Ratos, apesar de nunca os ter visto, é frequente a sua referência como frequentadores de bibliotecas. É tão comum quanto as páginas ratadas por estes roedores de quatro e duas patas. Sei do que falo pois estou a falar de mim e dos meus semelhantes.
Porém, uma barata não é vista como uma utilizadora deste espaço, de cariz tão público quanto reservado. Nunca tinha reparado nisso até hoje quando, nesse anexo às estantes cheias de livros, nesse mictório limpo e de moderna arquitectura, aos meus pés, me deparo com uma barata.
Entre a desconfiança inicial, mútua, e o rodopiar em torno do sanitário, apercebi-me estar perante um ser excepcional, uma barata letrada e não uma outra qualquer barata tonta.
Não tenho instintos assassinos para com a natureza. É raro levantar o pé ou a mão para esmagar o que quer que rasteje, trepe ou voe. Se o faço é após reiterado aviso em forma de expulsões de território caseiro, admoestações de janela aberta (para darem de frosques), sendo raras as sentenças de morte por assaltos à pele picada ou outros quaisquer atentados de insectos. Contudo, não admito jihads de mosquitos, melgas e vespas e caio-lhe em cima como os Estados Unidos. A minha diplomacia tem limites e não mudo de ideias com fenistil.
Mas a barata não era dessas. Não veio para me chatear ou enojar. Acredito que, ao ver-me levantar do local de estudo para ir urinar, me veio cumprimentar. Tinha bebido água e a temperatura de Janeiro não é propícia a desidratações. O xixi teve a duração suficiente para não ser um «olá, tudo bem?». Deu para saber o que é que andávamos a fazer por ali e despedirmo-nos em condições, com fotografia e tudo.
A barata era o Gregor Samsa e parece-me que me confundiu com o José P. duma crónica que escrevi. Não faz mal e ainda bem que me veio dizer olá. A sua presença reavivou-me a memória. Uma metamorfose pode acontecer quando menos se espera e, em qualquer lado, nos podem pisar, até mesmo no solo sagrado duma biblioteca.
"Gregor Samsa" - Capa de "A Metamorfose" |
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