Cris Romeiro - A bicicleta do pescador, Ilha de Soure, Pará, 2023
"O Zen e Andar de Bicicleta" por Luis Leal
Sempre que me dirijo ao quiosque, tanto ao que resiste físico como ao que está instalado nos nossos dispositivos, lembro-me das palavras de Alejandro Jodorowsky e assumo a minha dependência: “Cada manhã, como um drogado, injecto uma dose de angústia: leio o jornal”. Necessitar física e/ou psicologicamente de determinada substância, objeto ou atividade não é o mais propício à verdadeira criatividade, ou, no meu caso, a um olhar minimamente desintoxicado. Portanto, desde há uns anos que abdiquei de informar-me através da televisão, fazendo-o apenas pela rádio e por algumas publicações tidas como de referência. Esta terapia opcional tem-me ajudado, sinto-me mais sóbrio e não tenho tido fortes recaídas. Este vício, agravado pela minha profissão e pela minha condição de progenitor, tende a levar-me a uma introspecção fronteiriça com a depressão, o que faz com que se olhem de soslaio com demasiada frequência. Admitir este facto ajuda-me e também é um dos motivos pelos quais sempre que me agarro à caneta tendo a pensar em temas sociais, políticos e até de economia! O caríssimo leitor sabe que, às vezes, caio na esparrela e, ao ler quem sabe, penso: “para que é que te pões a escrever sobre estes assuntos?”. Hoje espero não cometer esse erro e ser fiel à rubrica que o António Sancho me confia e versa sobre “Trabalhos&Paixões”.
A significativa falta de atenção do mundo contemporâneo (agudizada pelas armas de destruição massiva que trazemos nos bolsos, os nossos smartphones, e com um mercado emergente da concentração, mas esse não é o tema) há muito fez interessar-me por filosofias como o Zen, ou seja, essa perspectiva nada religiosa da existência com um foco particular no cultivo da atenção, na vacuidade, no não fazer propositado, na higiene de pensamento, na plena presença e na sua consequente correlação de tudo o enunciado com uma maior compaixão, a qual nos leva indefectivelmente a uma sensação de paz e bem-estar. Não sou nenhum guru, muitíssimo menos iluminado, mas a verdade é que esta filosofia oriental, celebrizada através da cultura japonesa, já me pôs no meu sítio ao recordar-me um simples mantra “quando comes, comes, quando dormes, dormes” (ao qual juntei “quando escreves, escreves”).
Contudo o Zen chegou quando já tinha, sem saber, uma velha filosofia de infância, o simples andar de bicicleta. Comecei relativamente cedo, numa velha Órbita, e a bicicleta mostrou-me ser o meio de transporte mais propício para a receptividade dos nossos sentidos. Se pensarmos bem, o que melhor se adapta ao “aqui” e ao “agora” são os cinco sentidos. O vento na cara, o frio nas mãos, o calor nas costas, por vezes transformado em suor, ou o sol e a sombra só possível de contemplar no Alentejo. Todo o contrário da nossa mente, entidade fundamental para a identidade, mas que teima a vaguear pelo passado e pelo futuro, arrasando a experiência do momento, esse “Carpe Diem”, derivado da visão, da audição, do olfacto, do tacto e do paladar.
Em tempos olhei para a bicicleta desde uma perspectiva desportiva, cheguei a comprar calções de licra almofadados para a austeridade do selim e “camelbacks” para a hidratação, mas não sou pessoa de performances, vi que a roupa ajustada mostra-me ainda mais ridículo do que sou, e, naturalmente, agarrei-me a este belo velocípede sem esperar outra coisa que a mera circunstância de pôr-me em movimento contrariando algumas imposições sociais, tendências sedentárias, ou apenas ir a um determinado lugar de maneira económica, convertendo o seu uso numa forma de prática introspectiva. Há quem diga que isso é Zen puro e eu acredito. Portanto, tal como o ciclismo centrado no acto de pedalar apenas para manter o equilíbrio, o Zen não é um método, nem um dogma e, repito, não é uma religião. É um modo de encarar a vida, é uma experiência sensorial difícil de verbalizar, permitindo estabelecer um maior contacto connosco próprios e recuperar alguma da atenção perdida pelo caminho. Não elimina temores, ansiedades, reacções, hábitos, enfim, não é a panaceia, tem sim a capacidade de nos mostrar como tantas coisas alheias a nós próprios obstruem a nossa essência, tudo isto com um modesto recordatório: “Quando andas de bicicleta, andas de bicicleta”.
