terça-feira, dezembro 22, 2020

Crónica: "Rafeiro como Eu" de Luis Leal (in "Mais Alentejo" nº153, p. 48)

        O que é que o Nero, o Pantufa, o Júnior, o Jacó e o Rocky têm em comum para além de terem sido os cães da minha família? A resposta é fácil: eram rafeiros. Isto é, segundo o dicionário, cães sem “raça definida, resultado do cruzamento de diversas raças” ou, se enveredarmos pelo uso coloquial e pejorativo, algo “que não presta, de má qualidade, com mau aspecto” ou, simplesmente, “vadio”.

A canzoada só não tinha raça definida, pois, cada um à sua maneira, especialmente o Júnior (o incondicional amigo que o Ti Luís, o pai da nossa Sara Rodi, me deu), eram animais dignos, nobres, belos e cheios de humor. Como o Jacó, um Joe Pesci coelheiro de orelhas pontiagudas, mafioso de quatro patas que, depois de um périplo de meses, retornou a casa só para nos esfregar no focinho que jamais lhe domaríamos a Camorra que levava no sangue.

Tive a sorte, desde puto, da amizade canina, porém, a vida afastou, quase duas décadas, a sua presença na minha casa. Senti a saudade do passeio pelo campo, da cabeça nas pernas a pedir festas, da alegria do rabo a abanar ao ver-me, dos sprints atrás da bola ou das divagações do faro à procura de gatos, lebres ou comida no lixo. Na memória, ficou o cheiro a cão, a baba nas calças e esse domingo de convívio do grupo de casais ao qual os meus pais pertenciam na nossa paróquia.

Passei a maior parte do tempo a brincar com um cachorrinho gordo, peludo, uma espécie peluche vivo, sempre atrás dos meus Nike de ir à missa. Lembro-me de perguntar ao dono, um jovem latifundiário, qual era a raça do bichano.

- É um rafeiro alentejano. Queres ver os pais dele?

Já sabia o que era um rafeiro, mas aquele cachorro era como eu, alentejano e sem quaisquer virtudes de berço, além da teimosia atrás dos atacadores e da franqueza da paisagem. O canil era enorme, apesar da corpulência daqueles dois animais, sóbrios e de expressão calma. O macho, maior do que a fêmea, pareceu-me mais cabeçudo. Vieram de imediato ter com o dono que lhes afagou o pêlo grosso e me pôs à vontade para os acariciar, eles não me fariam mal. Um rafeiro alentejano é dócil e cúmplice da criançada. Excelente cão de guarda, seguro e confiante, vigilante nas horas de escuridão, não hesita em usar corajosamente as suas presas robustas para defender os seus de qualquer tipo de intruso.  

- Andam soltos à noite pelo monte, à mínima dão logo sinal. Ele tem quatro anos e ela é pouco mais velha. O canito com que andas na brincadeira está à mama sozinho, é um belo bicho! Um amigo meu vem buscá-lo para a semana...

Creio que foi o meu olhar fascinado, ou talvez o lavrador tenha intuído a heráldica do meu apelido, mas as suas palavras tornaram-se um sonho que recordo com sorriso gaiato.

- Se quiseres, para a próxima ninhada, guardo-te um.

O meu pai, ali por perto, assentiu. 

Durante meses perguntei se havia notícias do simpático senhor do monte. Soube, anos depois, que lamentavelmente nos deixou antes de tempo.  E o meu rafeiro alentejano foi crescendo longe de mim. Acredito que os seus antepassados molossos o impelissem a buscar outros rebanhos por esta Península Ibérica fora. Eu fiz o mesmo.

Quem nasce rafeiro, e alentejano, não escapa ao seu carácter, à planura do seu espírito. E, há um ano, quando a minha alma se amedrontava perante um lobo negro, tão cobarde quanto a sua alcateia dissimulada, regressou ao meu território o rafeiro que me foi oferecido, retomando o seu lugar na família. 

O Donnie, o nosso rafeiro alentejano, esse cachorro abandonado aos sete meses, de pelagem lobeira, com o seu peito largo e profundo, pôs-se ao meu lado, recuperando a força da minha vasta planície, profunda em silêncio e teimosa como o sol a romper por entre farrapos de nuvens. 

Vive livre pela raia e escolheu ser leal aos meus. Territorial, zela pela tranquilidade do nosso monte. Este cão, que o bom terratenente me guardou, foi duma ninhada tardia. Tem o pedigree que verdadeiramente me importa. O da terra imensa, da tranquilidade, do pão. A herança de gente simples, tisnada de sol e de agruras, cuja genética amastinada me corre pelas veias e me protege o perímetro vital se algum lobo se aproxima.



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