dispendiosa, nem impositiva). Além disso, potencia a liberdade; desloca-se em silêncio e numa velocidade que o corpo ainda acompanha; permite vias e estilos alternativos; oferece a quem a usa a possibilidade de estar consigo próprio e, ao mesmo tempo, exposto à verdade do tempo, em vez de enclausurado numa cápsula uniforme.

A freira sabia o que dizia. A bicicleta pode ensinar-nos muito sobre a vida espiritual.

José Tolentino Mendonça, in "O pequeno caminho das grandes perguntas", p.134
(Foto de autor desconhecido)

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