![]() |
Luis Leal, "Zen Fixie Guadiana I" |
![]() |
Luis Leal, "Zen Fixie Guadiana II" |
29/VIII/2025: No suelo compartir publicaciones del pasado (es una costumbre que mantengo para intentar alejarme de la nostalgia —¡y no tuviese yo sangre “saudosa”!—). Sin embargo, al leer una reflexión de Irene Vallejo sobre el brutalismo imperante en la forma de comunicarnos y en la sociedad en general, y unas palabras de Carolina Yuste acerca de que quienes no envenenan con discursos de odio, ni reducen a simplismos lo que es complejo, no deben abdicar de su presencia en las redes sociales, he decidido volver a publicar una de las crónicas que sé que no han empeorado el mundo. Se llama “Ser amable”, fue publicada en “Mais Alentejo” en 2019, y merece la pena intentarlo.
29/VIII/2025: Não costumo partilhar publicações do passado (é um hábito que mantenho para tentar afastar-me da nostalgia — e não tivesse eu sangue “saudoso”! —). No entanto, ao ler uma reflexão de Irene Vallejo sobre o brutalismo imperante na forma de nos comunicarmos e na sociedade em geral, e umas palavras de Carolina Yuste acerca de quem não envenena com discursos de ódio, nem reduz a simplismos o que é complexo, não dever abdicar da sua presença nas redes sociais, decidi voltar a publicar uma das crónicas que sei que não tornaram o mundo pior. Chama-se “Ser Amável”, foi publicada na “Mais Alentejo” em 2019, e vale a pena tentar.
https://senderosdereflexao.blogspot.com/2025/08/cronica-ser-amable-de-luis-leal-in-mais.html
Ser amable - Luis Leal
La primera mirada desde la ventana por la mañana, el viejo libro reencontrado, rostros entusiasmados. Nieve, el cambio de estaciones. El periódico, el perro, la dialéctica. Ducharse, nadar. Música antigua. Zapatos cómodos. Comprender. Música nueva. Escribir, plantar. Viajar, cantar. Ser amable.
Si lo vemos bien, este primer párrafo podría ser, perfectamente, una lista de pequeñas satisfacciones. Un inventario que deberíamos hacer con más frecuencia y que, si hacemos las cuentas, está repleto de cosas que no son caras o son peligrosamente gratis. Sin embargo, lo único que es mío en este párrafo, tan simple como reconfortante, es la traducción y adaptación de la sintaxis al portugués de la versión española del original alemán del poema Placeres, de Bertolt Brecht.
Que mi estimado lector no se preocupe por esta apropiación de tercera mano. Seguro que el dramaturgo y poeta alemán, al listar estos versos, lo hizo sin ningún sentimiento de exclusividad. Cualquier poeta, digno de tal nombre, no piensa en eso. Agradece el don del primer verso de un poema que brota en generosa reciprocidad.
La verdad es que si, en este preciso momento, tuviera que apropiarme del poema, cambiaría pocas cosas. ¿Por qué no atreverme y, quién sabe, encontrar algunas de las emociones que últimamente se me han escapado? ¿Me acompaña en una lista paralela? ¡Vamos allá!
Placeres por Luis Leal:
Subir la persiana por la mañana, el libro subrayado, sonrisas en el rostro. Temperatura templada, la existencia de cuatro estaciones. La revista, el perro, las gatas, los niños, Byung-Chul Han. Ducharse, andar en bicicleta. Música antigua. Pies descalzos. Comprender. La buena recomendación musical. Escribir. Tener agua para regar. Flanear. Abrazar. Ser amable.
Si esto no fuera una reflexión hecha crónica, mi estimado lector bien podría acusarme de falta de originalidad rozando el plagio. Asumo ese hecho, con humildad y sin discusión. Sin embargo, a medida que veo pasar los años, cada vez estoy más convencido de que deberíamos plagiar el último verso de Brecht, el de “ser amable”.
Tengo fe en que esa es la verdadera fórmula para un mundo mejor. Buenos días, buenas tardes, hola, gracias, de nada, con permiso, por favor, etc. Un día con amabilidad mejora cualquier existencia, aunque sea por unos segundos. Parece que eso, como el lobo ibérico, está en peligro de extinción y hasta se confunde con “micromachismos”. Al parecer, según un artículo pretenciosamente feminista, el simple hecho de que yo abra la puerta a una mujer y le ceda el paso me convierte en micromachista. Como también lo hago con hombres y, el otro día, incluso lo hice con el caniche de mi vecina, debo de tener otro nombre. Tal y como va el mundo hoy en día, no me atrevo a decir educado.
