sexta-feira, janeiro 08, 2010

A mercearia do bairro


A mercearia do bairro nunca está vazia. Ouvi dizer que não há nenhuma mercearia que nunca tenha fiado, nem que seja um pouco de conversa. E é bem bom, juntamente com o pão fatiado, a azeitoninha retalhada temperarinha à moda do vendedor, o chouriço e uma alface qualquer, com duas ou três folhas murchas. As mercearias de bairro ainda são o que têm de ser, um porto de abrigo do furação Belmiro, nascido na frente tropical da globalização.

Quero lá saber do comércio tradicional, eu quero é poder comprar o meu fiambre às fatias a um ser humano que não esteja assepticamente e corporativamente vedado ao contacto humano com aqueles que lhe entram porta adentro

- Ponha mais 100 gramas, se faz favor. Então o que é que me diz do Benfica de Jesus?

de touca mal-humorada e mal-paga, que nenhuma bata de auto-motivação, nem “personal motivators”, sintetizarão obrigação, necessidade e brio profissional.

- Já agora, dê-me mais um garrafão de água. Sabe que ontem, disseram-me, que houve porrada no Lidl por causa da falta de água? Estes gajos da câmara outra vez com a história do alumínio…

Conversa de circunstância? Falar do tempo? Desde quando é que isso é algo menor? O que é a vida senão uma cordilheira de circuntâncias?

- Ai, que já não sou nenhum intelectual digno da sociedade de doutores da mula ruça… Tempo, só mesmo o perdido com Proust… Pó c…

Existe mais filosofia no prosaísmo das gentes da minha rua do que nas estantes da antiga biblioteca de Alexandria. Existe mais emoção no

- Eu já andava maluco, qualquer dia matava o gajo… pior vizinho que aquilo não há de certeza!

que em vários romances, novelas, ou best-sellers que vão directos para o Bookcrossing, para a estante ou para a feira da ladra.

Há mais auto-ajuda em ser um mais na profunda cumplicidade do uso respeitoso da 3ª pessoa (sim sou espanhol de coração, mas adoro o som de um “você” sincero, insubmisso, gregário) que nos tête-à-tête do Deepak “Chupa”, ou o raio que os ajude. No respeito comum do dia-a-dia autêntico do macrocosmos da mercearia de bairro.

Hoje fui ao supermercado, enchi a cesta como num filme de série B, consumista, como nos têm obrigado a ser. Hoje fui à mercearia do bairro, não comprei nada. Do outro lado

- Então Luís, que tal vai isso?

(Porque é que quando era criança o meu nome não soava da mesma maneira que hoje?)

Senti-me humano e levei a cesta cheia de outras coisas.

Foto:Miguel Tnent

Sem comentários: