Nota que não chegou a diário...
Li, algures, que “os diários são como os dedos, todos iguais, mas cada um tem a sua impressão digital”. É provável que a citação não seja exatamente assim, porém não anda longe e não me apetece ir confirmar
Quando estive confinado, ao contrário de muitos, não me senti capaz de escrever. Quanto muito uma intenção de um verso, que não passará disso, ou umas notas soltas que não chegam a diário. Apontamentos de como vou observando a sociedade peninsular, nesta minha vida ibérica, que me tem permitido ver coisas que jamais imaginaria.
Boas principalmente. Gente, locais, o melhor do ser humano. A nossa capacidade evolutiva, dinâmica, pois as nossas personalidades não são estáticas, avançando dentro de alguma coerência para bem da nossa essência.
Mentir-vos-ia se dissesse que não vejo o contrário. Se omitisse a crispação ideológica crescente, os nacionalismos mais do que emergentes e se não vivesse a 200 metros duma vala comum da Guerra Civil. Por isso, assusta-me ouvir vociferar “facha”, “rojo” ou esse “equidistante” atirado a matar qualquer tolerância a pensar por si própria.
Ia tentando alhear-me do facto de só poder esticar as pernas no supermercado, mesmo tendo em frente de casa um descampado de contacto físico e ter os olhos a arder de tanto ecrã. E ao sentir o vírus a contagiar-me pelas redes sociais, desinfectei-me do computador e do telemóvel, usados apenas para trabalhar e pouco mais. Optei pela distância de segurança digital, pelos outros e por mim.
Casualmente, andava com umas leituras pendentes. Anos 20. Chaplin, Gómez de la Serna e António Ferro, tão fascinado por um sinistro lente de Coimbra como por Hollywood, essa capital de imagens que tão bem tem travestido individualismo por valores de superação pessoal, empreendedorismo, ajudando a amputar a solidariedade à escala global, mas deixando a esperança de uns quaisquer “Vingadores” nos salvarem.
Lembrava-me disso enquanto o meu mundo parava a aplaudir a precariedade dos profissionais de saúde face ao Covid-19, da varanda, que não tenho, ouvia o silêncio do aplauso para a senhora da limpeza, para o camionista, para a caixa e repositor do supermercado, para o agricultor, para o senhor idoso do quiosque (que me ia salvando das notícias falsas), para o jornalista de empresas de trabalho temporário, para todos os invisíveis que mantiveram heroicamente o essencial de sociedade, enquanto teletrabalhava e lia que Chaplin filmou “O Grande Ditador” a advertir-nos, rindo, dos perigos de Hitler, que Ramón se autoexilou “equidistante” e o ex-modernista Ferro se tornou o homem do leme da propaganda de um Estado Novo que morreu de velho, por mais que um gajo acredite em Abril.
Mesmo confinado, o tempo passa e tornei-me quarentão em quarentena. A minha mulher deu-me outro livro, via Amazon, de Luis Sepúlveda, entretanto vítima do vírus. Li-o com a lealdade canina do protagonista, mas, apesar dos “enta”, disto do “Velho que Lia Romances de Amor”.
É verdade, tenho visto mais do que imaginava. Não é arrogância de crer ter mais mundo do que outros. O meu é pequeno, mas dedico-lhe atenção. Geralmente, como os Monty Phyton, “always look at the bright side of life”, o que não me impede de pisar merda de vez em quando. Perdão pelo vernáculo, nada demais para a minha geração, que mandou a Troika fazer outras coisas, em alto e bom som, para depois começar a trabalhar com menos direitos do que os seus pais e sem casa para alugar, mas com milhares de séries disponíveis para ver em quatro ou cinco vidas.
Lá fora, a vida é só uma e a natureza, a mais realista das séries, continuou sem grandes audiências de humanidade, provando que tem memória e, da janela, vislumbrei estações esquecidas sem poder apear-me devido ao correr da pandemia.
Pouco ou nada escrevi durante esses dias, li. Hoje recordo a lucidez desconfinada de Cioran, nos alforges da minha bicicleta, a dizer-me: “quem parar o mundo, mesmo por erro ou negligência, será o seu salvador”. Talvez tenha razão Emil, talvez...
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