Cuando la sociedad moderna, tan rápida como despistada, nos transmite que lo tenemos todo garantizado, palabras o expresiones como “agradecido”, “grato” o “muchísimas gracias” se relegan a cultismos. Es una pena, porque si reducimos la velocidad a la que vivimos, veremos que la amabilidad y la gratitud se pasean por esta vida de la mano y con buen rumbo.
Es muy raro que deje una crónica de Mais Alentejo para última hora, pero confieso que esta fue redactada en el deadline que António Sancho nos permite antes de enfadarse en “furia verde”(1), pues jamás permitiría ponerse de otro color. Clubismos aparte, seguro que mi estimado lector ya se ha dado cuenta de que tiene entre manos el ejemplar nº 150 de un viejo sueño de nuestro director, de nuestro António Sancho. Una quimera hecha realidad que ya ha alcanzado la mayoría de edad de un proyecto competente, de calidad sin fronteras regionales y que, desde hace tiempo, también es conocido en el país donde habito y escribo estas palabras: España.
¿Qué puedo decir más allá del agradecimiento por formar parte de este ilustre equipo de Mais Alentejo? Poco o nada. Solo comparto cómo es recibir la revista cada vez que acaba de ser editada. Con placer. Uno de esos pequeños grandes placeres que junto a mis versos robados a Brecht.
Cheiro de ferrovia
“Só nos tornamos homens quando o nosso pai morre”, dizem-me. O meu não morreu, mas, ao descer na última estação, algo em nós se silenciou, apesar do pulsar continuo herdado do sangue e dos gestos. Trisavô, bisavô, avô, pai – um caminho-de-ferro na genética e na memória. Cresci graças a conduzirem comboios, a limparem o esterco dos animais empilhados nas carruagens, impedido de prosperar como adubo por despotismo de chefes, vagões atrelados a pequenos poderes, num país saudosista e salazarista.
O cheiro a carvão, a gasóleo e a suor sempre será mais forte do que qualquer perfume na minha roupa. A vida, às vezes, é só isso: um cheiro do passado. Não fujo ao meu, ao de ferroviário.
Luis Leal
Badajoz, 25 de Abril de 2025
Olor de ferrocarril
“Solo nos convertimos en hombres cuando nuestro padre muere”, me dicen. El mío no ha muerto, pero, al apearse en la última estación, algo en nosotros se quedó en silencio, a pesar del latido continuo heredado de la sangre y de los gestos. Tatarabuelo, bisabuelo, abuelo, padre: un ferrocarril en la genética y en la memoria. Crecí gracias a que conducían trenes, a que limpiaban el estiércol de los animales amontonados en los vagones, impedido de prosperar como abono por el despotismo de jefes, vagones enganchados a pequeños poderes, en un país "saudosista" y salazarista.
El olor a carbón, a gasóleo y a sudor siempre será más fuerte que cualquier perfume en mi ropa. La vida, a veces, no es más que eso: un olor del pasado. Yo no huyo del mío, del de ferroviario.
Luis Leal
Badajoz, 25 de abril de 2025
São fotos onde se encontra o meu avô Ventura Pinto, pai do meu pai. Na primeira foto, é o segundo à direita de pé e, na segunda, é o primeiro à direita na janela da carruagem.
19/VIII/2025: Se está quemando estos días demasiado patrimonio, natural y material de todo tipo, principalmente en unos incendios de los que ni siquiera merece la pena hablar, pues siento que mis palabras podrían ser las mismas de hace décadas. Sin embargo, cuando pienso en mi impotencia ante este mundo inflamado, en la “quema” de instituciones, cuando me enfrento a la insensibilidad que nos mata por dentro y a la “lejanía” del dolor (y del color) del otro, mi manera de sobrevivir se encuentra en la cercanía y en la colaboración; es decir, en colaborar, en laborar con otros. Y doy las gracias a quienes se acuerdan de mi labor y me invitan a acompañarles en sus proyectos (el filósofo José Carlos Ruiz le llama “microrresistencia”, por otras palabras “es intentar ayudar a la gente que tienes a tu alrededor en la media de tus posibilidades, para que no te insensibilices con los grandes temas de la vida que aparecen en los telediarios”).
Afortunadamente, en Extremadura se sigue dinamizando el Premio Internacional de Fotografía Santiago Castelo, a través de la Asociación de Extremadura para la UNESCO, destinado a las regiones de Alentejo, Centro y Extremadura. Mi colaboración es modesta, pero placentera, y se debe a que mi maestro José Luis Bernal siempre se acuerda de mí para que traslade al portugués la poesía del patrono de este premio, el añorado Santiago Castelo. Aquí tenéis mi colaboración para el catálogo de 2024.
