terça-feira, maio 25, 2010

“O Fado da Bicicleta”


Rafael Alberti, foi quem, com as suas palavras, melhor ilustrou a relação que o homem tem com um objecto tão simples e prosaico como é a bicicleta, enunciando, numa das suas baladas, que “a los cincuenta años, hoy, tengo una bicicleta. Muchos tienen un yate y muchos más un automóvil y hay muchos que también tienen ya un avión. Pero yo, a mis 50 años justos, tengo sólo una bicicleta”.
Vocabulário elementar que nos remete para uma realidade tão evidente na actualidade, em que nos são pedidos sacrifícios, em que a classe política pouco ou nada predica com o exemplo, dentro e fora das nossas fronteiras. Não é sobre esses trabalhos que aqui escrevo, pois estou seguro que nada de novo aportaria a esse tema que teima em perseguir-nos desde há tanto tempo que discurso da “tanga”, do nosso actual presidente da União Europeia, soa actual. Penso que não há já nenhum português que saiba efectivamente precisar quando não se falava, à maneira de Sísifo, de crise.
No entanto, prefiro centrar-me nas duas rodas, meio de transporte original e, para mim, o mais democrático sem nos percebermos. Em criança todos queremos uma bicicleta, vivemos a emoção de aprender a comandá-la baixo os nossos desígnios infantis (uns pintam-nas de preto porque julgam que corta melhor o vento e outros aplicam cartas nos garfo para um ruído mais motorizado…), sentimo-nos livres e independentes na cadência do pedalar lúdico e pouco elaborado, mas chegada a maioridade, o nosso fiel corcel volta aos estábulos do socialmente e aparentemente correcto, sendo-lhe, por vezes, permitidas saídas por mero controlo de calorias.
Não sou um optimista do uso da bicicleta, apesar de reconhecer a luta constante de a voltar a colocar num papel de desenvolvimento sustentável como idealizara Leonardo Da Vinci, aquando do seu invento em papel esquiço.
Como pôde o papel da bicicleta mudar tanto no espaço de meio século em Portugal? Na época do Estado Novo, como muitos de vós recordais, ter uma bicicleta era sinónimo de alguma e limitada prosperidade económica. Ter uma bicicleta possibilitava uma locomoção mais ampla e consequentemente mais oportunidades. Há uma história da raia luso-portuguesa, comum a outras regiões, que atesta a importância que este meio de transporte simbolizava para aqueles que se viam votados ao estilo de vida humilde, a roçar a miséria, que o regime tão bem preconizava na famosa canção de Amália, “Casa Portuguesa”.
Nessa pobreza dita feliz, incutida pela propaganda do SNI, vivia um contrabandista português na fronteira dos Galegos. Todos os dias passava a fronteira pedalando na sua bicicleta onde, no “porta couves”, levava um balde de terra. Os guardas-fiscais sempre procuravam algo por entre a terra, inspeccionavam a bicicleta e não encontravam nada ilícito que pudesse transportar para um lado ou outro da fronteira. Apenas dizia que gostava de levar terra espanhola para usar na sua horta, algo que lhe melhorava a produção e aumentava o trabalho nas colheitas.
Mas, com o tempo, descobriu-se o segredo da terra do célebre contrabandista, que, na realidade, o que passava cada dia era uma nova bicicleta de contrabando.
É evidente, através desta história, a importância que este meio de transporte tinha na vida e economia de então. Hoje, fruto dessa herança de conotação com uma vida de dificuldades, a bicicleta continua a ser vista como algo estereotipado, típico de pelintras, alternativos, desportistas, ecologista ou, até, mesmo, apesar do contra-senso, de gente com possibilidades económicas acima da média que lhes permite altas performances em quadros carbónicos de milhares de euros, apenas evidentes nos quilómetros de fóruns na internet.
Em Portugal, no Alentejo, principalmente, é preciso esquecer as conotações inerentes a este passado da bicicleta. Chamar-lhe-ia mesmo “fado da bicicleta”. Temos de fazer como as crianças, ficar fascinado por um objecto que pouco nos pede em troca, usá-lo e desfrutá-lo nas inúmeras horas de sol que Portugal nos oferece. Torná-lo parte do nosso dia-a-dia, obrigar a que se respeite (muitos nos recordamos das bicicletas vermelhas da bem intencionada CME vandalizadas e rapinadas!), e, quem sabe, assim também percorrermos novos caminhos de cidadania.
Évora, a par de outros eventos, tem predicado com o exemplo e presenciará, um ano mais, ao “Encontro de Bicicletas Clássicas do Alentejo”, já no próximo Sábado, 29 de Maio. Quem sabe, nos possamos reencontrar com uma história que se foi escrevendo com pneus furados, calços gastos, mas onde sempre foi possível recuperar fôlego junto a um rio enquanto vemos o reflexo estrelado do futuro? Só por isso, vale a pena ter uma bicicleta.

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