19/VIII/2025: Está a arder, nestes dias, demasiado património, natural e material de todo o tipo, sobretudo em incêndios dos quais nem sequer vale a pena falar, pois sinto que as minhas palavras poderiam ser as mesmas de há décadas. Contudo, quando penso na minha impotência perante este mundo em chamas, na “queima” de instituições, quando me confronto com a insensibilidade que nos mata por dentro e com a “distância” da dor (e da cor) do outro, a minha forma de sobreviver encontra-se na proximidade e na colaboração; isto é, em colaborar, em laborar com outros. E agradeço a quem se lembra do meu trabalho e me convida a acompanhá-los nos seus projetos (o filósofo José Carlos Ruiz chama-lhe “microrresistência”, por outras palavras “é tentar ajudar a gente que tens ao teu redor na medida das tuas possibilidades, para que não te insensibilizes com os grandes temas da vida que passam nos telejornais”).
Felizmente, na Extremadura continua a dinamizar-se o Prémio Internacional de Fotografia Santiago Castelo, através da Associação da Extremadura para a UNESCO, destinado às regiões do Alentejo, Centro e Extremadura. A minha colaboração é modesta, mas gratificante, e deve-se ao facto de o meu mestre José Luis Bernal nunca se esquecer de mim para traduzir para português a poesia do patrono deste prémio, o saudoso Santiago Castelo. Aqui vos deixo a minha colaboração para o catálogo de 2024.
Sérgio Godinho - "A última sessão", do álbum Lupa (2000)
ASÍ ES EL PARAÍSO
En mi caso el paraíso es ese lugar del universo donde me está esperando aquella bicicleta que desde los 10 años me llevaba al mar en el verano. Sé que cuando muera, si me he portado bien, volveré a encontrarla muy puesta con las ruedas hinchadas, con la cadena engrasada, el manillar, los tubos del cuadro y los guardabarros relucientes, el timbre funcionando y un naipe de la baraja, el as de oros, engarzado entre los radios para que suene como un motor al ponerla en marcha. Si Jesucristo y la Virgen María subieron a los cielos en carne mortal, según me enseñaron en la catequesis, también pudo hacerlo mi bicicleta que tantas horas de placer me había proporcionado. Era una Orbea de color gris antracita; al principio tenía que levantarme del sillín al pedalear, pero con el tiempo fui creciendo sobre ella hasta dominarla por completo y convertirla en una prolongación de mi cuerpo. Todos los viernes me llevaba a la estación donde a una hora incierta pasaba un tren borreguero y por la ventanilla del vagón correo un ferroviario lanzaba sobre el andén un paquetón de tebeos. Llevo asociada a la bicicleta toda clase de lecturas que llenaban mi cerebro de corsarios y tigres de Bengala, pero no había aventura más excitante que llegar con ella a la playa en el verano y sentir bajo sus ruedas los cantos rodados llenos de espuma. Montado en esa Orbea fui un niño que buscaba entre los naranjos nidos de pájaros y durante la pubertad sentí en su sillín caliente los primeros latidos del sexo. Las rodillas varias veces sangrantes y un brazo roto por las caídas fue el sacrificio que me exigió a cambio de tanto placer. Sé muy bien que cuando muera todo va a ser como antes, ella me estará esperando para llevarme de nuevo a una estación de tren y a un mar muy azul que sin duda existen en algún lugar del universo y, si se me pincha una rueda, espero que en el paraíso haya un taller que huela a grasa y a pegamento como huelen los talleres de bicicletas aquí en la Tierra.
Manuel Vicent
(El País, 29-6-25)
ENTÃO, RUI?
Sobes o barranco, corpo magrote
e alguns empenos, rosto miúdo,
nariz agressivo, o olho muito agudo,
ríspido qual ave de presa.
Tua capital a teus pés,
sem que o saiba, longilínea,
alinhada, de carros pequenos
e brilhantes entre acácias de miniatura.
Coças o peito na zona do esterno
num jeito muito teu. E olhas.
Teu olhar tem a curvatura
terna e feroz duma grande-angular.
Esse perfil distante de cimento
e argamassa é toda uma geometria
decantada e gostosa molhando os quadris
deleitados no charco doce da baía.
Diacho, que perfil mais bonito, hem?
Então, Rui, que é isso,
não vais agora comover-te?
Rui Knopfli
Mangas Verdes com Sal (1969)
Ah, o passado,
o tempo onde se acumularam
os dias lentos.
Buson
Versão de Herberto Helder
Uma versão de Antonio Cabezas, em espanhol, diz assim:
Los días lentos
se apilan, evocando
un viejo antaño.
(aqui)